Desde que o Portal da Transparência passou a publicar a lista dos beneficiados do auxílio emergencial com valores entre R$ 600 e R$ 1,8 mil, começaram a surgir nomes de caxienses que, aparentemente, não teriam direito a ele, por não se encaixarem em todos os critérios do programa.
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Há empresários e profissionais liberais que mantiveram a rotina de festas e ostentação nas redes sociais, mas ainda assim recorreram ao dinheiro público. Há mulheres casadas que recorreram ao governo federal dizendo-se chefes de família, embora vivam confortavelmente com seus maridos e pai de seus filhos.
O auxílio emergencial foi criado por lei, em 2 de abril, com caráter assistencial e oferece três parcelas de R$ 600 a trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos e desempregados diante da crise causada pela pandemia do novo coronavírus, que cumpram todos os requisitos previstos no programa. De acordo com a lei, o beneficiário do auxílio não deve possuir emprego formal ativo. A renda individual em 2018 tinha de ser de até R$ 28.559,70, ou seja, em 2019 não precisou declarar imposto de renda, ou fazer parte de uma família (considera-se família pessoas que compartilham o mesmo endereço) cuja renda mensal não ultrapasse os três salários mínimos, R$ 3.135.
Com a exposição, alguns recebedores foram às redes sociais para se explicar. A alegação mais comum é ter pedido o benefício para ajudar alguém próximo ou fazer doação do dinheiro.
Ajuda a irmão
A dentista Fernanda Frigeri Martins Nora, ex-princesa da Festa da Uva e sócia-proprietária de uma clínica de odontologia, que tem o marido como sócio, postou um texto dizendo que se cadastrou no programa e que iria entregar o dinheiro ao irmão que está desempregado:
"Eu, Fernanda, em que pese ter me cadastrado, não transferi para minha conta os recursos do benefício do auxílio emergencial e não o farei, meu irmão, felizmente, conseguiu cadastrar-se e poderá receber o auxílio que com certeza lhe será importante. Assumo meu erro, mesmo que tenha sido por amor (na melhor das intenções), porque o dinheiro do auxílio emergencial não me pertence, logo não posso repassar nem para meu irmão nem para ninguém". Em contato com um familiar, a reportagem foi informada que Fernanda não iria se pronunciar.
Provedora de família
A representante comercial Melissa Guerra Simões também se declarou provedora da família, conseguiu receber duas parcelas de R$ 1,2 mil e ainda tem uma terceira a retirar. Em um dos posts em rede social, ela admite ter pedido o benefício alegando que usou o dinheiro para ajudar uma terceira pessoa: "Eu pedi sim... com isso ajudei uma pessoa que me ajuda já mais de 10 anos!!!".
Contatada por telefone pela reportagem na tarde de quinta-feira, confirmou o fato, disse que repassou os valores a essa outra pessoa que teve o cadastro negado, porque ainda tinha vínculo trabalhista. Melissa disse ainda que não poderia fazer essa doação com dinheiro próprio porque a renda dela como representante comercial caiu muito nesse período de pandemia e que a empresa do marido, que fabrica utensílios domésticos com design e luxo, está passando por dificuldades financeiras.
Regras para receber o auxílio
:: Ter mais de 18 anos de idade; salvo no caso de mães adolescentes
:: Não ter emprego formal ativo
:: Não receber benefícios pagos pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), como aposentadoria, pensão ou Benefício de Prestação Continuada (BPC)
:: Não ser beneficiário do seguro-desemprego, seguro defeso ou de programa de transferência de renda federal, com exceção do Bolsa Família
:: Pertencer a família com renda mensal por pessoa de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou com renda mensal total de até três salários mínimos (R$ 3.135)
:: Em 2018, não ter recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70, ou seja, em 2019 não precisou declarar imposto de renda
:: Ser microempreendedor individual, contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social ou trabalhador informal, mesmo que desempregado
Entre os beneficiários, empresários, dentista, CEO e educadoras
Chamou atenção, também, o pedido feito pela dentista Daniele Bressanelli Koch, que vive em Miami há mais de 10 anos, mas aparece no cadastro como moradora de Caxias que recebeu R$ 600 em abril. A reportagem conversou com uma familiar que explicou que Daniele não fez o cadastro e teve o CPF usado indevidamente. Garante que a família está procurando informações sobre o que aconteceu e que providências pode tomar.
– Foi depositado em uma conta do Rio de Janeiro. Não teve cadastramento, ocuparam o CPF. Estamos procurando a Receita Federal, a polícia para ver o que aconteceu – justificou.
Procurado na sexta pela reportagem para indicar se o contato com as autoridades já havia sido feito, o familiar não retornou as mensagens ou ligação.
