Na última semana, parte da história automobilística de Caxias do Sul e região foi levada embora para ser derretida nos fornos de uma siderúrgica da Região Metropolitana. A apreensão de pelo menos 400 toneladas de peças de cinco mil veículos diferentes, fabricados entre os anos 1920 e 1992, aconteceu no Ferro-Velho Scalabrin-Mascarello, no bairro Pio X, durante a Operação Desmanche. Operários trazidos pela força-tarefa limparam o pátio e as prateleiras do depósito e transportaram o material para caminhões entre a segunda-feira (6) e a quinta-feira (9).
Sem matéria-prima, chamada de sucata automotiva pela operação, a opção dos sócios agora é encerrar as atividades depois de 45 anos. Conhecido como uma espécie de santuário dos colecionadores de carros antigos, a notícia entristeceu os apreciadores de antiguidades de Caxias do Sul e de outras cidades do país. Manifestações de apoio vieram até mesmo dos Estados Unidos. Na terça-feira, donos de carros antigos circularam em carreata pelas ruas centrais de Caxias e fizeram um buzinaço no Centro em protesto contra a operação.
Para a Secretaria de Segurança Pública (SSP), o ferro-velho operava de maneira irregular, pois não tinha credenciamento no Departamento Estadual de Trânsito (Detran). Por esse motivo, foi interditado. Como o local não tinha licença ambiental para manter sucatas, optou-se pela apreensão e destruição do material, conforme previsão da lei. Os argumentos são rebatidos pelos sócios do ferro-velho.
— Não acharam um único parafuso roubado ou furtado aqui dentro. Não poderiam ter interditado e verificado que as peças eram de colecionador, por exemplo? — desabafa Ely Luiz Scalabrin Júnior.
O ferro-velho foi aberto pelo pai de Ely em 1974, em outro ponto da cidade. O negócio mudou de endereço e passou a atender no bairro Pio X nos últimos anos. O fundador morreu há 15 anos e deixou o empreendimento para Ely e para o sócio minoritário, Marino Mascarello.
— Comecei a trabalhar aqui quando tinha 12 anos. Agora não sei o que fazer — lamenta Mascarello, aos 67 anos.
Ely diz que o recolhimento eliminou para sempre peças de veículos de modelos e marcas variadas como Rural Willys, Aero Willys, Studebacker e Karmann Ghia, entre tantos outros. O ferro-velho guardava documentos, recibos e notas dos carros negociados. O empresário cita, por exemplo, envelopes com a documentação de 27 caminhonetes Ford F1, fabricadas entre 1946 e 1952.
— Será que o dono de um Chevrolet 1938, placas 7.92.02, imaginaria que o documento do carro que ele vendeu na década de 1970, assinado em cartório, estaria guardado até hoje para comprovar a procedência das peças? — questiona Ely, que também é colecionador.
Intenção é pedir indenização
Ely Scalabrin Júnior tentará obter uma indenização na Justiça, pois entende que perdeu material que foi comprado pela empresa, ou seja, teve gastos. Segundo ele, o ferro-velho só vendia peças de veículos fabricados antes de 1992 e as últimas compras para o estoque foram feitas há mais de 20 anos. A maioria foi arrematada em leilões, muitos deles promovidos pelo próprio Detran.
Entre o volume apreendido, havia um caminhão Ford, de 1960, adquirido do Exército. No pátio, ficaram para trás apenas três veículos antigos. Conforme o colecionador Antônio Affonso e Lima da Fontoura, o Schaw, o depósito era usado por muitas pessoas que não encontravam material de reposição de carros muito antigos.
_ Havia muita peças compradas em lotes de concessionárias que faliram no Rio Grande do Sul nos anos 1980 — cita Schaw.
Ely diz que o argumento do risco ambiental do acúmulo de sucatas não procede totalmente. Ele garante que estava buscando a regularização na Secretaria Municipal do Meio Ambiente e mostra um requerimento pedindo orientações. Por outro lado, guardava peças em área coberta e sobre um piso de concreto, além de usar tonéis de metal para acondicionar materiais.
— Olhe aqui nos documentos enviados pelo Detran: nos consideram depósito credenciado. Se não somos mais, que nos comuniquem, que apresentem os documentos — diz o empresário.
Adelar Colombo, presidente da Sociedade Caxiense de Automóveis Antigos (Scaa), lamenta o desfecho:
— Vejo que o Detran se precipitou em alguns argumentos, são peças que não existem no mercado, não é de roubo.
A Federação Brasileira de Veículos Antigos, com sede em Juiz de Fora (MG), enviou ofício ao secretário de Segurança Pública do RS, Ranolfo Vieira Júnior, em que demonstra insatisfação com o resultado e pede a reconsideração para que as peças raras voltem ao mercado.
A Força Tarefa Desmanche é formada por cinco instituições ligadas à Secretaria de Segurança Pública (SSP). Confira o contraponto:
Nos termos do artigo 5º, § 3º, da Lei 14.787/15, se a autoridade fiscalizadora reconhecer potencial risco ambiental no armazenamento provisório do material apreendido providenciará a sua imediata destruição, ainda que não esgotado o prazo de 5 (cinco) dias úteis para apresentar os documentos comprobatórios respectivos e demonstrar a regularidade de sua situação junto ao Detran/RS. O que não seria possível, uma vez que o estabelecimento sequer providenciou as exigências estruturais para habilitar o credenciamento, como piso impermeável, local para descontaminação das peças, coletor de óleos e resíduos, dentre outros.
A legislação não diferencia se as peças são de colecionador ou não. O dispositivo legal refere sobre peças automotivas em situação de desmanche. No caso concreto, o proprietário não é colecionador, o estabelecimento revendia peças de veículos antigos, em situação de desmanche, sem o credenciamento e qualquer aferição técnica do Detran. Hoje (quinta-feira, 9), o Poder Judiciário de Caxias do Sul indeferiu uma liminar que solicitava a anulação dos autos de infração ao estabelecimento Scalabrin e Mascarello Ltda.