Quando o pastor Luiz Paulo Geiger, 63 anos, deixou o hospital, após 13 dias de internação por complicações causadas pela covid-19, ele não conseguia fazer atividades básicas do dia a dia, como caminhar pela própria casa. Na última sexta-feira (16), ele teve alta do programa de reabilitação do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), instituição do Grupo Educacional Cruzeiro do Sul em Caxias do Sul. Segundo as professoras que atuam no projeto de extensão, Luiz está totalmente recuperado das sequelas causadas pela doença.
O pastor procurou atendimento médico no dia 24 de outubro do ano passado, na UPA Zona Norte e já foi encaminhado ao Hospital Geral com 75% dos pulmões comprometidos. Não precisou ser entubado, mas chegou ao limite mesmo recebendo oxigênio para ajudar na respiração. Ele conta que teve todos os sintomas: febre, dor de cabeça, diarreia, perdeu os sentidos do olfato e do paladar e emagreceu 15 quilos. A alta ocorreu no dia 6 de novembro. Mas os primeiros dias em casa, sem auxílio de oxigênio, foram difíceis. A falta de ar voltou e ele precisou buscar ajuda especializada. Depois, soube do projeto e resolveu participar.
— Eu tinha muito cansaço. Queria passar o dia na cama, dormindo. Não conseguia caminhar. O mínimo esforço era difícil. Dava três passos e tinha que sentar. Aí, comecei aqui e foi fundamental. Acho que teria internado de novo se não fossem as vindas aqui. A mudança era progressiva, mas vista. Agora, estou 100% — contou, após quatro meses no projeto.
A professora Danusa Rossi, da área de Fisioterapia Cardiopulmonar do curso de Fisioterapia, explica que a ação do coronavírus no organismo provoca sequelas neurológicas (perda de olfato e paladar), vasculares (lesão na camada de células que que protege os vasos, favorecendo trombose), dermatológicas (queda de cabelo), pulmonares (falta de ar e fibrose) e motoras (fadiga e perda de massa muscular). Segundo ela, praticamente todos os pacientes que precisaram ser internados em hospitais ficam com algum tipo de sequela.
— Os pacientes pós-covid têm sequelas bem importantes, tanto motoras quanto respiratórias. Eles têm bastante fraqueza muscular, falta de ar, uma tolerância um pouco mais baixa ao exercício. Precisam de um tempo para se reabilitarem. E não existe nenhum protocolo estabelecido na literatura. O projeto vem a agregar nesse sentido, de produzir evidências nessa área da reabilitação pós-covid. Muitos pacientes não morrem da doença e, sim, das sequelas. Realmente, o imobilismo tem impacto em todos os sistemas. As complicações para pessoas que perdem essas funções podem ser mortais — explicou a professora.
Pacientes de Caxias e Bento Gonçalves participam de estudo nacional
As sequelas deixadas pela covid-19 em pessoas que estiveram hospitalizadas em função da doença são estudadas em uma das pesquisas desenvolvidas pela Coalizão Covid-19 Brasil. Na Serra, pacientes do Hospital Geral, de Caxias do Sul, e Tacchini, de Bento Gonçalves, estão sendo monitorados no estudo chamado de Coalização VII. As duas instituições de saúde fazem parte das mais de 50 de todo o território nacional que recrutaram mais de 1,5 mil pacientes para participarem da pesquisa. Essas pessoas começaram a ser acompanhadas durante a internação e seguem sendo pós-alta pelo período de um ano. O acompanhamento é feito por meio de entrevistas telefônicas realizadas a cada três meses.