Ariane Heinen apresenta-se no Linkedin como CEO da Heinen Capital & Consulting, empresa responsável pela estruturação de negócios, que já realizou mais de US$ 1 milhão em intermediações. Diz ter atendido mais de 100 mil clientes e estado 12 vezes na China, prospectando mercado, acompanhando empresários em missões e feiras empresariais. Ela também aparece como sócia da Rio Vermelho Participações Societárias Ltda, aberta em 2015 e com capital social de R$ 3,5 milhões. Ela recebeu R$ 1,2 mil em abril, quantia paga a mulheres que se autodeclaram provedoras da família. Contatada pela reportagem, ela disse que está morando em Santa Catarina, que está sem trabalho desde março e que é independente dos recursos da família, por tudo isso precisa do benefício. Sobre a sociedade na Rio Vermelho, disse que é uma holding da família, mas que ela não recebe lucro. Nas redes sociais, exibe foto da casa à beira-mar.
Michelle Luisa Grazzana Santarem pediu e recebeu R$ 1,2 mil em abril. Contudo ela é casada com empresário que ocupa cargo de diretoria de um grupo de revendedoras de veículos com 20 lojas no Rio Grande do Sul. Michelle tem graduação em Direito e Licenciatura em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e mestrado em Educação também pela UCS. Fotos em rede social mostram uma vida de luxo, repleta de viagens. O aniversário, em março, por exemplo, foi comemorado no Belmond Copacabana Palace, hotel no Rio de Janeiro cujas diárias partem de R$ 1,8 mil. Procurada pela reportagem, ela não retornou às ligações nem respondeu às mensagens.
O empresário Samir Bombana também exibe uma vida incompatível com a necessidade de R$ 600 de auxílio emergencial, recebidos em abril. Ele é proprietário da empresa Dotclub Soluções Em Informática Ltda, que possui matriz e três filiais e capital social de R$ 1 milhão, casado com uma médica, com quem costuma viajar pelo mundo. Procurado pela reportagem, ela não retornou às ligações nem respondeu às mensagens.
PF promete investigar
O superintendente da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, delegado José Dornelles, promete investigar possíveis fraudes, usando para isso cruzamento de dados e ferramentas cibernéticas.
As irregularidades no auxílio emergencial são decorrência de fraude, oportunismo ou engano? Um pouco de cada, constatam órgãos de fiscalização, como o Tribunal de Contas da União (TCU), que já identificou 620 mil brasileiros suspeitos de terem recebido o auxílio emergencial de forma ilegal. Parte deles, em território gaúcho. As possíveis irregularidades foram constatadas a partir de cruzamentos de dados e de declarações de renda, CPF e bens em nome dos beneficiados.
Isso ocorre porque basta atestar necessidade e descobrir brechas nas categorias profissionais contempladas. É o caso de quem tem microempresa individual (MEI): há um trecho da portaria governamental que prevê que esse tipo de profissional pode ser contemplado.
Mas grande parte desses donos de MEI não se enquadra em outra exigência do benefício: só tem direito ao auxílio quem não recebeu, em 2018, rendas tributáveis acima de R$ 28,5 mil. Isso significa, em média, R$ 2,3 mil de rendimentos ao mês (formais ou informais). Mesmo assim, esses microempresários recebem o auxílio, por falhas na fiscalização do programa.
Denúncias
:: O canal para registro de denúncias de fraudes é o sistema Fala.Br, disponível neste link ou pelos telefones 121 ou 08007072003.
620 mil pagamentos bloqueados
A Controladoria-Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU) analisaram 30,5 milhões de pagamentos do auxílio emergencial desde abril. Foram encontradas inconformidades em cerca de 620 mil benefícios, o equivalente a 2% do total, conforme dados obtidos pelo programa Fantástico, exibido pela RBS TV e Rede Globo. Já a CGU identificou muitos donos de bens ou de renda incompatíveis para o recebimento do auxílio, tais como:
:: 86.632 proprietários de veículos com valor superior a R$ 60 mil
:: 74.682 sócios de empresas que possuem empregados ativos
:: 22.942 beneficiários com domicílio fiscal no Exterior
:: 21.856 proprietários de embarcações de alto custo
:: 17 mil mortos em cujo nome foram feitos pagamentos do benefício.
:: 85 doadores de campanha em valor maior do que R$ 10 mil
O que diz o Ministério da Cidadania
O Ministério da Cidadania, responsável pela gestão do auxílio emergencial, afirma trabalhar diuturnamente para a evolução do maior benefício já criado, em âmbito nacional, para assistir à população mais vulnerável. Os recursos destinados para essa ação já passam da casa dos R$ 150 bilhões.
A tarefa está longe de ser fácil, diz o ministro Onyx Lorenzoni, pela exígua velocidade para construir, implantar e revisar de forma constante cada processo de trabalho.
O auxílio emergencial conta com um modelo de governança que embute parcerias de controle e fiscalização com a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU). Isso gera trilhas de auditoria que são usadas para identificar, tomar ações de recuperação e retroalimentar com informações para a melhoria na análise de cada lote de solicitações do auxílio emergencial. As informações inseridas no site e no aplicativo do auxílio emergencial são cruzadas com vários bancos de dados oficiais de documentação e situação econômica e social.