É entre as quatro paredes dos hospitais que a pandemia se mostra arrasadora. Sobram pacientes combalidos e profissionais exaustos numa jornada diária que exige mais do que esforço físico e conhecimento. É preciso preparo psicológico. Os relatos colhidos para essa reportagem mostram a difícil missão de médicos, enfermeiros e outros integrantes das equipes das UTIs de Caxias do Sul para impedir mortes e amenizar os efeitos da covid-19 no corpo e na mente de homens e mulheres.
Com as unidades de tratamento intensivo lotadas em razão da pandemia, a dinâmica nos atendimentos mudou. Até mesmo as equipes mais experientes vivem agora em meio a um cenário de guerra, onde é preciso improvisar para acolher os pacientes da melhor maneira possível. Na prática, cada instituição foi obrigada a funcionar com dois hospitais dentro do mesmo espaço, uma vez que os pacientes infectados com o coronavírus precisam ficar isolados dos demais, o que exige estruturas e equipes diferentes. Blocos cirúrgicos, salas de recuperação e de emergência, leitos clínicos e de enfermariam se transformam em UTIs adaptadas, apesar de serem alas projetadas para atender pacientes em menor gravidade.
– Temos um fluxo interno que recomenda que as entubações ocorram na UTI porque trata-se de um procedimento complexo e sempre deve ser realizada pelo profissional mais experiente. Infelizmente, em algumas situações não há tempo para a chegada do paciente até o leito de UTI e a entubação acaba acontecendo no setor de emergência ou até mesmo na enfermaria – conta a médica intensivista Fernanda Francieli da Silva, 40 anos, que atua em UTIs do Hospital do Círculo e do Hospital Geral (HG).
Nesses setores, há equipamentos essenciais, como ventiladores mecânicos e monitores cardíacos para os sinais vitais. É o setor de maior preocupação, portanto, o que precisa de maior qualificação e cuidados dentro de um hospital, afinal é lá que há tecnologia e especialização para diversas intervenções de alta complexidade. Há profissionais de várias áreas da saúde com formação em cuidados críticos e preparados para colocar em prática medidas de suporte avançado de vida. São equipes que têm que estar sempre alertas para rápidas intervenções para tentar salvar vidas. Hoje, esses profissionais lidam com pacientes entubados em leitos improvisados em salas de emergência, de hemodinâmica e de enfermaria:
– As UTIs que já existiam são formadas com box separados e, com o número de casos, alas do hospital onde não eram alocados pacientes, como salas de recuperação e enfermarias, foram adaptadas para UTI. Não é o espaço físico adequado, mas acabou se transformando numa UTI com camas separadas, bomba de infusão para medicamento – explica o coordenador médico da UTI Covid do HG, Emerson Boschi, 40.
A lotação é máxima, sendo que há lista de espera para internação. Isso significa que quando um paciente morre ou tem alta, imediatamente entra o próximo da lista, conforme alerta o intensivista e cirurgião torácico Idésio Volkweis, 50.
– Se tem dez leitos dentro da UTI, mantemos os dez com pacientes internados, e normalmente, tem paciente pronto para ser internado, aguardando no setor. Não importa qual o horário em que o paciente que está na UTI saia do leito, seja por alta, óbito ou transferência, assim que ele sai, o leito é higienizado, seja de manhã, à tarde ou às 3h, e outro interna imediatamente no local – descreve o médico que trabalha nas UTIs da Unimed, do Circulo, do Virvi Ramos em Caxias e também do Hospital São Carlos, em Farroupilha.
A fonoaudióloga Tanisi Rebelo Crestani, 29, trabalha na oitos UTIs do hospital da Unimed. A função é essencial, pois auxilia na fala, alimentação e deglutição dos pacientes, assim como serve para avaliar, acompanhar e indicar uma via alimentar segura para reduzir o risco de broncoaspirações:
– Esses pacientes estão com falta de ar, muitas vezes com dispositivos de oxigênio e podem apresentar risco de incoordenação de respiração x deglutição, assim como alterações musculares em estruturas como boca, língua, faringe, laringe.
Tanisi complementa:
– Vivemos em um momento de muita tensão, preocupação e equipes esgotadas. Nossos pacientes que antes não eram conhecidos, hoje muitas vezes são pessoas do nosso círculo de amizade ou até mesmo nossos familiares.
