Numa carta de maio de 1947, descoberta no ano passado entre os arquivos da Congregação dos Josefinos de Murialdo, o padre italiano João Schiavo trazia uma reflexão: "Caxias do Sul é generosa e sabemos onde bater". A percepção do beato sobre o espírito solidário da comunidade consta num relatório encaminhado ao Superior Geral da Congregação, em Roma. O religioso, morto em 1967, referia-se a uma iniciativa dos padres josefinos para acolher jovens pobres e desempregados que dormiam ao relento.
A esperança havia sido depositada na crença de que os caxienses contribuiriam na construção de uma casa de acolhimento para as noites mais frias. O beato estava certo. No mesmo ano, o Abrigo de Menores São José abriu as portas com o apoio da comunidade. Foi uma resposta significativa contra a crescente pobreza e a exclusão do novos imigrantes.
A constatação do Schiavo realça contradições que acompanham a cidade desde sempre. Muitas vezes questionada pela carga de preconceito e frieza, a comunidade também sabe ser muito calorosa e benevolente.
Setenta e dois anos depois, a ideia dele segue viva com o projeto Hospedagem Solidária, que oferece cama e comida para moradores de rua. Curiosamente, os organizadores da ação voluntária, lançada no inverno de 2018, não sabiam da iniciativa adotada pelo padre no passado e agiram tão somente pelo coração. O trato humanizado com moradores de rua é um exemplo entre muitos. Mas o que move tantas almas solidárias?
Em agosto de 2016, Carmen Pellin Sgarioni e uma amiga foram atropeladas na ERS-122, bairro Pedancino. Carmen sobreviveu e a amiga morreu. O acidente mudou a vida de Cristiano Sgarioni, 40, filho da sobrevivente.
— Minha mãe ficou com sequelas Isso me fez repensar. Tenho praticado a gratidão — aponta Sgarioni.
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Questionamentos
Casado e pai de dois filhos, Sgarioni já foi voluntário em aulas gratuitas de informática para adultos e crianças. Numa palestra do casal Teresinha Mandelli e Flávio Grasselli, descobriu um grupo que atendia moradores de rua. Em pouco tempo, estava cortando legumes na cozinha e percorrendo as ruas à noite ao lado de diversas pessoas para servir sopa a homens e mulheres desprezados pela sociedade.
— O que me diferencia? Nada. Ninguém merece fome ou sede — conta Sgarioni.
O engajamento dele contagiou a colega de trabalho Daniela Vedovatto, 33. Ela distribui sopa desde setembro do ano passado, dedicação de toda quinta-feira, sempre das 19h às 22h. Vê a gratidão de quem tem a fome saciada e o preconceito de quem está do outro lado.
— Ouço muito questionamento: tu vai ir lá perder tempo ajudando? — lamenta Daniela.
Teresinha, coordenadora do Hospedagem Solidária, dedica seis horas de trabalho diário para o projeto. No salão da igreja do Sagrada Família, ela e dezenas voluntários não oferecem apenas cama e comida. Tem chinelos, livros, sofá, jogos e armário com cadeado. Teresinha conhece a maioria dos frequentadores e alguns a chamam de mãe. Em algumas noites, a hospedagem abrigou 62 homens. Nas contas de Tere, foram 62 violências a menos nas ruas.
— Quem não gosta de tirar o sapato em casa e usar um chinelo? Não dá para separar. Ou tu vive a fé ou faz de conta.
Mudança de vida
As portas pareciam estar fechadas para Milene da Silva Bolz, 37 anos. Dias atrás, vivia a incerteza de quem não tem emprego e renda para sobreviver. A vida virou de cabeça para baixo quando a casa dela e dos três filhos pegou fogo no loteamento Vila Amélia, levando todos os bens embora. Milene e outras famílias tiveram a história estampada numa reportagem sobre o aumento da extrema pobreza, veiculada em maio no Pioneiro. No dia seguinte, uma corrente solidária formou-se na cidade. Eram pessoas interessadas em ofertar ranchos, roupas e emprego. Milene ganhou trabalho com carteira assinada na rede de Postos SIM e desde segunda-feira passou a ter salário, plano de saúde e um novo horizonte.
— Antes, eu não considerava o morador de Caxias como solidário, mas isso me fez mudar de pensamento — conta Milene.
O recomeço de Milene teve o olhar de Carla Perussato, moradora de Caxias e funcionária da rede. Uma colega impactada com os desabafos procurou Carla e propôs uma solução. As duas sabiam que havia vagas em aberto na empresa. A saída mais viável seria convidar Milene e outras duas pessoas retratadas na matéria para uma entrevista. Com o aval da direção da rede, Milene foi selecionada _ os demais conquistaram trabalho em outras empresas.
— A SIM tinha a vaga. A Milene precisava de uma oportunidade — resume Carla.
Afastada do mercado formal desde 2015, Milene passa por treinamento como frentista. Os colegas já avisaram que esse é o primeiro passo de crescimento dentro da empresa. No primeiro dia como contratada, a trabalhadora foi recebida pelo presidente dos Postos SIM, Neco Argenta.
