A região Nordeste do Rio Grande do Sul, que contempla a Serra Gaúcha, ultrapassou uma marca triste nesta terça-feira (7) na pandemia do coronavírus: 100 pessoas perderam a vida após contraírem a covid-19. Um número expressivo. Em 118 dias desde que se confirmou o primeiro caso positivo, em 11 de março, até esta manhã, a infecção foi mais letal que os acidentes de trânsito na região em todo 2020, tradicionalmente um dos maiores causadores de óbitos no Estado. Nos seis primeiros meses desse ano foram 59 vítimas nas estradas.
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Um número representativo e que pode ter diversos comparativos para expressar a quantidade de pessoas que tiveram suas vidas abreviadas. Para se ter uma ideia, a terceira maior tragédia da aviação brasileira ocasionou 99 mortes. Seria como se aquele Fokker 100 da TAM, do voo 402, que deixou Caxias do Sul na manhã de 31 de outubro de 1996 — apenas com a tripulação — e viria a cair após conexão em São Paulo, estivesse voando apenas com moradores da Serra.
Só que não são apenas números. São rostos, histórias, avôs, pais, mães, filhos e pessoas que deixaram inúmeros exemplos para os seus familiares. São 100 famílias arrasadas e que tiveram negadas o direito ao velório.
— A pior coisa desse vírus é a crueldade de não poder fazer um ritual de despedida, um velório para a pessoa elaborar uma perda. Isso é a coisa mais triste para um ser humano, ser negado o direito da despedida — afirma Emerson de Vargas, filho de Julieta de Vargas, que morreu no dia 30 de junho por covid-19.
A covid-19 fez com que tudo isso fosse alterado. Os corpos saem dos hospitais em um saco totalmente fechado e dentro de um caixão lacrado. Existe uma pequena janela para que os familiares possam se despedir, mas sem aproximação da urna fúnebre. Dali ela sairá direto para um túmulo ou para a cremação.
— Os rituais são os que nos consagram humanos. O ritual fúnebre oferece um setting organizado que tem início, meio e fim. Então, ele se torna um organizador psíquico que dá concretude para morte, o fator mais importante do processo. Ele é um dos rituais mais arcaicos e que nos mantêm humanos. Esse processo organiza os familiares para que façam a elaboração do seu luto pela expressão do vínculo com a pessoa perdida — explica a psicóloga Isabel Fedrizzi Caberlon.
Essa dor é ainda maior se pararmos para analisar esse processo todo desde a infecção. A maior parte dessas vítimas ficou hospitalizada por no mínimo uma semana, isolada dos familiares. Os contatos com os entes mais próximos, enquanto foram possíveis, eram por telefone e com apoio de equipes médicas. O contexto exige muita força para quem fica e precisa assimilar esse trauma.
— A família não acompanha o doente na sua internação hospitalar, ele não pode estar próximo e não sabe o quanto essa pessoa está sofrendo. Isso é muito doloroso. É doloroso saber que a pessoa está sofrendo e não pode segurar a mão, acalentar, não poder consolar. Isso foi roubado pelo contágio. Toda a perda se torna um trauma, independente a forma, torna as pessoas frágeis e desestabilizadas — complementa Isabel.
Esses fatores mostram o tamanho da tragédia causada por um vírus e que ainda não tem uma cura consolidada ou até uma vacina. Esses números devem crescer ainda mais no mês de julho, quando se projeta o pico da transmissão e da letalidade na Serra. Mais vidas serão abreviadas. A única forma eficaz para que se tenha um controle é o distanciamento social controlado.