Os hospitais estão sem margem de manobra para dar conta de tantos pacientes ao mesmo tempo seja com leitos, equipamentos e profissionais. O esgotamento de vagas UTIs na rede pública e privada impacta em todos os demais procedimentos. Isso começa pela demanda nas unidades de pronto atendimento (UPAs), que deveriam prestar apenas o primeiro olhar a um paciente crítico. Com a falta de leitos, as UPAs acabam mantendo o paciente por mais tempo do que deveriam, o que compromete a atenção aos outros doentes.Quem não está infectado, mas enfrenta um problema de saúde também é prejudicado, já que as cirurgias eletivas foram suspensas para garantir leitos para quem está infectado, uma vez que a doença avança rápido.
400 horas de plantão num único mês
A situação é mais crítica a cada dia porque Caxias do Sul é referência para diversas cidades da Serra que não tem UTIs nos hospitais. Emerson Boschi, do HG, afirma que a pandemia alterou o perfil de atendimentos.
– Não vivi nada semelhante. Atualmente, a UTI está muito diferente do que era antes da pandemia. A gente tinha pacientes com diversas patologias em pós-operatório de cirurgias de diferentes portes. Agora, a gente tem, na maioria das vezes ou na totalidade, pacientes com uma doença só, que é a covid-19. É uma doença grave, de uma mortalidade bem elevada e são pacientes que têm uma internação bem prolongada na UTI. Eles ficam muito tempo sedados, sem acordar, e que mesmo depois de tirar a sedação, ficam muito tempo na UTI até conseguir respirar sozinhos, até conseguir sair do aparelho, até conseguir se movimentar porque eles ficam com muita fraqueza muscular.
O relato da médica intensivista Fernanda Francieli da Silva é semelhante:
– Sou intensivista há 6 anos e sou também médica paliativista, o que nesse contexto de pandemia tem exigido muito trabalho. Nunca vivi nada parecido porque na pandemia de 2009 permaneci fora dos atendimentos da linha de frente. Me entristece muito a dúvida de muitos sobre a realidade que vivemos. Os números estão disponíveis em sites oficiais do governo. As pessoas não precisam se sentirem manipuladas, podem pesquisar e tirar suas próprias conclusões. As internações por outras patologias reduziram, mas temos pacientes internados por infarto, AVC, politrauma.
Idésio Volkweis trabalha em UTI há 22 anos. Para ele, a carga horária de agora é absurda, com mais de 400 horas/mês de plantão dentro das unidades.
– São noites e finais de semana, eu não considero nem o horário diurno, porque aos finais de semana tem sido 48 horas ou 60 horas de plantão. É obvio que nunca se viu nada parecido. Esse vírus mudou o mundo, e não sei quando ele vai voltar a algo parecido com o que era antes.
A situação é a mesma vivida pelo colega Roger Weingartner:
– Recentemente tive que realizar 12 plantões noturnos em 15 noites. O que outros colegas também estão fazendo. Teve uma tarde que a nossa equipe realizou seis entubações em seis horas. Parece uma nova doença dentro de outra que ainda não foi dominada. Regime muitas vezes de guerra da porta para dentro do hospital.
Outra mudança é no quadro de saúde. Volkweis lembra que os atendimentos de UTI envolviam pacientes razoavelmente estáveis em pós-operatório de uma cirurgia de grande porte ou um paciente pós-enfarte se recuperando de um cateterismo, ou seja, que não exigiam muitos procedimentos e manipulação.
– Hoje, os plantões têm sido com dez pacientes graves, onde se tem que intervir incessantemente, seja com ajuste de ventilação, ajuste de droga ou de procedimentos variados, como a questão que todos comentam de virar o paciente de barriga para baixo, chamado de prona, que estão sempre pronando e supinando, que é virar de barriga para cima, o tempo inteiro. A cada turno, tem três a quatro pacientes que tem que ser virados de um lado para o outro.
Cada manobra exige uma séries de cuidados: o paciente está anestesiado, com diversos acessos, como o tubo, drenos, sonda, um cateter na veia e na artéria.
– Tem que cuidar para não arrancar nada, posicionar bem o paciente, é algo trabalhoso, e que exige em média sete pessoas para virar o paciente. Alguns pacientes estão obesos e é necessário mais de sete pessoas. Então, para todo mundo e vai lá fazer isso, e o resto do trabalho espera _ ressalta o médico.
"Nunca vi tantos óbitos como nesse último ano"
Os médicos não fazem o trabalho sozinho. Eles precisam de uma equipe preparada e com conhecimento. A técnica de enfermagem Vanderléia de Oliveira, que atua na UTI do Virvi Ramos, também relata que o procedimento de prona e supina tem sido realizado com mais frequência:
– Tem dias que três ou quatro pessoas são pronadas e supinadas e isso demanda dedicação de toda equipe. A tensão aumentou muito com o aumento de casos porque é preciso cada vez mais os leitos em lugares improvisados. Os espaços são limitados e de difícil manejo. Com a superlotação a situação no hospital mudou muito, e a cada paciente que sai entra outro e não se sabe o que vai acontecer porque ele chega bem e conversando e depois de uns minutos tem que ser entubado. Nesse momento tem correria porque tem que preparar o material de entubação e os sedativos e ainda não deixar de dar atenção aos outros pacientes – desabafa ela.
