Com o objetivo de não perder de vista o tamanho da pandemia e não permitir que ela seja menosprezada, o Pioneiro monitora, desde março, os números do coronavírus em 65 cidades do Nordeste gaúcho: quantas pessoas tiveram testes positivos para a covid-19, quantos são considerados recuperados e quantos, infelizmente, morreram. Nesses casos, além de números, são incluídos neste monitoramento idade e sexo da vítima, informações repassadas pelas prefeituras ou pelo governo do Estado. Essa contagem permitiu atestar nesta semana que a região perdeu, ao longo de nove meses, mais de mil moradores para a doença. É como se a população de União da Serra, o menor município entre os 65, com 1.118 moradores segundo estimativa do IBGE, tivesse desaparecido.
Mas pessoas não são números. Quem sabe bem disso é a enfermeira Tâmara Danelon Muchulski, 42 anos. Servidora da prefeitura, ela trabalhava na Central de Regulação de Leitos de Caxias do Sul e recebia as informações de todos os hospitais de casos suspeitos, confirmados e óbitos da pandemia. Até Alex Maciel Rosa, companheiro dela há 15 anos, precisar ser internado, no fim de setembro, para remover um tumor benigno do cérebro, contrair a covid-19 na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e morrer, dois meses depois.
— É triste quando a gente vive na pele essa realidade. Uma coisa era colocar no papel, mas depois, quando um dos nossos vira um número, é horrível — conta Tâmara, emocionada.
Alex tinha 38 anos e era técnico em enfermagem da prefeitura. Forte e saudável, ia para a academia todos os dias e, até então, nunca tinha precisado ir no médico. A cirurgia neurológica foi marcada para quatro dias depois do diagnóstico e o cronograma previa dois dias de UTI e três de internação, até ele poder retornar para casa. Mas aí veio o imponderável da contaminação. Não há como ter certeza, mas Tâmara acredita que, em um contexto sem a covid-19, Alex provavelmente sairia da UTI sem maiores complicações. Não foi o que aconteceu.
— Ele estava usando muito corticoide, aí adquiriu covid. Chegou a se curar e acabou falecendo de uma infecção secundária porque o pulmão dele ficou comprometido e, com uma pequena infecção, ele não resistiu. Os médicos também apostavam na juventude dele. Mas, no fim, não deu.
Diferentemente de tantas outras vítimas da doença, Alex pôde ser velado devido ao tempo que transcorreu entre a contaminação por covid e o falecimento. Na cerimônia, familiares e amigos que ele cativou ao longo da vida, trabalhando no Postão 24h, no Samu, no Caps e em UBSs, puderam se despedir.
Extrovertido, simpático e atencioso, deixou uma lacuna na atenção aos pacientes que atendia na rede pública. Em casa, ficaram Tâmara e os três filhos: Felipe, de 18 anos, Clara, de 12, e Guilherme, de nove, com uma rotina esvaziada sem o pai engraçado que dormia pouco e fazia parecer que o dia tinha mais do que 24 horas. Também ficaram os pais, idosos, que se privaram de ver o filho ao longo de todo o ano passado em virtude da pandemia.
— Todo mundo sofre com a morte, mas é quem convive que sente mais. A gente perdeu o nosso pilar. O pessoal que ainda aglomera, que desrespeita as regras não tem noção do que é ficar 60 dias indo no hospital para visitar quem tu amas e a pessoa intubada. Quem não perdeu, não tem noção. Tomara que não tenha, porque é uma dor horrível — conta a enfermeira.
Sem despedidas, o sofrimento é agravado
Caxias perdeu na noite de 1º de janeiro um de seus moradores mais dedicados. Seja no atendimento ao público, como assessor parlamentar na Câmara de Vereadores, na torcida pela SER Caxias ou nas causas sociais e na proteção aos animais, Inácio Délcio Azambuja Sobrinho gostava de viver em função do próximo. Assessor de Felipe Gremelmaier (MDB) desde 2007, ele faleceu por complicações da covid-19 aos 65 anos.
Assim como Alex, Inácio também ingressou no sistema hospitalar por outro motivo que não a covid, mas acabou não resistindo devido à doença. Ele precisou ser internado para tratar uma pneumonia e, quando estavas prestes a ter alta, quase duas semanas depois, testou positivo para o vírus. A doença encontrou o assessor, até então saudável e sem comorbidades, já debilitado.
— Os médicos acharam melhor ir para a UTI para garantir o respirador, por ele já estar com o pulmão fragilizado. Ele foi consciente, mas acabou sendo intubado para se acalmar porque ficou muito nervoso e com muito medo. Pediu muito para tirar ele de lá, dizia que dali era para a morte. Deve ter passado uma noite muito difícil com o que viu ali. No dia seguinte, foi intubado e aí a gente não teve mais a oportunidade de falar com ele — conta a filha mais velha, Natália, que fala com serenidade, mas também com dor e tristeza sobre o pai, que foi exemplo de solidariedade e dedicação a quem precisava de ajuda.
Mais do que o trabalho de atender demandas no gabinete e encaminhar possíveis soluções, Inácio não limitava a atenção aos outros apenas na profissão. Ao lado da mulher Eliza, distribuía alimentos nas ruas em madrugadas de inverno. Com a filha mais nova, Mariana, recolhia e procurava novos donos para animais abandonados. Incorporava os atos na rotina e não se preocupava em contá-los. Muitas ações só vieram à tona após o falecimento, quando a família passou a receber ligações e mensagens de amigos e conhecidos que não puderam participar de uma despedida formal a Inácio. Além da mulher e das filhas, ele deixa a mãe, Maria Francisco, 89, que não se conforma com a partida do filho que tanto se preocupou em resguardá-la do vírus.
— Fica um vazio que não é preenchido. A gente não sabe que hora vem a morte, sabe que ela existe e que quando for a hora a gente vai poder se despedir, ficar perto da pessoa, os amigos vão te confortar. Com a covid, é tudo tirado da pessoa. Todo esse direito ao ritual que te ajuda a elaborar um pouco melhor o luto, é tirado — lamenta Eliza.