Trabalhar atrás de um volante de caminhão faz com que muitas notícias importantes tenham de ser recebidas longe de casa. Quando Hélio Zuleger Gerhardt, 44 anos, descobriu um câncer na coluna, ele não estava em Bento Gonçalves, cidade onde reside. Eram meados de junho de 2018 quando o caminhoneiro aposentado passava por Mato Grosso e precisou ser hospitalizado por lá mesmo. A volta para casa ocorreu só em dezembro daquele ano:
— Fiquei seis meses de cama lá, fiz quimioterapia. Quando voltei, ainda fiquei no hospital, fiz cirurgia. Me viraram de cabeça pra baixo para achar o câncer e me liberaram como se não tivesse mais. Em metade de fevereiro, me saiu outro tumor, por cima do osso do peito. Comecei tudo de novo, exame, quimioterapia. Terminei (as sessões de quimioterapia) em agosto do ano passado — recorda.
Diagnosticado com um Linfoma Não Hodking, Hélio teve apoio da Aapecan de Bento Gonçalves ao longo do tratamento. Além de fornecer medicamentos que ele não tinha como financiar, a entidade promovia, antes da pandemia, grupos de apoio, passeios e eventos, que Hélio passou a frequentar junto à esposa, Neusa Freitas. Para ele, foi uma forma de se distrair da doença, que afetou as quatro últimas vértebras da coluna vertebral dele. Com muita dor nas costas, ele não pôde mais trabalhar e precisou se aposentar por invalidez, depois de cerca de 15 anos nas estradas:
— Eu era acostumado a levantar às 5h, ir dormir às 23h, meia-noite. Às vezes, virava a noite trabalhando. De uma hora pra outra, tu paras. A cabeça fica a mil.
O escape da quebra de rotina veio sobre quatro rodas. Em casa, Hélio começou a navegar pelo YouTube e descobriu canais como o Virando Mundo e o Casal Lavanda, voltados à viagens, especificamente, com Kombis. Assim, acompanhando os kombeiros, nasceu a ideia de comprar um veículo do mesmo modelo, com o objetivo de restaurá-lo e, um dia, rodar a estrada de novo.
O caminhoneiro aposentado relata que não tinha como adquirir uma versão nova, portanto decidiu comprar uma “velhinha”. A Kombi, que chegou na garagem do casal de guincho, hoje está rodando bem, cerca de um ano e nove meses após o início da reforma:
— Eu trabalho um pouco por vez, o corpo não deixa. De manhã é meu horário de trabalho, de tarde descanso. A coluna lateja — conta.
Mesmo com a dor, Hélio diz que ter restaurado a Kombi foi a saída que encontrou para não ficar o tempo inteiro dentro de casa. Ele não poderia mais trabalhar na estrada, mas ficar o dia todo no sofá não lhe parecia uma boa opção:
— A gente fica bem debilitado, bem deprimido. Eu tive a notícia (do diagnóstico) quando ia renovar a carteira. Mal ou bem, era meu ganha-pão, o orgulho que eu tinha, ter a carteira categoria E. Vinha de geração — acrescenta ele, que é filho e neto de motoristas.
Foi na internet que Hélio também aprendeu sobre chapeação. A mecânica básica ele já sabia por conta da profissão. Assistindo a vídeos, ele aprendeu até a soldar. Toda a restauração foi feita na pequena garagem de casa. Quando precisava acessar o outro lado do veículo, o caminhoneiro tinha de manobrá-lo. "Mal e mal cabia", explica. Revisitando o processo, do início à conclusão, Hélio diz que o auge foi quando conseguiu pintar a Kombi:
— Não ficou perfeita como uma restauração profissional, mas de como ela estava para o jeito que está agora, tendo sido feito por uma pessoa que nunca fez chapeação, está ótimo. Quando eu vi ela toda pintada foi a melhor parte — orgulha-se.
Antes de voltar a pôr o pé na estrada, na companhia da esposa, Hélio planeja transformar a Kombi em motorhome, etapa que ele mesmo quer fazer. A ideia do itinerário é começar pelo Rio Grande do Sul, explorando as regiões que eles ainda não tiveram a oportunidade de conhecer:
— Com o caminhão, tu só vais nas cidades principais. Agora, pensamos em ir para a Praia do Cassino e ir subindo, Santa Maria, Missões, Santa Rosa, até conhecer todo o Rio Grande.
Nascido em São Paulo, Hélio foi criado em Farroupilha e se sente gaúcho de coração. Depois de rodar o Estado, ele quer subir para o Brasil. Mas com uma ressalva importante: se acabar a pandemia.
— Ainda mais eu, tenho que me cuidar — ressalta Hélio, que precisa continuar fazendo exames por, pelo menos, cinco anos. Apesar de ter finalizado o tratamento contra o câncer no ano passado, ele segue tomando medicamentos para dormir e controlar pressão e diabetes, e já tem marcada uma tomografia de avaliação, para acompanhar seu estado de saúde.
A Kombi do Hélio começou a andar nas últimas semanas, quando ele deu as primeiras voltas para movimentar o óleo. Os ajustes que faltam no interior do veículo são pouco perto do desejo de voltar a rodar por aí:
— Falta bastantinho, mas tá quase — finaliza, com otimismo, o mais novo kombeiro.