— Acho que é um pouco da cultura italiana de se envolver — cita o empresário.
Além do emprego, a comunidade respondeu com doações de móveis. Como Milene ainda mora num espaço cedido por uma amiga, a entrega do material vai ocorrer assim que ela se mudar para uma casa alugada com recursos do município. Ela projeta o futuro e não pretende voltar mais para o espaço precário onde vivia antes do incêndio.
— É um dia de cada vez. Agora vou ajeitar a casa, dá para voltar a sonhar.
Os variados exemplos inspiraram o frei Jaime Bettega a elaborar uma tese de doutorado em que ele define Caxias como terra da compaixão. Na análise, Bettega se deteve sobre o mundo corporativo. Em empresa com líderes compassivos, maior seria a chance de funcionários lidarem com sofrimentos pessoais e aderirem à ideia de contribuir com o próximo.
— Se olharmos os formatos da festa do interior, o comércio dá brindes, as pessoas dão brindes e com esses brindes se faz o tradicional rifão. É um jeito que acompanha a região. Pessoas sem coisas para dar, doam seu dom, talento, tempo. Acredito que a esfera pública faz, mas a bondade acrescenta algo mais num menor espaço de tempo — teoriza Bettega.
Precisa-se de voluntários
A concepção de cidade solidária, porém, esbarra num potencial ainda não explorado, na opinião do presidente da Parceiros Voluntários, Mario Tadeu de Oliveira Pezzi. Haveria muito mais pessoas com condições de ajudar. No banco de dados da ONG, que completa 20 anos de atuação na cidade na próxima semana, são quatro mil voluntários cadastrados. Para manter o benefício estendido atualmente a 54 organizações sociais, a Parceiros Voluntários recebe apoio de 18 empresas mantenedoras e 6 apoiadoras.
— Normalmente, as pessoas se envolvem mais com campanhas de doação do que com ações e atividades voluntárias. Por isso, frisamos a importância de conhecer a quem se está ajudando e compreender a realidade para poder modificá-la de fato — ressalta Pezzi.
Antiga e duradoura é a compaixão em Caxias, basta ver a trajetória de 25 anos da Pastoral do Pão, aniversário comemorado em junho. Nesse um quarto de século, três gerações da família de Andréia de Souza Andrade, 40 anos, recorreram à caridade. Ela conheceu a pastoral ainda na adolescência em meados dos anos 1990. A mãe dela passou a receber cestas básicas, apoio ampliado em períodos críticos. Anos depois, foi a vez de Andréia. Sob a orientação da pastoral, conquistou emprego e outros tipos de apoio. Nas horas de urgência por causa da saúde fragilizada, as portas se mantiveram abertas. Agora, são os filhos dela que contam com a providencial solidariedade.
— Considero sim Caxias uma cidade solidária e hoje estou aqui agradecendo por tudo que me fizeram na pastoral, graças a Deus — reconhece Andréia, recém recuperada de um câncer.
A proximidade fortaleceu a amizade com o casal Gema e Nestor Gregol, integrantes da pastoral desde o primeiro ano de atividade. A Pastoral surgiu em 1994 por iniciativa de um grupo de religiosas da Paróquia dos Capuchinhos. Com o tempo, virou referência. Um dos braços envolve a confecção de fraldas geriátricas, trabalho semanal de 50 pessoas. Apesar do aspecto altruísta, há quem critique.
— Tem gente que acha errado ajudar por ajudar. Não é bem assim. Como dizia Madre Teresa de Calcutá, primeiro é estender a mão na hora em que se precisa. Depois, vamos ver o resto — rebate Nestor.
Na história
:: A solidariedade nasceu com os primeiros imigrantes, em 1887. Num primeiro momento, a intenção entre os italianos era valorizar a cultura trazida da Europa e apoiar famílias da mesma nacionalidade. Assim surgiu a Sociedade Caxiense de Mútuo Socorro.
:: Os integrantes da Mútuo Socorro evoluíram e direcionaram suas ações para além da etnia, contribuindo com a caridade como um todo. Um dos pontos de parceria envolveu a construção do Hospital Pompeia, projeto de outra frente de benevolência, o Pio Sodalício das Damas de Caridade.
:: Já na década de 1930, surgiu a Sociedade Caxiense de Auxílio aos Necessitados (SCAN), criada para atender famílias extremamente pobres da periferia.
:: Tornou-se quase impossível determinar a quantidade de entidades ou pessoas que realizam algum tipo de caridade em Caxias.
:: Para estudiosos, o envolvimento com ações beneficentes inicialmente teve a influência da Igreja Católica. Quase toda paróquia católica com uma boa liderança, por exemplo, tem algum tipo de ação social. Com o tempo, outras instituições com ou sem caráter religioso abraçaram causas variadas, multiplicando os movimentos para o bem-estar de moradores menos favorecidos.
:: As referências de ajuda humanitária de hoje estão em igrejas evangélicas, em grupos de escoteiros, em empresas, em entidades como Rotary, na maçonaria, nas associações de bairros e ONGs.