Era desanimador ver um grupo de adolescentes da Escola Antônio Avelino Boff, em Fazenda Souza, perto das 9h de sexta-feira. Enquanto colegas de colégio mergulhavam nos cadernos desde as 7h30min, a turma 101 do 1º ano do Ensino Médio aguardava no refeitório à espera do terceiro período de aula, horário em que haveria um professor disponível. Alguns remexiam no celular, outros jogavam conversa fora. Friorentos se aqueciam com um cobertor e corajosos enfrentavam o frio para jogar bola na quadra dos fundos. Forçada por um dos momentos mais difíceis da educação estadual dos últimos anos, a ociosidade em determinados dias da semana persiste na Avelino desde fevereiro. Não é o único caso.
É indignante saber que há uma semana do recesso de inverno, Caxias do Sul tem estudantes que ainda não abriram livros de disciplinas como matemática e espanhol. Embora a quantidade de professores em falta seja bem menor do que o constatado em março e em junho, a rede ainda não conseguiu estabilizar o quadro. São 60 horas/aulas pendentes com impacto em pelo menos 10 turmas em três escolas. A crise que assombra a comunidade escolar como poucas vezes se viu também deve levar centenas de estudantes a ter aulas durante as férias de inverno, aos sábados ou no contraturno para recuperar conteúdo atrasado.
Os dados parciais são impactantes e remetem a um cenário provocado em anos anteriores pelos longos períodos de greve do magistério. Até sexta-feira, 10 escolas da cidade informaram à 4ª Coordenadoria Regional da Educação (4ª CRE) que, juntas, precisam dar andamento a 2.797 horas de aula em atraso, o que equivale o trabalho de uma semana de 70 professores com carga horária de 40 horas. Mas a comparação é injusta, pois um único docente muitas vezes é responsável por atender várias turmas em diferentes escolas, o que torna a missão mais complexa. Faltam dados de outros 43 estabelecimentos, indicativo de que o estrago é grande.
— Estamos vivendo uma falência — define a diretora da Antônio Avelino, Rosecler Inês da Rosa.
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Não dá para tirar a razão de Rosecler. São seis turmas prejudicadas na escola de Fazenda Souza por falta de professor de espanhol, situação agravada pelo afastamento da professora de inglês por questões de saúde. Dois grupos de alunos ficam sem atividades nos dois primeiros períodos, sempre nas manhãs de quarta e sexta-feira. Nas noites de sexta, algumas turmas saem duas horas mais cedo. Um dia na semana, de tarde, uma turma fica dois períodos sem aula no começo do turno e outras duas turmas não têm atividade no horário final. Quem mora perto, chega mais tarde na aula. Quem depende de transporte público, é obrigado a aguardar no pátio ou no refeitório, caso de Tauana Melo da Silva, 15 anos, moradora de Santa Lúcia do Piaí.
— Eu saio de caso às 6h30min, chego aqui às 7h30min. Às vezes, fico na sala, às vezes no refeitório. É ruim porque vamos ter de recuperar — lamenta a jovem.
Os trabalhos aplicados eventualmente por professores de outras áreas para suprir a carência sequer são vistos como paliativos pela turma e pela própria escola.
— A gente faz, né, mas é como se não estivesse fazendo porque tu não aprende — reclama Michele de Oliveira, 15.
O caso da Avelino, segundo a 4ª CRE, é complicado. Não se encontrou docente de espanhol para encaixar nos três períodos da escola. Uma das razões é que se deslocar para uma zona distante do centro para dar algumas horas de aula não compensa financeiramente.
"Nossa escola não vai parar"
Escolas que conseguiram preencher o quadro de docentes entre maio e junho tentam descobrir formas de repassar conteúdo. No pós-greve de outros momentos, havia professores para repor conteúdo. Hoje, os docentes recém estão entrando em sala.
Na Rachel Calliari Grazziotin, bairro Fátima, ninguém recorda de um período tão conturbado. O professor de matemática começou a trabalhar nesta semana. É uma única turma prejudicada, com 78 horas de aula em atraso (ou 15 turnos perdidos) e o restante da carga a ser cumprida.
— Não vamos ter recesso porque outros professores só chegaram em junho. Claro que alunos terão alguns dias de folga, mas nossa escola não vai parar, pois temos outras disciplinas em atraso — explica Paula Cagliari, coordenadora pedagógica da escola.
