Há 100 anos, um dos mais notáveis intendentes de Caxias do Sul dedicou 29 linhas de um extenso relatório sobre a administração pública para alertar sobre as condições precárias da Guarda Municipal, a polícia ostensiva da época. José Pena de Moraes afirmava que não havia verba suficiente para contratar mais servidores, comprar armas, fardas ou forro para as selas da montaria — cavalos eram as viaturas da época. Pena de Moraes admitiu que preferia compor o quadro com homens solteiros porque seriam eles os únicos capazes de se manter com os baixos salários.
Apesar de discreto, o pedido de socorro datado de 1918 continua bem atual. Em 2018, o contingente da Brigada Militar (BM) chegou ao mais baixo patamar das últimas décadas em todo o Estado e a Polícia Civil não fica atrás. São pouco mais de 15 mil PMs — em Caxias do Sul, trabalham cerca de 380 servidores para atender 500 mil habitantes, metade do efetivo ideal. Os números atuais e o apelo de 100 anos atrás só comprovam que a estrutura de combate à violência ou à criminalidade continua sendo motivo de angústia. Ou que nunca houve um preparo real para lidar com a criminalidade.
Pedidos insistentes
O relatório de Pena de Moraes, disponível no Arquivo Histórico Municipal, trazia um tom premonitório diante da pressão exercida pelo crescimento de Caxias do Sul. Com mais de 20 mil habitantes, a expansão populacional era proporcionada pelo desenvolvimento da economia e pela chegada do trem oito anos antes, o que facilitou a ligação com a Região Metropolitana. Embora o documento do intendente traga detalhes mais precisos sobre a situação da segurança local, a preocupação com a falta de estrutura vem ainda do início do povoamento.
As solicitações reiteradas pela ampliação da força policial para controlar os imigrantes que chegavam aos montes em 1876 podem ser vistas como a primeira movimentação da segurança pública da cidade. Segundo pesquisa realizada pelo historiador e policial militar aposentado Manoelito Savaris em parceria com Niver Braghini, Terezinha Boeira e Aparecida de Queiroz Burdin, Caxias dependia do Corpo Policial e da Guarda Nacional nos primeiros anos. A Guarda não era uma força permanente e tinha integrantes da comunidade no efetivo. Cabia ao Corpo Policial, depois à Guarda Cívica, a tarefa de combater crimes e garantir a ordem na colônia. Ao lado dos militares, atuavam delegados e subdelegados. A Brigada Militar (BM) só assumiria totalmente a função de polícia ostensiva muito tempo depois.
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Manoelito identificou uma carta escrita em 1878, onde o diretor da Colônia Caxias lamentava o baixo contingente disponível. De 50 soldados da tropa de linha em 1877, o número caiu para 10 praças em 1878, o que era pouco para um núcleo onde habitavam quatro mil pessoas. É interessante essa observação se considerarmos que atualmente há cidades com mais moradores, bem menos policiais e muito mais crimes do que no distante 1878. Em 1881, conforme Manoelito, a administração da colônia voltou a manifestar novamente temor com o baixo efetivo. Em tom de súplica ao governo da Província, a direção pedia o retorno provisório de um destacamento que havia prestado bons serviços no povoado, além da permanência de outros cinco praças que estavam em diligência na região.
Além dos distúrbios e conflitos com os colonos, a direção tinha outro temor: Affonso Amabile, um italiano tachado como desordeiro e agitador que já havia sido preso anteriormente, mas voltou a morar em Caxias (a história dele foi contada na edição de segunda-feira). Apenas parte da solicitação foi atendida e dois praças permaneceram na colônia. Somava-se ao baixo número de servidores, a falta de cavalos para o policiamento e as dificuldades financeiras para os servidores se manterem no povoado. É também desta época a primeira cadeia e delegacia da cidade, instaladas no terreno onde hoje funciona a Igreja Metodista, na Avenida Júlio de Castilhos, em frente ao Hospital Pompéia.
Penúria
A penúria da força policial continuou e só teve novo rumo em 1890, quando Caxias ganhou emancipação de São Sebastião do Caí. Naquele ano, a presidência do Rio Grande do Sul criou a Delegacia de Polícia do Termo de Santa Tereza de Caxias, possibilitando a organização da segurança local com recursos diretos do Estado e da vila sem a interferência de São Sebastião do Caí.
Em 1890, a cidade também ingressava numa numa era diferente. Os primeiros imigrantes já estavam acostumados à rotina no novo país e a administração pública começava a se consolidar mais claramente. Com as duas revoltas armadas de colonos nos anos seguintes e a fatídica batalha da Revolução Federalista em 1894, que havia deixado vários mortos na cidade, a inocência dos primeiros anos ficava definitivamente para trás.
De acordo com Savaris, Braghini, Boeira e Burdin, a polícia local se efetivou em 1898, com 13 praças, um alferes e um sargento da Guarda Municipal. Contudo, as dificuldades acompanhariam o corpo policial. Em 1903, a quantidade de servidores já havia caído quase pela metade. Em 1904, o intendente Serafim Terra reclamava da situação da Guarda, classificando a estrutura como deplorável. Invariavelmente, a falta de recursos embasaria relatórios e discursos futuros.
Com o tempo houve evolução, é claro, mas não o bastante conforme perceberia Pena de Moraes quase 30 anos após a chegada dos primeiros soldados que zelavam pela segurança na então colônia. Os documentos também reforçam que governantes do município ou do Estado sabiam dos problemas, mas se basearam muito mais em promessas do que ações para sanar as barreiras da segurança de Caxias do Sul.