A ARS Arte Sacra, empresa com sede em Salvador do Sul, apresentou em 2010 um memorial descritivo de duas páginas enumerando as intervenções que seriam realizadas na Igreja Catedral Nossa Senhora da Oliveira, em Vacaria.
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Parte 1: Justiça analisa reforma da Catedral de Vacaria
Parte 3: "Queríamos trazer de volta a originalidade", diz arquiteto do restauro de Catedral de Vacaria
Parte 4: Prefeitura de Vacaria licitará estudo para regularizar o tombamento de Catedral
O documento, assinado pelo pároco e pelo responsável técnico, o arquiteto Cristiano Fabris, previa a instalação de rodapés de pedra grés (arenito) de 67 centímetros em todo o perímetro interno para resolver os problemas de umidade.
Para o forro, era indicado trabalho de restauro com gesso e pinturas. Painéis artísticos que haviam sido apagados por intervenções seriam recuperados. Um novo sistema de som e iluminação seria instalado e as paredes e colunas teriam "suas pinturas originais recuperadas a partir de análise da antiga que se encontra abaixo da pintura atual", dizia o documento.
Os trabalhos iniciaram em 2011, já sob polêmica. Moradores denunciaram ao MP a destruição do reboco original e a presença de andaimes com tintas sem proteção ao piso ou paredes. O MP instaurou um inquérito que motivou uma vistoria do Iphae, em 2012. No parecer, a arquiteta Alice Cardoso destacava o valor do local e as leis de preservação do patrimônio vigentes, que pressupõem que diretrizes de Cartas Patrimoniais (elaboradas por especialistas e organismos que trabalham com o patrimônio cultural) devem ser seguidas nas obras.
O documento considerava a colocação da pedra grés rosada no lugar dos rodapés de cor cinza como "uma solução pouco usual e ainda não testada" e recomendava que as causas da umidade fossem investigadas e solucionadas. Mesmo assim, apesar reconhecer que os novos rodapés alteraram a composição da Catedral, a arquiteta considerou que uma eventual retirada das pedras seria mais prejudicial do que sua permanência.
Para o MP, não havia elementos suficientes para ajuizar ação. As obras continuaram até 2014, quando, na Páscoa daquele ano, a servidora pública Gabriele Rigon visitou a Catedral. Vacariense radicada em Porto Alegre, ela costumava frequentar o local na infância e na adolescência e se surpreendeu com o que viu.
— Eu sempre apreciei a igreja, era encantada com a energia do lugar, a suavidade das cores. Quando fui buscar de novo esse lugar, entrei e a Catedral não estava mais lá — lembra.
Além dos rodapés rosados, as até então sóbrias colunas haviam sido pintadas de tons rosados com linhas douradas e círculos pretos. A descaracterização motivou nova denúncia e a criação da página "Preservação da Catedral Nossa Senhora da Oliveira - Vacaria" no Facebook, por onde acalorados debates sobre a reforma se seguiram.
Provocado, o MP realizou nova vistoria. O arquiteto André Huyer, da divisão de assessoramento técnico do órgão, visitou a Catedral sob um clima tenso e os olhares atentos de moradores — favoráveis e contrários —às obras.
O documento repetiu alertas anteriores: dizia que é "difícil concordar que uma pedra de tons róseos seja harmônica com um prédio construído de pedras cinzas", que o "serviço executado agora (nas colunas) não é uma restauração, mas uma nova pintura sobre a anterior" e que a "a documentação de tombamento carece de maior detalhamento".
O parecer, em si, não recomendava a reversão do que já havia sido realizado. Mesmo assim, na conclusão do inquérito civil, Luis Augusto Costa, titular da Promotoria de Justiça Especializada de Vacaria, deu prazo de 15 dias para que a prefeitura determinasse ações para interromper as obras e realizar estudos que orientassem futuras intervenções. Caso contrário, a ação seria ajuizada. O expediente foi assinado por todos os promotores de Justiça de Vacaria como forma de ressaltar a gravidade da situação.
