Começar de novo. Reinventar-se. Ter a chance de trilhar um novo caminho. Essa vontade pode até estar presente na maioria das pessoas, mas parece pulsar com mais intensidade em quem sabe que realmente precisa de um recomeço. A esperança de escrever um capítulo novo estava nos olhos e nos traços pintados por cada uma das 24 detentas do Presídio Regional de Caxias do Sul (PRCS) que participaram de uma proposta de ressocialização na tarde de segunda-feira (18).
O grupo integra o Projeto Recomeçar. Com o lema: "Olhar para o ser, integrar o que foi e transformar para o ir", a iniciativa foi idealizada pela 1ª Vara de Execução Criminal (VEC) de Caxias em conjunto com a Comissão de Direito Sistêmico da OAB e da equipe técnica do Presídio Regional de Caxias. Nas dinâmicas de grupo, com diálogo e práticas sistêmicas, a equipe do projeto quer levar as detentas a refletirem sobre o que fizeram e ressignificar o que passou para poderem buscar uma reinserção na sociedade.
O Recomeçar é voltado às mulheres porque há essa percepção de que elas precisam de atenção maior. Como elas estão em um presídio que também é ocupado por homens falta espaço na galeria feminina e elas têm menos opções de estudo e trabalho do que os homens recolhidos no local.
— O que nos motivou é que, se comparar, elas têm menos em todos os aspectos: pátio menor, menos oportunidades, menos visitas. A maioria é mãe e nem sempre tem quem traga os filhos para que elas possam vê-los — ressalta a juíza Joseline Mirele Pinson de Vargas, titular da Vara de Execução Criminal Regional.
Ela ressalta que a intenção é humanizar o cumprimento da pena:
— É para mostrar que alguém olha por elas e para que elas tenham perspectiva de futuro. Elas erraram, mas não são apenas esse erro. Podem fazer melhor e o certo. Todo mundo tem direito a um recomeço.
A intenção é que o projeto seja permanente:
— A ideia é fazer encontros temáticos e preparar elas para voltarem para o mundo lá fora. Um dos temas bem presentes é o autocuidado porque elas costumam ser destrutivas. É importante que elas falem de sentimentos, por isso, entregamos um questionário onde perguntamos com quais sentimentos têm mais dificuldade em lidar e vamos trabalhar isso. A cada encontro uma nova temática, uma troca e esse preparo para terem perspectivas.
Para a diretora do Presídio Regional, Alexsandra Viecelli, o projeto é uma alternativa que se soma às demais para ajudar a manter a rotina mais tranquila:
— Elas ficam empolgadas, felizes e mais participativas. Isso evita conflitos e brigas, especialmente, porque, a maioria delas são esposas, filhas, irmãs, de integrantes de organizações criminosas rivais. São ações que mantém o clima mais leve entre elas.
Direito sistêmico
Em março deste ano ocorreu o encontro de apresentação do projeto. Depois disso, 24 das cerca de 80 presas demonstraram interesse em participar do Recomeçar. Eram essas que estavam presentes na dinâmica de grupos nessa segunda. O primeiro passo foi o acolhimento, abordando o tema da criança interior, que precisar ser amada e respeitada. Depois, o grupo conversou sobre a rotina e como manter práticas que ajudem no autocuidado do corpo e da mente.
A advogada e psicoterapeuta Nathalia Reschke, da Comissão de Direito Sistêmico da OAB de Caxias do Sul, foi quem conduziu as atividades:
— É um momento terapêutico em que vamos trabalhar o autocuidado, olhar para si, e ressignificar o passado em busca de mudanças para o futuro. Não há uma história melhor ou pior e sim o que eu posso fazer para ser melhor hoje. O ser humano está em constante processo de evolução.
Foi com essas palavras que a advogada começou o encontro. Uma folha com o desenho de uma boneca foi entregue para cada uma das apenadas. Elas também receberam lápis de cor para colorir os desenhos:
— Um dos movimentos é aceitar o que aconteceu e olhar para trás com gratidão porque todos nós erramos. A partir da nossa história podemos fazer novas escolhas. Um dos passos para isso é olhar para a nossa criança interior porque temos lá atrás coisas que talvez precisávamos e não tivemos. Quando a gente fala em sentimentos, eu, como adulta, tenho que buscar isso dentro de mim. Vamos colorir a vida — convidou ela.
Leveza e alegria
Sentadas em cadeiras colocadas no pátio, uma ao lado da outra, as presas sorriam e se divertiam enquanto pintavam. Depois, elas falaram sobre os desenhos e muitas não viam nas bonecas a criança interior, ou seja, elas não se viam, como alguém que precisa ser cuidada. Viam as filhas. Algumas voltaram a uma infância difícil, em que não tiveram amor, carinho e respeito:
— Nunca tive infância. Apanhava muito — lembrou uma delas.
Outras detentas relataram não ter do que reclamar, mas que querem que os filhos não cometam os erros que cometeram. Falar das crianças é o que faz com o olhar da maioria das mulheres brilhe. É nesse momento também que muitas ficam mais frágeis, e as lágrimas aparecem:
— O projeto ajuda a gente a aliviar a cabeça — contou uma mãe de 31 anos.
Para ela o nome do projeto é inspirador:
— Eu quero recomeçar, e eu tenho que recomeçar pelos meus filhos.
Outra mãe, de 28, contou que via a filha de 14 ao olhar o desenho:
— Vejo minha filha porque ela foi a minha infância. Precisamos desses encontros. É uma terapia. Hoje tenho consciência de todo o tempo que perdi aqui dentro. Eu penso em recomeçar uma vida diferente lá fora. Minha filha não vai cometer os mesmos erros que eu.
No final do encontro cada uma das participantes falou uma palavra. Entre elas: gratidão, esperança, liberdade, fé, paz, alegria e amor.
— Vocês nos olham com outros olhos. Não viraram as costas para nós e não enxergam só os nossos erros. Nos ajudam a ter essa vontade de começar uma nova história e de aprender com o passado, não cometendo os mesmos erros — disse a jovem de 28 anos.
A juíza se emocionou:
— Vocês não têm ideia da quantidade de pessoas que nos procuraram e tem muita gente que quer trazer algo bom para vocês. Para as mulheres acaba sendo mais difícil porque a maioria de vocês é mãe têm coração aqui e um lá fora. É bom poder conversar e saber que talvez eu consiga ajudar de alguma forma. A gente se importa e quer fazer melhor.
A ideia inicial era que o projeto fosse realizado uma vez por mês, mas a pedido das presas, a VEC vai avaliar a realização quinzenal do Recomeçar.