Alguns dados preliminares da pesquisa foram apresentados em um simpósio da Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorrido em fevereiro deste ano, sobre a Síndrome pós-covid ou Long covid. Até a data do evento, 1.006 pacientes eram acompanhados, entre aqueles que tiveram quadros moderados (internados em enfermarias) e graves (que passaram por UTI). Com base nesse número, os dados preliminares apontaram que, no período de seis meses pós-alta hospitalar, 22% dos pacientes desenvolveram ansiedade, 19% tiveram depressão e 11% apresentaram quadro de estresse pós-traumático. Todas consideradas sequelas decorrentes da doença. Ainda 7% dos 1.006 acompanhados morreram. Entre os pacientes que necessitaram ventilação mecânica, o índice subiu para 24%, mais do que o triplo. Entre os que não precisaram de ventilação, a taxa ficou em 2%.
Segundo o médico intensivista e pesquisador do Hospital Moinhos de Vento, Regis Goulart Rosa, representante da Coalizão Covid-19 Brasil, o estudo avalia o impacto da covid-19 na qualidade de vida e os desfechos em longo prazo nos sobreviventes pós-hospitalizações.
— Parece que a necessidade de ventilação mecânica não apenas confere maior risco de mortalidade durante a hospitalização, mas, também, é um marcador de risco para morte pós-alta hospitalar — considera Rosa.
A conclusão, mesmo que preliminar, aponta para um número subestimado de óbitos decorrentes de complicações causadas pela covid-19. Isso porque as pessoas que morrem em função das sequelas tempo depois da alta hospitalar não são contabilizadas nem pelos municípios nem pelo Estado. Como consequência, o dado sobre recuperados, que considera as pessoas que deixam os hospitais, é superestimado.
— Se considerarmos que uma grande parcela desses pacientes que sobrevivem vão falecer no primeiro ano após a alta hospitalar e que essas mortes são devido à sequelas causadas pela covid, esses óbitos também deveriam ser contabilizados como secundários à covid — pondera o médico.
Segundo o pesquisador, a covid pode apresentar diversas sequelas, divididas em três grandes grupos: físicas, cognitivas e mentais (leia mais abaixo) e a reabilitação vai proporcionar melhor qualidade de vida aos pacientes e reduzir o número de mortes depois das altas:
— Essas sequelas são tipicamente duradouras, estão associadas a um risco maior de rehospitalizações, de mortalidade nos primeiros anos após alta hospitalar e também com risco de sequelas cognitivas, de saúde mental, que tem grande impacto em qualidade de vida. Dificulta, inclusive, o retorno ao trabalho e aos estudos. Isso mostra que nosso cuidado não deve ser interrompido no momento em que o paciente deixa o hospital. Muitas vezes, a alta é o início de uma longa caminhada de reabilitação.
Não é objeto do estudo Coalizão VII identificar entre os pacientes acompanhados quais buscaram algum serviço de reabilitação e o quanto e de que forma ele interferiu na recuperação. Contudo, o pesquisador explica que é possível interromper o curso incapacitante da sequela por meio de um plano de reabilitação, que deve ser individualizado.
O estudo é um dos nove desenvolvidos pela aliança formada por Hospital Israelita Albert Einstein, HCor, Hospital Sírio-Libanês, Hospital Moinhos de Vento, Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Beneficência Portuguesa de São Paulo, Brazilian Clinical Research Institute (BCRI) e Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet).
A primeira publicação de resultados deve ocorrer nos próximos três meses, com base nos dados obtidos em nove meses de acompanhamento dos pacientes participantes da pesquisa.
Tipos de sequelas
Físicas: Pessoas que sobreviveram à doença e podem apresentar redução da capacidade física. Isso pode ser efeito da forma aguda doença e, também, das intervenções feitas para salvar a vida do paciente, como uso de alguns medicamentos que podem enfraquecer o sistema muscular e mesmo o longo período de imobilização em casos de entubação que pode causar atrofia muscular. Elas terão dificuldade em recuperar a capacidade física funcional plena. Outro exemplo, são as pessoas que ficaram muito tempo entubadas e que desenvolvem distúrbios de deglutição. Essa sequela aumenta o risco de pneumonia por aspiração, que é uma das principais causas de rehospitalização.
