Faça convites diferentes para Ermindo Dallegrave, 79 anos. Pode ser um fim de semana de descanso na praia ou algumas horas para lavrar a terra. Seu Dallegrave achará mais divertido remexer na fértil de Caravaggio da Terceira Légua, terra onde nasceu e de onde certamente só sairá após o último suspiro. O sol de Caxias ou o ocasional aconchego do frio parecem ser mais convidativos para o quase octogenário agricultor. Para trabalhar, é claro.
Não é segredo para a vizinhança que Dallegrave gosta de se manter atarefado. Poderia estar aposentado em definitivo, mas ele ainda planta, colhe e faz entrega de uva com os filhos no comércio. É um prazer estar a serviço da esposa, dos filhos, da terra, da comunidade. Vem da alma, das lembranças da infância, está no sangue do descendente de italiano, mas é inspiração também para gerações de portugueses, de poloneses, de alemães, de africanos e de tantos outros.
— Me foi ensinado que trabalhar é importante e não vejo como seria diferente. Mas nem trabalho tanto mais — ameniza o agricultor, humildade corrigida pelos filhos Volnei e Valdir.
Caxias do Sul só é Caxias porque existem pessoas como Dallegrave. A luta pelo pão de cada dia começou na agricultura, com os moinhos e o plantio de uva. Hoje, no campo ou na cidade, do vendedor de algodão-doce ao diretor de uma grande empresa, a ocupação é mais do que uma oportunidade de ascensão social, é cartão de apresentação e motivo para o clássico questionamento: o que tu faz?.
Minha primeira enxada
São fatos que alimentam o mito do trabalhador arraigado. Quando despontou como colônia, em 1875, Caxias era só mato. A maioria dos imigrantes era pobre e o governo imperial dada preferência por italianos com experiência na agricultura.
As famílias se obrigaram a pegar na enxada e no arado para plantar a própria sobrevivência e pagar pelos lotes. Havia outro ponto: a colônia precisava de estradas e nem todos os colonos estavam devidamente estruturados para se manter apenas com o plantio. O governo então abriu frentes para a construção de vias de ligação entre as colônias da Serra e contratou os imigrantes. Nascia ali a primeira função renumerada de Caxias.
Para saciar a fome e prosperar, todos tiveram que pegar no pesado desde o primeiro dia. Os desocupados eram mal vistos. O que brotou depois dessa semente é história.
Elevada à categoria de vila em 1890, Caxias do Sul já trilhava a jornada sem volta do desenvolvimento. Sabe aquela ditado de que o filho para sair de casa precisa ter garantido um lar? Os primeiros colonos já eram donos e perceberam que quanto mais se trabalhasse, mais patrimônio seria construído. Por isso, a cidade já era o contraponto do ócio no início do século 20.
Os dirigentes frisavam em relatórios a pujança do comércio, da agricultura e da indústria. Foi assim que a cidade se expandiu e ganhou uma fama que ecoa do Sul ao Norte do país. Ok, no ABC paulista, em Porto Alegre, em Bento Gonçalves, em Farroupilha, em Belo Horizonte e outras tantas cidades isso também aconteceu, mas Caxias é diferente.
O apego à labuta começa no berço. Hoje, a gurizada pode escolher o brinquedo dos sonhos, no passado tinham de optar pelo trabalho. Claro, havia exageros. Crianças trabalhavam em locais que, para os padrões atuais, são considerados insalubres até mesmo para adultos. Mas é preciso reconhecer a cultura da época. As famílias queriam prole numerosa para ter mão de obra . Era assim no campo, era assim na cidade, costume que perdurou até pouco tempo. Volnei Dallegrave, 47, filho do agricultor citado no início da reportagem, ganhou uma pequena enxada de presente aos sete anos.
— Com a tecnologia de agora é diferente, é menos trabalhoso, o maquinário ajuda.
Os filhos dele vivem outra perspectiva, mas os integrantes mais velhos da família reforçam que o apreço ao trabalho permanece.
— Digo para os meus sobrinhos (filhos de Volnei): vocês estão estudando, mas vão ter trabalhar também — complementa Valdir, 51.
O sino do Abramo
Dizem que o mito do caxiense trabalhador também teve a contribuição do hábil negociante Abramo Eberle (1880-1945). A primitiva casinha exposta no topo do antigo prédio da Eberle, na Sinimbu, não está lá à toa. Em 1896, aos 16 anos, Abramo já era dono da pequena funilaria que pertencia aos pais José Eberle e Luigia Carolina Zanrosso Eberle, a Gigia Bandera.
O jovem empresário tinha a mania de tocar um sino para lembrar os moradores do entorno que o turno da pequena fábrica estava para começar: a sineta soava às 7h15min e às 7h30min. O repicar era relógio improvisado para muita gente e, ao mesmo tempo, uma lembrança das obrigações de todo dia. Numa cidade sem mão de obra especializada, Abramo conseguiu transformar a funilaria numa metalúrgica com milhares de funcionário. Virou um empresário muito rico. Se ele podia, os outros também.
A ideia de que ser metalúrgico era o caminho para a ascensão social começou a ser difundida fora dos limites de Caxias. Com negócios cada vez mais em expansão, a Eberle e outras empresas que surgiram a partir dos anos 1920 e 1930 atraíram a atenção de moradores dos Campos de Cima da Serra e até mesmo de Santa Catarina e Paraná. Todos queriam trabalhar na cidade, não apenas nas fábricas, mas no comércio, nas cantinas. A Pérola das Colônias brilhava.
