Estabelecer comunicação é uma das principais dificuldades enfrentadas por pessoas com surdez ou deficiência auditiva. A falta de acessibilidade, que vai desde filmes nacionais sem legenda até a falta de intérpretes em locais públicos, não é novidade para quem, diariamente, acaba precisando buscar formas alternativas de adaptação.
Com a chegada da pandemia, porém, algumas dificuldades que já eram sentidas pela população surda parecem ter sido agravadas, como ocorre com o acesso à leitura labial. O uso de máscaras recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em prevenção à covid-19, impede que a linguagem convencional seja compreendida por quem não pode escutar.
A falta de compreensão por parte da sociedade ouvinte motivou a publicação de um apelo da professora Débora Gobatto Gasperin, 39, que é surda. Até esta quinta-feira (23), o texto postado na página pessoal dela no Facebook há pouco mais de uma semana somava mais de 1,6 mil compartilhamentos e mais de 700 reações. Para ela, o engajamento reafirmou a dificuldade que se coloca agora para surdos de todo o Brasil e também a importância de estabelecimentos comerciais e órgãos públicos criarem meios de acessibilidade para garantia da inclusão.
Junto de um texto, que explica a situação, Débora também compartilhou com amigos das redes uma foto, usando máscara e exibindo a mensagem que reforça a necessidade de leitura labial, sugerindo que pessoas que não conheçam a Língua Brasileira de Sinais (Libras) baixem suas máscaras no momento de falarem com algum surdo, ou utilizem a escrita.
— Eu estava cansada de ir aos lugares e me sentir desconfortável, desrespeitada e ignorada. Como sou surda oralizada, eu falo, muitas pessoas não levam a sério e pensam que se eu falo, também ouço ou ainda que se elas gritarem eu vou entender. Surdez e mudez são deficiências diferentes. As pessoas surdas apresentam condições físicas e fisiológicas necessárias para falar. Algumas não falam porque não foram ensinadas, outras porque acham que a língua favorece a efetivação e a agilidade na comunicação, e outras ainda por opção — relata a moradora de Farroupilha, que leciona em Caxias do Sul, na Escola Estadual Especial de Ensino Médio Helen Keller, e integra a Sociedade de Surdos de Caxias do Sul (SSCS).
Segundo ela, em muitos comentários as pessoas questionaram a sugestão de baixar a máscara, uma vez que isso poderia propiciar a contaminação que o mesmo dispositivo busca evitar.
— Era um detalhe que eu já imaginava que iriam comentar mas, mantendo a distância da pessoa que está falando, não tem problema, até porque o surdo também estará usando máscara. Além disso, eu dei duas opções: baixar a máscara ou escrever. A segunda alternativa faria o atendimento demorar mais. O melhor seria se todos soubessem Libras — avalia Débora.
A professora lembra de iniciativas, como as máscaras adaptadas, que resolveriam este dilema. Trata-se de um modelo criado por uma jovem estadunidense que estuda educação para surdos, que possui uma parte transparente, permitindo que a boca de quem a usa fique visível e, assim, acessível para quem depende da leitura labial. O modelo foi reproduzido em algumas cidades brasileiras, mas ainda não é encontrado com facilidade.
— O problema é que muita gente acha que nós, surdos, devemos usar. O ideal seria que os estabelecimentos comprassem, nem que seja uma ou duas unidades, para usar somente quando houver necessidade — comenta.
Em Caxias do Sul, a reportagem encontrou apenas um ateliê que produziu o modelo. Conforme a proprietária, apenas duas unidades foram feitas, sob encomenda de uma cliente.
"Já era difícil, agora ficou ainda pior"
Conforme a presidente da Sociedade de Surdos de Caxias do Sul, Francine Pedrotti, a impossibilidade de realizar a leitura labial devido ao uso das máscaras é um dos maiores desafios enfrentados neste momento pelos surdos.
— Antes da pandemia ocorrer, já era difícil a comunicação com o público ouvinte. Agora, com a utilização de máscaras, fica ainda pior, pois não podemos pegar papel e caneta porque o vírus pode ser transmitido. Não podemos escrever no celular porque temos que ficar pelo menos a um metro de distância das pessoas. E agora? — questiona a assistente administrativa, que também é surda.
A entidade que ela representa conta com 85 sócios, surdos e ouvintes, moradores de Caxias do Sul e cidades próximas, como Carlos Barbosa, Farroupilha e Bento Gonçalves. Criada há 33 anos, a sociedade tornou-se um espaço de aprendizado e também interação para surdos e ouvintes.
Além do agravamento na comunicação vivenciado neste momento pelas pessoas que dependem da leitura labial, Francine relata que o distanciamento também está sendo desafiador para muitos sócios. Isso porque, segundo ela, existem casos de adultos, adolescentes e crianças que acabaram ficando sem contato social, uma vez que as famílias pouco ou nada sabem de Libras.
— Os encontros faziam com que esses casos específicos e todos os outros surdos se sentissem bem por estarem conversando e brincando com pessoas iguais a eles. Mas, felizmente, temos a tecnologia para ajudar, videochamadas nunca foram tão utilizadas nas nossas vidas, o que é muito bom pois conseguimos nos comunicar. Não tão bem quanto de forma presencial, mas conseguimos — relata.
Conforme a presidente, inúmeros protestos e outras ações já foram realizados no intuito de dar visibilidade à causa, mas o reconhecimento e medidas que facilitem a comunicação não são tomadas pela população. Ela acredita que caberia aos órgãos públicos a realização de campanhas, divulgações, promoção de cursos de Libras para ouvintes, bem como a obrigatoriedade do idioma nas escolas e de intérpretes no comércio.
— Todos deveriam tornar o olhar empático pela comunidade surda. Somos iguais a qualquer outra pessoa!