A Érico Veríssimo, no São Ciro, apelou à solidariedade para evitar o vazio nas aulas de química. Um ex-aluno, com mestrado na área, se dispôs a repassar gratuitamente conteúdo para cerca de 100 alunos. Foi o que salvou.
— Liberamos ele semana passada, mas a professora contratada não quis assumir. Estamos vendo se o amigo da escola retorna ou se há outro professor — conta Fernanda Lorandi Toss, vice-diretora do turno da noite.
Com a chegada de uma professora de química na metade de junho, a Abramo Randon optou por dar aulas atrasadas à distância para o 9º ano, com acompanhamento na aula presencial seguinte.
— Os alunos deveriam estar começando agora o conteúdo do segundo trimestre. Sabemos que não vai ser possível vencer — reconhece a diretora Márcia Hahn Rosa, projetando mais problemas com a aposentadoria de uma professora de educação física e de uma coordenadora.
A Escola Província de Mendoza, no Cruzeiro, mobiliza um total de 16 turmas do 9º ano e do Ensino Médio no contraturno da tarde com conteúdo de inglês repassados pela professora Bruna de Lima Jacintho. Os grupos se revezam para assimilar o conhecimento que não receberam até meados de junho.
— A gente ia perder nota, estávamos preocupados. No começo, estava meio desandando. Estou vindo nas terça de tarde e está ajudando — conta a estudante Miriam Constante da Silva de Lima, 16.
Com a falta de docentes, a grade de horários já mudou seis vezes no ano.
— Mas acho que vamos conseguir resolver antes de entrar no recesso — acredita a coordenadora pedagógica da escola, Nikita Luisa da Silva Vieira.
Planejamento depende do envio de informações
O Departamento Pedagógico da 4ª CRE está solicitando às escolas uma proposta de calendário para a compensação de conteúdos em atraso, o que ainda não foi atendido plenamente. A integralização da carga horária é obrigatória até o final do ano letivo, alerta Gisele Bacarim, assessora pedagógica da 4ª CRE.
Um dos dilemas é estabelecer corretamente qual a quantidade de horas que cada escola precisa para determinada disciplina e quanto o professor vai precisar realizar para atender o mínimo estabelecido. A responsável pelo departamento, Ivanete Rocha de Miranda, diz ter ressaltado à diretora de Recursos Humanos da Seduc sobre o quadro preocupante em Caxias e cidades da região.
— Nos disseram que, a partir do momento que se tenha os levantamentos prontos, vão avaliar. Uma ideia é liberar carga horária para que professores de contratos novos façam as recuperações. Por exemplo: tenho um professor com 28 horas de contrato. Se tiver disponibilidade, ele pode ir até 40, então teria 12 horas a mais — adianta Ivanete.
A diretor do departamento acredita que a situação atual sirva de parâmetro para evitar a repetição do problema em 2020.
— O que temos hoje? Todos os professores que entraram agora terão contrato encerrado no dia 27 de dezembro. Entendemos e acredito que até lá, a secretaria e as CREs já deverão ter um levantamento, a partir a projeção das turmas para 2020, de quantos profissionais deverão ser contratos e remanejados para o início do ano — analisa Ivanete.
PARA VENCER A DEMANDA
Alternativas cogitadas ou já colocadas em práticas na rede estadual:
Aulas aos sábados - um decreto do governo gaúcho proíbe aulas aos sábados na rede estadual. Mas com a falta de professores, essa é uma possibilidade para que as escolas compensem as cargas horárias na parte da manhã. Ainda não está decidido.
Contraturno - algumas escolas já aplicam a alternativa desde junho. O problema é que nem todos os alunos têm disponibilidade para ir além do turno normal, uma vez que muitos trabalham, moram longe ou tem outras atividades. Outro problema é o horário dos professores. Alguns atendem duas ou três escolas e não têm como ajustar a agenda para o contraturno.
Aulas no recesso - item polêmico, mas saída inevitável. Na greve do magistério de 2017, diversas escolas de Caxias do Sul avançaram o calendário durante o recesso de verão de 2018. Neste inverno, são cinco dias úteis de férias, o que pode amenizar parte do atraso.
Aulas à distância - uma alternativa improvável. Pela lei, o aluno do Ensino Médio e Fundamental deve ter aula presencial na escola. Estudos domiciliares só são permitidos com atestado médico. Até se permite atividades fora da escola, como passeios educativos, mas a orientação não incluir a compensação do atraso de conteúdo apenas com esse tipo de trabalho escolar.