Depois de uma vida de excessos e perda de controle por conta do álcool, a jornalista Barbara Gancia conseguiu estacionar o vício. Há 11 anos sem beber, vive um novo momento: de liberdade. Sua história de "ativa", quando bebia além da conta, e sua trajetória de recuperação estão no livro A Saideira, lançado no final do ano passado. Nesta entrevista, Barbara conta porque resolveu compartilhar sua história e mostra que é possível viver sóbria. Confira:
Como é se manter sóbria?
Depois que dá aquele clique, depois que você se conscientiza, porque mais que uma força de vontade, é uma questão de conscientização, e depois que você vê que não tem acordo, que toda vez que você bebe acontece alguma catástrofe, que toda vez que você bebe, você perde o controle, que você nunca tem limite, que não é confiável, você marca um compromisso e não consegue cumprir, a tua palavra não tem mais valor nenhum... quando isso chega, cai a ficha, acho que passa a ser uma coisa mais fácil. Eu nem lembro mais dessa minha vida, sabe? Eu vivi 30 anos mergulhada no álcool e hoje em dia não faz mais sentido.
E a decisão de contar a sua história em um livro?
Primeiramente, meu pai e minha mãe já morreram, eu não queria que eles passassem novamente todo aquele sofrimento ou tivessem que ler sobre isso. Depois, quando comecei a escrever o livro, fazia 10 anos que eu tinha parado e eu achei que já era um tempo suficiente para poder escrever, porque parar dois anos e escrever um livro acho que não é nem justo com você mesmo, porque tem muita chance de recair. Sempre tem, mas, em todo caso, quanto mais tempo passa, mais estruturado você fica. E daí, quando eu estava no Saia Justa, no sofá, agora estou só fazendo reportagens, eu comecei a perceber que não tem pessoas públicas que falam dos seus problemas, como nos Estados Unidos tem. Por exemplo, o Michael J. Fox falou que ele tinha Parkinson e conseguiu conscientizar um monte de gente, ajudar, levantar fundos. Quando você vê que uma pessoa pública fala sobre isso, você se relaciona com ela, você se compara, então isso ajuda muito. Eu achei que podia ajudar e fiz o livro mais para contar a história desse meu envolvimento com o álcool e como é possível ser feliz. Eu não parava, antigamente, porque eu achava que não ia conseguir dar risada, conviver socialmente sem bebida. E hoje em dia vejo que sou muito feliz, então, eu queria passar isso.
É perfeitamente possível, então, viver sem o álcool?
É a única maneira que eu posso viver, porque eu sou o tipo de bebedora ou ao menos era que sempre acontecia algum cataclisma horroroso quando eu bebia. Ou eu insultava alguém ou aprontava alguma coisa, eu perdia a consciência, eu não lembrava no dia seguinte. Eu tinha uma ressaca moral muito grande. Eu realmente precisava parar. Não tinha nenhuma dúvida disso que eu não podia mais continuar daquele jeito. Eu ia ter consequências profissionais. Quando eu parei, foi bem na época que começou a se popularizar muito o Youtube e muito essa coisa de rede social, e eu ficava me imaginando bêbada tuitando, por exemplo. Ia ser uma catástrofe. Toda a credibilidade que eu tinha angariado em 32 anos de jornalismo eu ia perder. Então, eu realmente achei que era mais conveniente.
Como era conciliar o trabalho com o vício?
As pessoas têm uma ideia que o alcoolismo... tem muita gente que tem problema com a palavra alcoólatra, porque é tão pejorativo, tão ligada ao vício incontrolável, a uma fraqueza de caráter. As pessoas acham que um alcoólatra é uma pessoa degradada moralmente, que não faz nada, que só acorda de manhã e bebe de manhã até de noite, e não é bem assim. Hoje em dia eu vejo, ao meu redor, um monte de gente que potencialmente tem problemas, mas isso é para cada um decidir evidentemente, mas que potencialmente tem problemas e não faz nada a respeito porque tem uma imagem de que alcoolismo é uma coisa diferente do que é. Na verdade, o alcoolismo é a perda do limite, é você ter compulsão e não ter limite. Eu, por exemplo, nunca bebi todo dia. Nunca. Nunca bebi no trabalho, via de regra. Claro que teve algumas vezes que isso aconteceu. Mas para escrever coluna, para aparecer na televisão ou no rádio, eu não bebia. Com algumas exceções, era possível ter uma vida funcionante, ser uma profissional. Trabalhei 32 anos na Folha de S.Paulo e durante esse tempo, a maior parte desse tempo, eu estava bebendo muito. Inclusive, se você leu o livro, você sabe que eu fui parar na clínica por conta do Ruy Castro, que me ajudou muito. Ele também era uma das pessoas que bebia comigo.
Na sua opinião, porque o álcool não é encarado como as outras drogas?
