Nesta terça-feia, 20 de novembro, se celebra no país o Dia da Consciência Negra. Ao longo do mês, atividades alusivas ao Mês da Consciência Negra foram realizadas em todo o Brasil. Seja pela falta de divulgação ou pela pouca representatividade, em Caxias do Sul, pouco se viu da programação nas ruas. Para a presidente do Conselho Municipal da Comunidade Negra (Comune), Maria Geneci Silveira, a ideia que se propaga – de que a cidade tem poucos negros – representa, por si, um ato de invisibilidade da raça.
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O historiador e coordenador de Relações Universitárias da Universidade de Caxias do Sul, Lucas Caregnato, afirma que a invisibilidade do negro em Caxias acompanha a evolução do racismo em todo o país, que vivenciou a escravidão e manteve a ideologia por muitos anos. Confira trechos da entrevista:
Pioneiro: De que forma o racismo cria raízes em Caxias do Sul?
Lucas Caregnato: A nossa cidade, diferentemente de tantas outras, forma-se de uma política de estado de distribuir terras devolutas aos imigrantes, em um contexto de crise da escravidão, isto no final do século 19. Então, Caxias se forma em um processo de que não havia mão de obra escrava na cidade, e chegam muitas levas de imigrantes europeus. E é por isso que, em comparação a outra cidades, nós temos menos negros. Mas ao longo da história, nós sempre tivemos uma presença importante do negro.
Em que postos ele era percebido?
Nas áreas política, econômica, religiosa e cultural de Caxias. Exemplo disso é a construção da estrada de ferro que termina em 1910. As fotos corroboram que os trabalhadores eram negros. Levas de ex-escravos chegam, se fixam na área central, mas o que ocorre a partir dali é a invisibilidade da presença negra em Caxias, como no resto do país.
Caxias pode ser considerada mais racista que outras cidades, pelo fator da imigração italiana?
Eu tenho contrariedade ao discurso de que em cidades com presença migratória europeia há maior racismo. O Brasil é um país que cresceu em uma relação de intolerância e discriminação, baseadas no racismo, e isso justifica que a noção de racismo se mantenha mesmo após a abolição da escravatura. Caxias não é um hiato. A historiografia da cidade, a cultura e literatura sempre destacam a presença da imigração italiana na mão de obra. Mas uma nova onda de historiografia analisa e destaca que, desde o fim do século 19, a gente tem afrodescendentes no mercado de trabalho, na religiosidade. Nós temos mais de 600 casas de religião de matriz africana em Caxias. Proporcionalmente, mais terreiros de umbanda e candomblé que muitas cidades da Bahia.
E quais os caminhos que podem indicar uma reversão destes valores racistas?
O que macula e impede que a gente valorize e perceba estas quase 100 mil pessoas negras em Caxias é que a nossa cultura subvaloriza o negro. Acho que a gente vive em um processo de mudança e entendo que temos ações formativas, políticas que visam corrigir exclusões históricas que os negros passaram na educação, no trabalho. Caso das cotas e do Prouni. Isto faz com que hoje, na nossa cidade, nós tenhamos um número bastante expressivo de negros no Ensino Superior. Daqui uma ou duas gerações, este processo vai permitir que nós tenhamos muito mais professores, advogados, engenheiros e médicos negros.
Cotas
Sobre a prática de cotas, as duas maiores instituições de ensino superior da cidade foram procuradas pela reportagem. O Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), por meio de assessoria, informou que prefere não se manifestar sobre o tema. Já a Universidade de Caxias do Sul (UCS) alega que não há como mensurar a quantidade de estudantes que são atendidos pelo sistema, uma vez que o controle seria de responsa-bilidade do Ministério da Educação.
NÚMEROS
Mercado
Conforme dados do Observatório do Trabalho da Universidade de Caxias do Sul (UCS), extraídos do Programa de Disseminação de Estatísticas do Trabalho do Ministério do Trabalho, em 2015, do total de 164.610 postos de trabalho formais em Caxias, 11.382 eram ocupados por negros ou pardos, o equivalente a cerca de 7%.
Mulheres
Conforme apontado pela Agência Patrícia Galvão, em 2015, haviam 55,6 milhões de mulheres negras no Brasil. Entre 2003 e 2013, houve aumento de 54% no número de assassinatos de mulheres negras, enquanto, no mesmo período, houve redução de 10% no de mulheres brancas.
"A gente fala sobre, vai atrás de justiça, não ficamos mais quietos"
– Eu sempre soube que era negra pelo fato de sempre ter sofrido preconceito – relata a estudante Jamile Santos, 16 anos, moradora de Caxias do Sul.
A jovem, porém, não concorda com a tese de que a discriminação está diminuindo na cidade. Jamile acredita que ela apenas mudou de característica:
– O racismo aqui já teve a fase sutil, mas está se tornando mais escancarado ultimamente. Antes era mais com olhares, hoje já está nas atitudes – acrescenta.