A técnica de enfermagem Andressa Rohde, 26, trabalha há cinco anos em hospitais. Atualmente atua nas UTIs do Pompéia e do Geral.
– Nunca vi tantos óbitos como nesse último ano. Quando não eram pacientes covid, víamos a evolução e conseguíamos ter aquele sentimento de dever cumprido. Hoje, são pacientes mais graves do que estávamos acostumados a receber, e que exigem um cuidado maior e uma atenção a mais e isso gera uma exaustão física e emocional porque a maioria dos casos acaba evoluindo e eles não resistem. É inexplicável e ficamos com um sentimento de incapacidade.
"Aqueles soluços, as frases da despedida"
Nos corredores do hospital, o clima é de tristeza, acompanhada pelo cansaço e pela angústia a cada partida, sem uma despedida. Acompanhar a dor das famílias afeta toda a equipe.
– Já não lembro o número de vezes que dei a notícia do óbito e acompanhei o familiar até o leito, onde há uma porta de vidro que separa o paciente do familiar. Aquelas mãos espalmadas sobre o vidro, aqueles soluços, as frases da despedida. A equipe toda sempre se comove, na maioria das vezes também choramos – desabafa Fernanda Francieli da Silva.
Ela ressalta que os dias são desafiadores por ter que transitar entre a sobrecarga de trabalho, o sofrimento dos pacientes e os medos.
– Olhar nos olhos do paciente e afirmar que ficará tudo bem, quando sabemos da alta mortalidade envolvida nesse contexto foi uma habilidade a ser desenvolvida. Também não podemos permanecer em nosso luto. Há outro paciente a ser cuidado. Procuramos nos fortalecer uns nos outros e nos pacientes que superam esse quadro dramático.
A técnica de enfermagem Andressa Rohde relata que a inquietante sensação de ver a dor das famílias.
– Não tem como não se comover com tanta gente morrendo. Ficamos com medo por nossos familiares também e pelas pessoas que nos cercam.
O coordenador médico da UTI Covid do Hospital Geral (HG), Emerson Boschi, lembra que a maioria dos profissionais de saúde estão trabalhando em mais de um lugar para atuar nas UTIs novas que foram criadas.
– Há uma sobrecarga grande nos profissionais, além de todo o cansaço físico e mental por causa da pandemia, de ficar sem ver seus familiares e o medo de levar a doença para casa.
A esperança de recuperação dos pacientes também move os profissionais para que superem os medos:
– Às vezes dá vontade de fugir, mas não é assim que conseguimos enfrentar o medo, bem pelo contrário é com a união de todos os colegas que podemos dar um melhor atendimento a quem precisa, tendo empatia pela pessoa que chega a UTI e que está com medo. Nós nunca esquecemos que aquela pessoa é o amor de alguém e em alguns momentos temos que lembrar que também somos o amor de alguém, que temos que nos desligar do trabalho quando saímos para nos dedicar as nossas famílias e cuidar dos nossos – afirma a técnica de enfermagem Vanderléia de Oliveira.
Por outro lado, há situações que compensam. A fonoaudióloga Tanisi Rebelo Crestani ressalta que é gratificante auxiliar no primeiro momento de fala dos pacientes depois de dias ou até meses sem falar:
– É emocionante também escutar o primeiro agradecimento a equipe, o relato da saudade e a preocupação com seus familiares, a primeira oferta de alimentos após tanto tempo sem se alimentar pela boca e sentir o prazer de um alimento. Acredito que o maior apoio da sociedade é a conscientização e a realização das medidas de cuidados tão faladas por todos.
Sem equipe para abrir novos leitos
Há uma legislação específica para o funcionamento de uma unidade de terapia intensiva. Para cada 10 leitos, é preciso um médico, não necessariamente intensivista, mas que precisa er experiência em plantões de urgência. Uma ala com cinco a dez leitos tem que ter uma enfermeira, sendo que, para cada dois leitos, é necessário um técnico de enfermagem. Para montar uma UTI nova, por exemplo, um hospital precisa ter uma equipe preparada, fora o pessoal da limpeza e demais profissionais de retaguarda.
Com tantos profissionais envolvidos, fica claro porque os hospitais não conseguem expandir as UTIs. Não basta, portanto, ter dinheiro e equipamentos, falta é a mão de obra.