Para MP, decisão de reverter as obras é "exemplar"
Mesmo com a ação civil, nada foi feito para impedir a continuidade das intervenções e foi necessário esperar até 2016 para que o processo tivesse decisão em primeira instância. Na sentença, a juíza Carina Paula Falcão, da 2ª Vara Cível de Vacaria, condenou o município a adotar medidas para regularizar o tombamento da Catedral. No entanto, não considerou que as obras alteravam as características essenciais da igreja, já que não se tratavam de restauração, "mas apenas de obras de conservação que mostravam-se essenciais à manutenção do templo".
Após a decisão, todas as partes recorreram ao Tribunal de Justiça. Em abril do ano seguinte, o órgão acatou a apelação do MP. O relator do processo, desembargador Newton Luís Medeiros Fabrício, considerou no acórdão que as obras foram realizadas, sim, de forma irregular.
A sentença também dizia que a diocese de Vacaria tinha conhecimento de que o templo é parte do patrimônio histórico e cultural da região e, mesmo assim, optou pela continuidade da reforma "sem a observância das normas técnicas".
O desembargador considerou, ainda, que o município tinha um ano para "suprir as deficiências existentes no ato de tombamento com as devidas descrições dos itens que devem ser objeto de preservação". O projeto poderia, inclusive, determinar a reversão das obras já realizadas. Empresa, diocese e prefeitura novamente contestaram a sentença e entraram com recurso especial e extraordinário contra a decisão, que foi negado em maio de 2018 pela vice-presidente do TJ, desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza.
Para o promotor Luis Augusto Costa, o assunto estava encerrado e bastava aguardar o trânsito em julgado da sentença.
— Havia lei municipal do tombamento, mas não os estudos necessários. A empresa está condenada junto com a mitra e a prefeitura. Os três são solidários no custeio das obras, a partir do que o futuro estudo diagnosticar — aponta.
Costa acredita que a decisão dos desembargadores seja inédita e pode servir de exemplo para outras ações envolvendo o patrimônio histórico no Estado.
—É uma decisão exemplar, diferenciada. Nunca houve algo nesse sentido no Estado, que pede novo estudo para a prefeitura. É marcante também pela mitra ser muito relutante, ao mesmo tempo em que é um patrimônio. Houve um conflito, a população entende que é o seu maior monumento, maior símbolo. Houve pessoas favoráveis (à ação), pensando que é mais que uma igreja, e também católicos achando que era algo só deles —lembra.
Para defesa, Catedral não está tombada
O desfecho da ação, porém, não será tão simples. A defesa da diocese e da ARS decidiu levar o caso ao STJ. Quem representa os réus é o advogado Clóvis Garbin. Para ele, o tombamento da Catedral nunca foi oficializado.
— Tanto é verdade que não existia tombamento que a decisão foi a de determinar ao município de Vacaria efetuar o tombamento nos termos correspondentes. (A lei municipal) não tomba, autoriza o tombamento, que é um processo técnico, de peculiaridades, de descrição pormenorizada de elementos que possam servir de dados para a manutenção do bem. E isso não tinha — defende.
Como consequência da interpretação do advogado, a decisão do TJ seria contraditória.
— Tem conflito interno nessa decisão. Se a prefeitura tem que efetuar o tombamento, as obras têm de ser mantidas. Foi isso que a juíza em primeira instância considerou. O argumento central da defesa é o seguinte: não havendo o tombamento, o proprietário tem o direito de realizar as obras de preservação, conservação, reforma, restauração, independentemente de qualquer autorização pública. Esse é o fundamento —aponta.
A expectativa, segundo Garbin, é que STJ recupere parte da decisão em primeira instância que não prevê reversão nas obras:
— Aí eu pergunto, qual cor que é para colocar (nas colunas)? Se não tem tombamento para dizer qual era antes? Não existem elementos anteriores para se saber qual é o ponto dessa reversão. E a mitra se defende dizendo que nada foi alterado, a não ser a repintura da catedral. Nenhum elemento artístico foi suprimido. A expectativa é que o STJ reforme (a decisão em 1ª instância) pelo menos nessa parte.