Naiara acordou por volta das 6h. Assim como a tia Maria de Lourdes Gomes. Ela ajudou Naiara a se vestir, preparou o café e deu um tchau casual para a criança. A prima, Adriele Gomes, que conviveu com a menina quase como uma irmã, a viu somente na noite anterior. As lembranças das últimas horas se perdem em meio a memórias de dias anteriores.
— Ela estava feliz porque tinha visto o meu sobrinho. Ela gostava muito de brincar com meu sobrinho. Preferia brincar com crianças menores ou sozinha com a boneca. Ela estava sorridente — comenta Adriele.
Após a tragédia, as condições da família, incluindo os dois irmãos pequenos de Naiara, melhoraram um pouco. Além de continuar recebendo benefícios como o Bolsa Família e cestas básicas, a família foi inscrita em um programa de transferência de renda e deve receber, pelo período de um semestre, um salário-mínimo por mês para ajudar nas despesas. Os pertences de Naiara permanecem na casa, mas devem ser doados.
— Os irmãos ficaram muito abatidos. Estão recebendo tratamento psicológico (de profissionais do CRAS). O primo dela também (jovem de 15 anos que acompanharia Naiara até a escola), ficou muito abalado, principalmente com os ataques que recebeu das pessoas — comenta a tia Maria de Lourdes.
— (O menino) até fez aniversário nesse meio tempo, mas a gente nem percebeu porque estávamos nesse alvoroço todo. As crianças ainda se sentem meio estranhas, mas evitamos mencionar isso tudo. Já nós, adultos, sofremos bastante com as críticas. As pessoas não podem nos criticar sem saber nossa situação — defende Adriele.
Segundo as parentes, o vazio dificilmente será superado.
— Esperamos que ela não seja esquecida. É só isso que espero — diz Adriele.
Transformar a dor em luta pessoal
Em 2012, uma tragédia se abateu sobre a família de Paula Ioris de Oliveira e do advogado Rogério Alves de Oliveira. O filho mais novo do casal, Germano, de 13 anos, foi assassinado quando passava a noite na casa de um amigo, no bairro Cruzeiro, em Caxias do Sul. Seis anos depois, Paula, que hoje é vereadora, afirma que jamais superou a tragédia, mas conseguiu transformar a dor em uma vida em prol da justiça.
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— Não há como superar uma perda como essa. Eu costumo usar o termo transformar. Não sei como a família da Naiara vai reagir a isso, depende muito do estado espiritual da família, porque, em geral, elas têm índice bem alto de desestruturação quando passam por perdas significativas. Tomara que eles possam enfrentar de alguma forma e tirar suas próprias aprendizagens dessa experiência — comenta.
Ela contesta a mobilização social que defende medidas violentas contra o autor do crime. Embora reafirme a necessidade de o assassino ser penalizado, Paula reitera que sentimentos negativos ou anseio por reação violenta pouco contribuem para a reflexão.
— Toda a dor que eu vivenciei... em nenhum momento pensei em vingança. Os grupos que eu procurei e hoje participo têm esse propósito de buscar a justiça e praticar o bem. Eu acredito que o Germano está muito bem, numa outra dimensão. Eu tenho muita saudade dele, mas espero merecer encontrar meu filho e eu quero ser a melhor pessoa possível para que isso aconteça — afirma.
Nos muros e na poesia, o desabafo
Logo após a morte de Naiara, o educador social Andrigo Fernando Martins Barbosa se organizou para expressar sua comoção. Morador do bairro Belo Horizonte, na Zona Norte, ele pediu permissão a um conhecido para usar a parede do estabelecimento comercial e fazer um grafite em homenagem à menina.
— Trabalho promovendo oficinas de grafite com cerca de 200 crianças carentes. A arte é como eu sei me expressar e achei que era um momento oportuno para ajudar nessa reflexão — comenta o artista.
Ao lado do desenho de Naiara sorrindo e caracterizada de anjo, há também a frase "Sua morte deixou uma dor que nada pode curar. Mas nosso amor deixou lembranças que ninguém pode apagar".
— A gente tem que colocar à disposição o que está ao nosso alcance. O grafite foi a minha forma de expressar a mensagem. Não adianta postar cosias sobre o que, às vezes, você nem se move para agir. Ela era um fantasma na sociedade, foi vista por causa dessa situação, mas quantas vezes ela não passou por frente dessas pessoas que estão criticando e não foi percebida? — provoca Barbosa.
Já a aposentada Viviane Grazziotin, 68, moradora do bairro Lourdes, ainda se emociona ao falar da aflição que viveu nos 12 dias de buscas por Naiara e do choque com a confirmação da morte da menina. Para amenizar a dor, ela passou a desabafar por meio da escrita:
— Comecei a escrever e me sentia aliviada de me expressar no papel. Iniciei com algumas "cartas" desabafando e terminei com um acróstico com o nome dela no qual eu agradeci e desejei amor para a Naiara. Passei a rezar também todas as noites.
Memorial
Outra proposta que surgiu em meio à comoção foi a da moradora do bairro Rio Branco Helena de Castro. No final de março, a aposentada enviou uma carta ao Pioneiro na qual sugere a criação de um memorial para a menina no terreno onde ficava a casa em que a criança foi assassinada, no bairro Serrano. O terreno hoje está vazio porque os proprietários do imóvel decidiram demolir a estrutura após tentativas de vandalismo.
— A própria igreja e a prefeitura poderiam fazer algo nesse sentido. O pessoal caminha 20 quilômetros até Caravaggio e em excursões para visitar santuários... Por que não termos santa daqui? De qualquer forma eu já estou rezando por ela — relata Helena.
O vigário-geral da Diocese de Caxias, Leonardo Pereira, não soube informar a possibilidade de envolvimento da igreja na ideia. No entanto, ressalta que a morte da menina ainda precisa gerar uma reflexão espiritual.
— Temos uma violência diária vivida por diversas crianças. Assim, teríamos de erguer um santuário em cada esquina para promover essa reflexão sobre a paz — comenta.
Os donos do terreno onde ficava a casa informaram à reportagem que não pretendem fazer qualquer intervenção no espaço e que não possuem planos para ocupação da área novamente.