Frequentando o 2º ano do Ensino Médio, ela revela que o período da adolescência é o mais difícil. Entre as situações difíceis pelas quais passou, estão piadinhas recorrentes sobre o fato de ser negra e deboches ligando a raça ao macaco:
– Foi muito difícil. Um dia, reclamei para a direção e a diretora disse que eu tinha de ter dito antes. Além de tudo, acabamos sendo culpados de alguma forma. Mas foi por sofrer preconceito que fui atrás e me envolvi mais com a causa. Quando tomei consciência de que eu sou negra, comecei a ficar em casa no Dia da Consciência Negra, não vou na escola, não faço nada. Passei a bater o pé com isso.
Na opinião de Jamile, a educação do brasileiro ainda carece em abordagens sobre a contribuição e a representatividade do negro do país.
A própria história do negro no município não está completamente documentada. Embora a Coordenadoria de Promoção de Igualdade Racial tenha sido criada formalmente em 2015, a trajetória do movimento de defesa dos direitos dos negros retrocede muitas décadas antes disso. Neste ano, inclusive, completa-se 85 anos do surgimento das primeiras associações para “gente de cor”, como se chamavam na época. O Clube Margaridas, formado por mulheres negras em 1933, foi o primeiro movimento organizado que se tem notícia em Caxias contra o racismo. No ano seguinte, fundou-se o Sport Club Gaúcho, espaço voltado à realização de bailes e eventos de lazer para a comunidade negra.
– Nas escolas, tornou-se mais comum falar da cultura negra, mas ainda é insuficiente. Nem sempre é dito o quanto o negro trabalhou para que Caxias tivesse o tamanho que tem. Precisamos tornar mais corriqueiro o tema, além de reforçar a representatividade histórica do negro, e promover atividades em escolas que ajudem o próprio negro a se reconhecer como negro – diz a presidente da Coordenadoria de Promoção de Igualdade Racial, Alessandra Roseli Gertrudes Pereira.
Expor-se e combater
O desafio de superar o preconceito ainda é constante, porém, para a estudante Jamile, a problemática se tornou mais visível e, dessa forma, combatível:
– Estão surgindo jovens mais engajados e até pessoas mais velhas estão abrindo os olhos. Agora, as coisas acontecem, mas a gente fala sobre, vai atrás de justiça, não ficamos mais quietos.
Ainda assim, para Alessandra, é preciso expor mais o racismo.
– O que acontece é que as pessoas sofrem preconceito e não comentam com ninguém, acabam levando para casa. Não temos como mensurar. Mas precisa entrar em contato e, quando for possível, registrar boletim de ocorrência. Foi dessa forma que a Lei Maria da Penha se consolidou: quando as pessoas decidiram se expor para expor o problema – destaca.
COMO DENUNCIAR
O que fazer em caso de racismo:
- Ligar no telefone 190, caso haja agressão.
- Procurar a delegacia de polícia e registrar um Boletim de Ocorrência (B.O.).
- Ir até a Coordenadoria de Promoção de Igualdade Racial, levando o B.O.
- Ir até a Coordenadoria de Promoção de Igualdade Racial, levando o B.O.
- Ir até o Conselho Municipal da Comunidade Negra (Comune), levando o B.O. Outra opção é ligar para Casa da Cidadania e informar o problema. A página do Facebook da entidade também é bastante ativa.
- Encaminhar denúncia ao Ministério Público.
- Disque 100 (anônimo): denúncias de violações de direitos humanos ao Ministério dos Direitos Humanos.
CRIMES
Injúria racial
Ofensas que remetam à raça, quando há lesão da honra subjetiva da vítima. Permite fiança e tem pena de, no máximo, oito anos.
Racismo
Mais grave, trata-se de um crime inafiançável. O ato de racismo consiste em menosprezar a raça de alguém, impedindo o acesso a determinado local ou negação de emprego. Além de boletim de ocorrência, a orientação é a de que se procure o Ministério Público, Ministério Público do Trabalho e Emprego ou Ministério do Trabalho e Emprego, caso o fato ocorra em ambiente de trabalho. O infrator está sujeito a pena de reclusão de um a três anos e multa.
REDE
A rede de promoção de igualdade racial em Caxias:
- Coordenadoria de Promoção de Igualdade Racial
Rua Alfredo Chaves, 1.333 - Exposição (3º andar da prefeitura, junto à Secretaria de Segurança Pública)
3218-6000
- Conselho Municipal da Comunidade Negra (Comune)
Rua Borges de Medeiros, 211, esquina com Hércules Galló.
3901-1521
- Polícia Civil - Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam)
Rua Dr. Montaury, 1.387 - Centro (junto à Praça Dante Alighieri)
3221-1387
- Plantão da Polícia Civil
Rua Irmão Miguel Dario, 1.061, bairro Jardim América