Eu faço uma analogia. Por exemplo, cigarro ou cocaína seriam uma arma de fogo. E o álcool seria uma faca. Uma faca serve para cortar bolo, mas também serve para matar. Só que, na maioria das vezes, as pessoas usam para cortar bolo. O álcool, há seis mil anos, é usado para comemorar, para conquistas, guerras, nascimento de uma criança, casamento. A maioria das pessoas, cerca de 85%, até 90% das pessoas, bebem socialmente, não abusam do álcool. É uma pequena porcentagem que abusa. É que a gente tem uma percepção de que quando abusa, abusa demais. O Brasil, por exemplo, é o país que mais tem acidentes de trabalho e certamente é ligado ao álcool, porque elas bebem porque a bebida é barata. Elas bebem destilado e não comem e vão trabalhar e acontecem acidentes. A violência doméstica no Brasil é intimamente ligada à bebida. Acidentes de automóvel. Então a gente tem uma percepção que é muito maior do que é. Mas a maioria bebe e não apronta, não excede, não ocorre essa transformação no metabolismo que ocorre com quem insiste em beber sempre e em quantidades grandes. As pessoas não necessariamente vão desenvolver o alcoolismo. Nós temos uma enorme empresa que virou, quando a Petrobras foi mal, a principal empresa do Brasil, que é uma empresa que vende bebida e que conseguiu fazer com seus lobistas que a legislação brasileira não considere a cerveja uma bebida alcoólica. Tanto que a cerveja é anunciada na televisão e tal e isso é muito ruim. A gente ter uma empresa de bebida com esse poder, com essa influência em Brasília é muito ruim para a juventude brasileira. E para piorar esse quadro, você vê que hoje em dia, os nutricionistas, esses de Instagram, gente que se autoproclama fitness, recomendam que a pessoa beba gim, porque gim tem menos calorias do que cerveja. Eu, por exemplo, que passei muito apuro por conta do alcoolismo, nunca bebi gim, porque gim é quase um alucinógeno, é a última escala do álcool é você beber gim. Recomendar que gente jovem beba gim é uma coisa muito louca. Hoje em dia se sabe, a Organização Mundial da Saúde tem um milhão de estudos que falam sobre isso, que quanto mais cedo a pessoa começa a beber, mais chances ela tem de ter problemas com bebida. Então, a gente precisa ver isso, porque parece que o Brasil não está muito preocupado com essa conversa. Ninguém sabe direito que idade tem que começar a conversar com a criança sobre esse tipo de problema. Educadores, pais, famílias, pastores, religião, governo, enfim, medicina, a saúde pública, as pessoas têm que se coordenar e agir junto, tem que ter uma política de prevenção que não existe.
Você menciona no livro que frequenta grupos de A.A. e N.A. Isso te ajuda?
Tem gente que não gosta de grupo de autoajuda. Tem gente que, por exemplo, tem resistência grande ao A.A. por preconceito, porque acha que tem religião envolvida, mas tem vários grupos de autoajuda hoje em dia. Se você entrar na internet tem grupos de autoajuda baseados nos mesmos preceitos que Alcoólicos Anônimos, que Narcóticos Anônimos. Existem mil caminhos. Existe uma grande incidência de recuperação entre as pessoas que têm uma epifania religiosa. No meu livro, eu descrevo o que aconteceu comigo, porque eu não sou uma especialista em álcool, eu só sou uma especialista em consumir álcool. Então, eu conto o que aconteceu comigo e eu fui procurar esse programa de 12 passos, que eu acho extremamente ecumênico, inteligente, universal. Pra mim funcionou muito bem. Agora, tem milhões de outras maneiras que as pessoas utilizam. Eu conheço gente que se comunica em grupos em rede social que tem esses mesmos preceitos e as pessoas conversam como a gente numa sessão de A.A. O grupo de autoajuda é sempre parecido. Você ouvindo uma pessoa falar abertamente da mesma experiência que você, parece que isso tem outra ressonância. Ajuda muito. Agora, cada um acha o seu caminho.
Vale a pena parar de beber?
Vale muito a pena parar de beber. A primeira vez que eu parei, parei dois anos e oito meses, se não me engano, e quando eu recaí, eu morria de saudades de mim sóbria. Toda vez que eu recaia, eu achava muito difícil voltar a parar e eu tinha muita vontade de parar, porque depois de um tempo sem beber, você passa por uma angústia horrorosa no começo, mas depois você começa de novo a produzir dopamina, serotonina, ocitocina, que hoje em dia a gente sabe que são os hormônios da felicidade. Então, você volta a ser uma pessoa como quando você não bebia. Você volta a ter uma alegria, não um estado de depressão, angústia, inquietação. Lembro que quando eu bebia, eu ficava agitadíssima, não conseguia parar quieta, também porque se eu parasse, eu lembrava do que eu tinha aprontado. Era uma vida muito comprometida, não conseguia me abrir com ninguém, eu ficava escondendo. Comprava bebida, mentia na padaria, entrava com a bebida escondida dentro de casa, escondia da empregada. Você é escravo do negócio. Eu promovi uma Lei Áurea para mim mesma.
As recaídas fazem parte do processo?
Quando você é muito jovem e você já está nesse processo de ter mudado o seu metabolismo, você acha que não bebeu o suficiente, ainda tem um caminho pela frente. Você diz "não, ainda tenho que ir naquela festa". Quando cheguei aos 50 anos, falei: "não tenho mais nada para comemorar que eu não tenha comemorado, não tem nenhum brinde mais para fazer ou nenhuma bebida que eu não tenha experimentado". Acho também que é uma questão de maturidade.
Ouça a entrevista:
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