De setembro a dezembro do ano passado, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Caxias do Sul reservou uma sala para acolher e ouvir vítimas da violência antes do registro do boletim de ocorrência. Munidos de formulários, profissionais de Psicologia e estagiários entrevistaram 124 mulheres. Das conversas que aplacaram o medo e a ansiedade, surgiu uma pesquisa (ver resumo abaixo).
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O trabalho não teve a pretensão de chegar a uma conclusão definitiva sobre a violência doméstica, afinal, estudos anteriores já apontaram um perfil das vítimas na cidade. Mas ao quantificar, novamente, as selvagerias e expor as nuances da intolerância masculina, a equipe chamou a atenção para a importância de acompanhamento psicológico nas delegacias. O trabalho foi desenvolvido pelos integrantes do Projeto Hora da Vara de Violência Doméstica de Caxias do Sul em parceria com a Deam.
O serviço disponível na rede pública ajuda a romper um ciclo que já matou 20 mulheres nos últimos quatro anos. O desafio é torná-lo rotina na delegacia. O entendimento é de que o acolhimento por profissionais ou estudantes da Psicologia antes da comunicação de um crime permite uma melhor compreensão sobre a condição da mulher e dos atos de violência sofridos. É normal que muitas mulheres, já na saída da delegacia, desistam de seguir adiante na responsabilização do agressor ou de buscar apoio. Esse caminho a leva de volta para o criminoso que ameaçou, humilhou e bateu. E assim persistem os abusos.
São 12,5 mil vítimas cadastradas no Centro de Referência da Mulher (CRM) de Caxias. É como se uma em cada 20 residentes na cidade tivesse sido alvo de ameaças, humilhações e agressões, considerando a estimativa populacional de 240 mil mulheres. O histórico de atendimentos do CRM indica que uma vítima leva, em média, 10 anos para dar basta ao ciclo da violência no município. É muito tempo e isso tem origem na dificuldade para ela reconhecer que precisa reagir com firmeza. Os dados abrangem o período 1999-2019. O curioso é que boa parte dos casos não veio à tona de forma espontânea. Houve busca de vítimas a partir de ocorrências policiais, situações identificadas em postos de saúde e até mesmo nos cadastros da Secretaria de Habitação.
— Começa com ofensa e vai evoluindo. O atendimento psicológico ajudava as vítimas a identificar as violências que elas nem percebem que sofrem — diz a diretora de Proteção Social da Secretaria Municipal de Segurança, Raquel Dessoti.
A inexistência de suporte psicológico nas delegacias é brecha citada pela titular da Deam, delegada Carla Zanetti. A escuta qualificada ajudaria a vítima a organizar os pensamentos, reduziria seus receios e identificaria outros fatores por trás da denúncia. Parece pouco, mas faz enorme diferença. Nas respostas obtidas das entrevistadas, há dados chocantes, como atos sexuais praticados contra a vontade de esposas e namoradas, tipo de estupro que paira nas sombras e raramente consta em inquéritos policiais. Para ela, um policial pode esclarecer direitos e orientar uma mulher, mas não tem a mesma técnica de abordagem de um psicólogo. Um caso entre tantos na DP exemplifica a situação. A vítima relatou que escapou de ser morta a machadadas pelo companheiro em diversas ocasiões.
— Quando ela chegou aqui para dar informações, não me olhava, ficava com os olhos de um lado para outro. Eu dizia: fulana, vamos te encaminhar para o Centro de Referência da Mulher. Mas tudo o que eu falava, ela ia contra, afirmava que não iria adiantar. No fim, conseguimos que ela fosse até o Centro de Referência antes de registrar a ocorrência, onde foi atendida por um psicólogo. Ela retornou no dia seguinte com outro olhar. Depois de fazer o registro, de ter conseguido medida protetiva e de ter se livrado do agressor, veio até a delegacia nos presentear com doces em agradecimento — lembra, com carinho, Carla.
Implantar serviço exigirá articulação da rede
O acolhimento e a escuta do Projeto Hora duravam cerca de 40 minutos numa sala na entrada da DP, sempre na parte da tarde. A conversa privada não era obrigatória, cabia à vítima decidir se abriria o coração. Com o fim do projeto em dezembro passado, ficou no ar a sensação de que os agentes estavam diante de um serviço ideal, mas fora da realidade do Estado. A solução seria ofertar psicólogos por meio de convênios. Essa tarefa exigirá empenho de lideranças em busca de parcerias e recursos.
— Procurei instituições para quem sabe fazer parcerias, tudo demanda tempo de fazer convênio, mandar para assinatura, ficaria um procedimento mais sólido. É uma questão que a rede vai ter de combinar — adianta Carla Zanetti.
Para a policial, a diferença de uma mulher com suporte psicológico é o ganho de empoderamento e confiança. Ela reconhece que nem sempre a primeira conversa surtirá efeito imediato, mas acaba sendo uma forma de atraí-la à rede de proteção. Assim, surgirá uma vítima fortalecida.
¡— Aqui (pesquisa) diz que 77% das mulheres já sofreram violência doméstica anterior. Pode ter registro de ocorrência ou não, e normalmente ela vem denunciar depois de ter sofrido várias agressões. Por isso, quando a gente fez esse projeto, a ideia era ajudar a vítima a clarear o raciocínio e ver que não é normal, é relacionamento abusivo sim e precisa dar um basta antes de virar algo mais grave — pondera a delegada.
Os estudos mostram que o agressor age na mente da mulher, vai diminuindo ela ao longo do tempo. Ele deprecia, faz com que a vítima sinta-se incapaz e culpada pela situação do casal. Por isso, quando ela entra na delegacia, arrastando a autoestima no chão, se vê sem saída especialmente se há falta de apoio de familiares.
— A gente não faz tratamento psicológico e, às vezes, para mudança de comportamento precisa de um acompanhamento por mais período do que um encontro. Ah, mas para uma mudança profunda, infelizmente, só se a violência fosse tratada na educação básica.
Em 2017, um levantamento do Centro de Referência da Mulher mapeou um breve perfil das vítimas de violência doméstica em Caxias do Sul. A pesquisa daquele período traz dados não muito diferentes do que a Deam e o projeto Hora constataram. Ou seja, a tendência é a repetição de casos.
Abaixo, confira os dados obtidos a partir de entrevistas com 124 vítimas da violência entre setembro e dezembro de 2019 em Caxias: