Entre as milhares de sepulturas no Cemitério Público Municipal de Caxias do Sul, muitas delas abandonadas ou perdidas, há personagens misteriosos que seguem despertando a curiosidade por supostos milagres e vítimas da violência que geraram tanta comoção a ponto de serem uma forte referência para visitações o ano todo. Essa reverência influenciada pela força das crendices populares ou pela simples curiosidade deve ser vista neste Dia de Finados. O histórico mostra como esse apelo se altera conforme o tempo.
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Hoje, a gaveta rosa de número 30 no bloco 25, onde descansa o corpo de Naiara Soares Gomes, sete anos, é certamente o local que mais recebe flores e brinquedos, homenagem só comparável ao túmulo de outra criança, Anita Saul, a Ciganinha. A diferença é que a Ciganinha vem sendo considerada uma milagreira há mais de seis décadas e Naiara foi uma vítima recente da brutalidade. Até dois anos atrás, quem recebia todas as atenções era o papeleiro Carlos Miguel dos Santos, 45, queimado por adolescentes em 2012.
— As pessoas pediam a toda hora onde ele estava enterrado. Hoje, quase ninguém pede. Talvez a procura por Naiara dure um tempo ainda, mas não se sabe — conta Paulo Staudt, administrador do cemitério.
João Carlos Pereira, 77, que atuou na administração do cemitério por 20 anos e observou as mudanças de comportamento dos visitantes, vê um último ciclo de uma época, em que esse tipo de referência, da forma como a conhecemos hoje, deixarão de existir.
— Com o advento da cremação, ninguém mais que ser enterrado — aponta Pereira.
João Luis dos Santos Heric, historiador que pesquisou intensamente o Cemitério Público Municipal, considera os sintomas sociais.
— Sou psicanalista e entendo que as pessoas são fruto de uma época e em cima de sua fé, vão construindo esses arcabouços. Na morte do outro, nós comorremos. A gente se eterniza no outro, corremos atrás de uma fagulha — pondera Heric.
Nesta reportagem, confira personagens que ainda povoam o imaginário e outros que tiveram grande apelo e foram esquecidos.
Ciganinha, a adorada
Santa popular pagã, milagreira, uma menina adorada. O túmulo de Anita Saul, a Ciganinha, é um dos poucos que ainda recebe presentes. Bonecas, ursinhos de pelúcia, bicos e doces são deixados em agradecimento por graças alcançadas. A sepultura hoje fica em meio a um pequeno jardim, com gramado e um banco, para que os visitantes tenham conforto ao visitar a criança.
Antes, o túmulo estava na Quadra 9, lote 846, aos fundos do cemitério. O espaço conhecido como o Canto dos Inocentes foi demolido. Mesmo com o apelo popular, o jazigo de Anita também foi ao chão em novembro de 2006. Em meios aos escombros ficaram balas, bicos, flores e bonecas. No ano seguinte, a prefeitura revitalizou o espaço e transferiu os restos mortais da Ciganinha para o jardim. Mas há dúvidas se realmente são os restos da criança que estão ali, uma vez que muitas sepulturas se misturaram na confusão.
Na lápide original, havia a foto da menina vestida como cigana, imagem refeita posteriormente. A menina nasceu em 1950 e morreu em 10 de abril de 1958, segundo o livro de registro. O atestado de óbito assinado pelo falecido médico Augusto Sartori determinou a causa da morte como broncopmeumonia.
— Ficou descaracterizado o túmulo, deveriam ter restaurado como era — lamenta João Carlos Pereira, 77, ex-integrante da administração do Cemitério Público.
De acordo com a filha de Sartori, Regina Bellini, o pai era amigos dos ciganos e os atendia quando chegavam a cidade. Da história da Ciganinha pouco se sabe. No documento de morte, consta pai desconhecido. Nem mesmo no acampamento cigano que está em Caxias, sabem quem foi a menina. A lenda diz que Anita estava acampada na cidade e ficou doente _ uma vez que ficavam expostos ao tempo. Não há registros de como ela se tornou milagreira, mas passados 61 anos da morte, o jazigo ainda é um dos mais visitados, o que não será diferente neste Finados.