Cognitivas: Pacientes que necessitaram de sedativos por período prolongado podem apresentar hipotensão, hipoglicemia, alterações da glicose e inflamatórias e, com isso, acometer o sistema nervoso central, causando impacto na memória, na velocidade de pensamento e na capacidade de tomar decisão.
Mentais: Pacientes que apresentam altas taxas de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático.
O estudo:
Objetivo é avaliar a qualidade de vida e os desfechos em longo prazo de pacientes sobreviventes de hospitalização por covid-19. 1,2 mil pacientes participam atualmente; mas, na data de divulgação dos dados preliminares eram 1.006.
Perfil dos pacientes participantes:
:: A idade média é de 52 anos
:: 60% são homens
:: A média de tempo de hospitalização foi de nove dias
:: 25% necessitaram de ventilação mecânica
Resultados preliminares em seis meses:
:: 7% dos hospitalizados em geral morreram pós-alta. Entre os pacientes que necessitaram ventilação mecânica, o índice foi de 24% e, entre os que não precisaram de ventilação, de 2%
:: 17% do público geral precisaram ser hospitalizados novamente. Entre os pacientes que necessitaram de ventilação mecânica a taxa de rehospitalização foi de 40%
:: 22% dos pacientes desenvolveram ansiedade
:: 19% tiveram depressão
:: 11% apresentaram quadro de estresse pós-traumático
Extensão é oportunidade de serviço gratuito à comunidade e aprendizado aos alunos
O projeto de extensão da FSG iniciou como um trabalho de conclusão de curso (TCC) de um aluno da graduação em Fisioterapia. A coordenadora do curso, Alexandra Renosto, percebeu o potencial para além da pesquisa. Com isso, mais professores se agregaram e o estudo inicial deixou de ser apenas uma coleta de dados e se tornou um projeto de extensão, um serviço gratuito à comunidade. Atualmente, participam também a Psicologia, Nutrição e Terapia Ocupacional.
As atividades são desenvolvidas no Centro Integrado de Saúde (Cis) da FSG. Os pacientes são encaminhados por meio de um acordo de cooperação da instituição com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Alguns que estiveram internados no Hospital Virvi Ramos e que foram acompanhados por estagiários da FSG também estão sendo recebidos pelo projeto.
— É muito rica essa possibilidade de desenvolver habilidades e competências no acadêmico e o quanto podemos contribuir para a melhora da qualidade de vida desses pacientes — comentou a coordenadora.
Thalia Sebben Pedrotti, 21 anos, cursa o 9º semestre de Fisioterapia e diz que o projeto agrega conhecimento para uma nova área de atuação para os profissionais:
— Daqui para frente, vamos ter que trabalhar com as complicações da covid. Vai ter muito campo para nós atuarmos. Por isso, está sendo muito importante.
Outra aluna que atua no serviço, Sheila Arendt de Moraes, 48, está no 9º semestre de Psicologia e fala da importância de o projeto ser multidisciplinar, já que a covid-19 é uma doença que ataca vários sistemas do organismo. Ela considera que estamos vivendo um adoecimento social que atinge mesmo quem não contraiu o coronavírus. Para quem teve a doença, a carga emocional é ainda mais pesada.
— O paciente que passou pela covid, por uma internação, traz muitas perdas, do contato social, do convívio familiar, de ter que ficar internado longe da família, a insegurança de não saber que vai acontecer. Elas podem repercutir na saúde mental desse paciente. Eles trazem a questão do medo, do adoecimento e de como vai ser a vida daqui para a frente. Na escuta clínica, procuramos entender esse paciente e organizar para que ele possa ter uma retomada — comentou Sheila.
No projeto, os pacientes são assistidos duas vezes por semana, às quartas e sextas-feiras ao final da tarde. A média do período de atendimento é de dois meses, mas varia conforme o caso. Depois de passarem pelo serviço, pacientes que necessitem de continuidade nos tratamentos são encaminhados ao ambulatório de Fisioterapia da FSG.
Irene Cordova, 53 anos, contraiu o coronavírus no início de novembro do ano passado. Ela conta que ficou 10 dias em casa, antes de ser diagnosticada, em função de uma asma que gerou confusão entre as duas doenças já que os sintomas iniciais são semelhantes. Mas ela também teve sintomas característicos da covid-19, como a perda do olfato e do paladar. Ficou 12 dias internada e não precisou ir para a UTI. Como consequência da doença, sentia cansaço muscular nas pernas e queda de cabelo, entre outras sequelas.
— É bom para a gente da comunidade e estamos fazendo uma ajuda para as meninas também, que precisam aprender. Comecei a me policiar para fazer os exercícios. Me ajudou bastante — comentou.
A Universidade de Caxias do Sul (UCS) tem um Centro de Reabilitação com ações multidisciplinares para pacientes que tiveram covid-19, porém, as atividades foram interrompidas em função da bandeira preta do modelo de distanciamento controlado do Estado. A coordenação do centro aguarda a volta da bandeira vermelha na região para retomar o serviço. Na UCS, os atendimentos são pagos.
Para participar:
:: Os pacientes SUS são encaminhados pela Secretaria Municipal de Saúde por meio do Ambulatório de Doenças Respiratórias do Adulto (Adrea) que indica a necessidade de atendimento, de acordo com o quadro clínico/ avaliação médica.
:: Os pacientes que ingressam são acompanhados pelo projeto por no máximo seis meses. As vagas são limitadas a oito por mês, ocorrendo ingresso de novos pacientes somente conforme altas.
* Fonte: Secretaria Municipal de Saúde
Perda de olfato e de paladar de forma intensa e súbita são sintomas próprios da covid-19
Muitas pessoas que contraem o coronavírus são acometidas por transtornos de olfato e de paladar. Segundo a médica otorrinolaringologista Majorie Agnoletto, estima-se que 50% se recuperam espontaneamente até um mês depois da doença e 60% até o segundo mês. Mas cerca de 40% dos pacientes têm sintomas crônicos, que duram mais de dois meses. A orientação é que passado o primeiro mês, se não se recuperar, a pessoa procure ajuda para ativar as memórias e voltar a sentir cheiros e gostos. Não há registro de caso definitivo, porque a regeneração completa pode levar até dois anos. A especialista diz que a perda de olfato e de paladar já ocorria em pacientes de gripes e viroses, mas não era comum:
— Nos casos de covid, no início da pandemia, se tornou quase um sintoma diagnóstico, porque dessa maneira, de forma tão intensa e abrupta e sem muitos sintomas nasais, não tem outra doença que apresente.
A fonoaudióloga e doutora em Pneumologia, Aline Ferla, explica que os sentidos do olfato e do paladar dependem de um sistema íntegro que envolve nariz e nervo olfativo que conduz a informação até o cérebro, responsável por interpretar a informação sensorial. Ou seja, identificar que o cheiro ou gosto sentido está relacionado a determinada coisa. Segundo ela, não há estudos conclusivos, mas alguns indicam que os pacientes de covid podem ter problemas no nariz e boca ou complicações neurológicas. A reabilitação faz com que o paciente perceba o cheiro e o gosto e restabeleça a memória olfativa e degustativa.
Entre os casos mais graves, pacientes relatam ter a percepção contínua de mal cheiro mesmo sem estar diante dessas situações, o que gera ansiedade:
— Ele fica constantemente sentindo um cheiro ruim e não é nada psiquiátrico e, sim, neurológico, que estamos observando pós-covid. Fazemos um trabalho de treino olfativo e degustativo, de aumento de fluxo aéreo nasal para reabilitar esses pacientes. Existem testes padronizados, com tipos e intensidades de cheiros usados na reabilitação.
A perda do olfato e do paladar pode interferir no trabalho, como no caso de enólogos. Além disso, pode ser fator de risco, em situações em que a pessoa não sente cheiro de gás de cozinha vazando, por exemplo.