— Se o meu vô, com 16 anos, transformou a casinha numa grande empresa, os outros sentiam que teriam como fazer também. Foi a boa inveja, aquele que quer fazer seu negócio crescer e não procura rebaixar o outro para aparecer, mas sim superar com esforço próprio. Isso que entrou na veia dos caxienses — pondera Cláudio Eberle, 80, neto de Abramo e ex-diretor da antiga empresa.
A Eberle, por sua vez, fortaleceria ainda mais o conceito da cidade ao estabelecer uma relação com os funcionários que chamou a atenção de autoridades. Tudo começou nos primeiros anos, segundo Cláudio. Elisa Venzon Eberle, esposa de Abramo, preparava o almoço que era servido aos funcionários da funilaria, um gesto visto como zelo ao próximo.
Como Abramo queria transformar a empresa numa grande família, foram sendo implantadas regras que nenhum empreendimento tinha na época. No início da década de 1930, Lindolfo Collor, avô do ex-presidente Fernando Collor, percorria cidades gaúchas para buscar experiências trabalhistas. Passou três dias em Caxias conhecendo a relação da Eberle com os funcionários. Meses depois, já como ministro do Trabalho do governo de Getúlio Vargas, Collor lançava a primeira legislação trabalhista do país. Quer melhor credencial?
— Ouvi de uma porção grande de empresários que tudo se deve àquela casinha primitiva da funilaria. A casinha simbolizou todo o início da metalurgia — orgulha-se Cláudio.
Para um ícone do setor metalmecânico da cidade, o DNA dos pioneiros continuará passando de pai para filho.
— Se Caxias é altamente industrializada e evoluída é porque houve decisões baseadas no trabalho. Quem vem de fora e vê se ambiente acaba se enquadrando ou vai embora — contextualiza-se José Antônio Fernandes Martins, executivo da Marcopolo.
Para quase para todos
O mito segue alimentando esperanças de que botar a mão na massa é tudo. Basta ver a migração de senegaleses, haitianos e outras nacionalidades desde os anos 2010.
Alguns se dão bem, outros não encontram o oásis, vivem na pobreza e desistem. Há os que tentam a chance em outros recantos e acabam voltando para casa e miram outras formas de ganhar a vida. Mas há sim espaço para todos. Há dois, três anos, estava difícil viver em Caxias por causa da falta de emprego. Vinte mil postos desapareceram desde 2013, a maioria na indústria.
Paulo José Ribeiro da Silva, 48, que já foi metalúrgico, e a esposa Irene Ranzan, 48, desviaram a atenção para Santa Catarina na esperança de recomeçar. Passaram uma temporada no Estado vizinho e retornaram. Eles ganham a vida como catadores. Percorrem 10 quilômetros ou mais todos os dias puxando dois carrinhos carregados. É rotina suada e o rendimento não é lá grande coisa, mas é garantido. O trecho da BR-116 entre Santa Corona e o bairro Planalto é caminho diário de ida e volta do casal. Irene aparenta físico de maratonista.
— Aqui é bom. Trabalhamos até nos domingos — conta Paulo
Francisco Moraes dos Santos, 59, o Chico da Gravata, veio de Passo Fundo há mais de 30 anos. Na época, segundo ele, a cidade do Norte gaúcho não oferecia oportunidades. Mudou-se para Caxias e segue firme como vendedor de algodão-doce e picolé. Não é dinheiro para ascender socialmente, mas a graça é estar na rua sentindo-se útil.
— Faço a pé o Cruzeiro, o Bela Vista, a Vila Leon e o Centro. Caxias é melhor para trabalhar — atesta o Chico da Gravata.
Entrando no ritmo
A fama que paira em torno de Caxias não se vê em qualquer parte do país. Natural de Recife, o professor de dança Giovani Monteiro, 37, desembarcou na cidade há 17 anos para atuar na Companhia Municipal de Dança. Decidiu ficar em Caxias ao participar de um baile onde pelo menos 400 casais arriscavam passos de dança tradicionalista ao ritmo de bolero. Viu um nicho de mercado e mal sabia que já estava contaminado pelo espírito caxiense. Em pouco tempo, já ocupava a rotina com muitas aulas e atualmente dedica três terços das 24 horas do dia para ensinar danças variadas.
— Não imaginava que trabalharia tanto. Entrei no ritmo da cidade. Sei de amigos do Rio de Janeiro e de São Paulo que não trabalham tanto como eu.
Fora do Rio Grande do Sul, Giovani diz que muitas pessoas ignoram Caxias como o segundo polo metalmecânico do Brasil, algo que ele só soube ao ver os grandes pavilhões pela cidade. Para o professor, o caxiense não trabalha mais do que um paulista ou um recifense, por exemplo. A sensação é de que os moradores daqui têm objetivos mais profissionais do que de lazer, o que justifica as ruas esvaziadas da cidade logo após o anoitecer.
— No Recife, o trabalho começa no nascer do sol, às 5h, e invade a noite. Só que se alguém consegue ter um dinheiro a mais, uma das coisas é chamar os amigos para um churrasco, para fazer a festa de aniversário. Aqui, o pessoal pega o dinheiro para pagar um curso e investir ainda mais no trabalho — compara Giovani.
Ligia de Jesus, 29, é da geração que vai além dos pavilhões das fábricas e dos parreirais. Como microempresária, é a nova cara do empreendedorismo. Passa 12 horas no estúdio de pole dance que mantém há cinco anos, uma amostra de que não é apenas o aço manipulado por homens que forja o mito do caxiense trabalhador.
Ela foi funcionária administrativa de várias empresas, antes de decidir investir no negócio que alia esporte e saúde. Ao deixar a empresa pelas nove da noite, se dá conta que o caminho que resta é ir para casa.
— Dei cursos em Canoas, saía de madrugada, às 5h30min. Diziam: tem que ser caxiense para vir trabalhar tão cedo — ri Ligia.