Para Dal Bó, o mistério sobre quem foi a Ciganinha também é um dos motivos para que ela seja reverenciada:
— Essa linha entre o real e o imaginário mantém viva a lenda e o folclore em torno desses personagens que fazem parte da nossa história — ressalta o historiador.
Túmulo de Vasquinho está perdido
Não há indicação da sepultura de Vasco Fochesato, tampouco pessoas que perguntem por ele. Nos anos 1930 e 1940, no entanto, o túmulo era visitado por muitas pessoas. A morte do menino em 6 de abril de 1930, aos 11 anos, comoveu as comunidades da região. Devotos faziam orações a Vasquinho, que desde cedo dedicou a vida ao trabalho religioso. Filho de Eugênio Fochesato e Adélia Panarotto, passou a ser chamado de Anjinho dos Altares.
Nascido em 11 de fevereiro de 1919, ele perdeu a mãe quando tinha dois anos. Aos cinco anos virou coroinha e, com seis, fez a primeira comunhão. Três anos depois, foi estudar no Colégio Santo Antônio, em Garibaldi. Em março de 1930, foi picado por um mosquito contaminado. O menino passou por duas cirurgias em Caxias, mas não resistiu. No registro de sepultamentos, a causa da morte consta como septicemia.
O próprio menino construiu sozinho uma capela em casa e rezava missas, o que fez aumentar a crença de que era milagreiro:
— Ele era considerado santo. As pessoas faziam promessas e acreditavam que pela fé que teve em vida e por ter morrido ainda menino, ele fazia milagres — lembra o historiador Juventino Dal Bó, que visitou o túmulo nos anos 1970.
— Foi uma história que me tocou. Eu estive nesse túmulo e ele ficava bem atrás da capela. Depois de um tempo foi modificado, mas eu desconheço a razão. Alguns dizem que a família não queria aquela peregrinação, mas não sei quem modificou o túmulo — explica Juventino.
No Arquivo Histórico há também um livreto chamado Vasco Fochesato - Um Amiguinho de Jesus-Hóstia, editado em 1936 pela Livraria do Globo. Com fotos e relatos, os fiéis testemunham a fé e a gratidão ao menino pelas graças alcançadas depois de promessas feitas à criança.
O mistério do caixeiro-viajante
Um dos mistérios do Cemitério Público Municipal é a Eterna Morada do Viajante, à direita de quem entra. Os mais antigos afirmavam que está sepultado no local um caixeiro-viajante de São Paulo, único remanescente da Associação dos Caixeiros-Viajantes de Santa Maria, morte ocorrida nos anos 1940. Em outros tempos, o ponto era usado em celebrações para pedir proteção e sorte nos negócios, especialmente no Dia do Caixeiro-Viajante, comemorado no dia 1º de setembro. O costume, pelo visto, se perdeu.
A grande sepultura chama a atenção, mas não tem nenhuma inscrição que indique o nome do tal caixeiro. João Carlos Pereira, ex-funcionário do cemitério, tentou descobrir a identidade do homem e não teve sucesso.
— No passado, caixeiro-viajante era alguém respeitado, conhecido. Circulavam muitos por Caxias e fizeram uma associação — conta Pereira.
O lote onde está a sepultura pertence ao Sindicato dos Representantes Comerciais (Sirecom Nordeste), com sede em Caxias. De acordo com Verônica Gomes, da administração da entidade, o terreno foi comprado em 1984 para fins de investimento e agora está à venda.
— Quando foi adquirido, disseram que estava vazio. Então, para nós, não há ninguém enterrado ali. O que se fazia era manter o local organizado e limpo para o Dia dos Finados — conta Verônica.
O mistério, portanto, permanecerá.
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