Após 29 anos de voluntariado, a psicanalista Léa Fernandes Signori, 67, deixa a presidência do Lar da Velhice São Francisco de Assis. Doutora Léa, como é conhecida na instituição, passa neste sábado, às 14h30min, o cargo para a empresária Analice Carrer.
— Mas é claro que eu não vou deixar de vir aqui. Eu tenho um amor imenso pelos idosos. Tanto que eu tenho vários que me chamam de mãe. Então, eu nunca poderia abandonar isso — garante Léa.
Ela sai do cargo devido a uma mudança no estatuto da entidade, que limitou o número de reeleições possíveis. A presidência do lar é definida por membros de um conselho da Ordem Franciscana Secular, administradora do local.
Mas os 21 anos que passou à frente da instituição foram muito bem aproveitados. Entre as maiores conquistas do período, ela cita a construção do Recanto das Laranjeiras, residência asilar que cobra mensalidade e ajuda a manter o Lar da Velhice, além de pequenas mudanças que contribuíram para a humanizar o local.
— Sou psicanalista e sempre pensei que eu queria ajudar pessoas que não tivessem condições financeiras. E queria dedicar o meu tempo para uma entidade que ajudasse pessoas idosas, que eu sempre gostei. Penso que é um público que não recebe tanta atenção — lembra Léa.
Quando começou, ela ajudava a cuidar da saúde mental dos moradores da casa, tarefa que ocorria sempre nas quintas-feiras, rotina que mantém até hoje — nos outros dias, atende no consultório particular. Anos mais tarde, depois de diversificar as atividades até a promoção de eventos para arrecadar verbas, Léa foi convidada a assumir a presidência. Mas, logo nos primeiros dias, já havia notado que o Lar da Velhice precisava de mudanças.
— Quando eu vim, assisti a várias situações de familiares trazendo idosos que não queriam ficar aqui. Achei um horror. Acompanhei o caso de uma senhora e, a partir disso, pensei: tem que mudar isso. Se os idosos, os que estão lúcidos, não querem ficar aqui, que não fiquem. Porque é uma falta de respeito com o ser humano. Eu via muito o lar como se fosse um depósito de idosos. E o meu objetivo foi transformar o Lar da Velhice literalmente num lar — relembra Léa.
A mudança começou com os próprios familiares, num processo que visa dar autonomia aos idosos.
— A gente começou a combinar de a pessoa ficar uma semana, ver se ela gosta, se adapta. Para ver se estava vindo porque queria. Muitos (familiares) mentiam, inclusive, que aqui era um hospital, um hotel, que iam ficar por um tempo. E depois não apareciam mais — conta.
Com o passar dos anos, o trabalho de conscientização proposto por Léa deu resultado:
— Hoje, o idoso só fica aqui se ele quiser. Às vezes, as pessoas vêm e dizem, "mas ele está lá, mora num casebre". Mas, às vezes, ele é mais feliz lá. Se ele tem condições de fazer sua opção, é assim. E foram pouquíssimos que fizeram a opção de ir embora. A maioria ficou justamente porque gostou, se sentiu bem. Aqui, eles convivem com pessoas da mesma idade, que têm os mesmos problemas — pondera.
O hábito de escutar e observar proporcionou com que Léa melhorasse muitas coisas pequenas, mas essenciais, no Lar da Velhice.
— Há 29 anos, quem morria ia direto para o cemitério. Fiquei espantada. Não pode, a maioria é católica, porque o padre não vinha aqui? Então instituímos isso. Os aniversários também, muitos diziam que não lembravam quando era. Fiz um quadro com os aniversários de todos, e cantavam parabéns. Depois, consegui com uma doceria a doação de uma torta, para comemorar os aniversários uma vez por mês. É uma coisa pequena, mas é uma valorização da tua vida — exemplifica.
A alegria com que Léa relata as experiências na casa contrastam com um ambiente geralmente reconhecido pela proximidade com a morte. Para ela, a relação não poderia ser mais distante.
— As pessoas dizem, "como tu consegue? Aquilo é muito triste". Digo, triste por quê? Eles estão muito bem aqui. Têm toda assistência médica, alimentação, higiene, passeios... Eu termino a minha presidência com a sensação de dever cumprido.
Equilíbrio financeiro do lar é desafio e conquista
Como entidade sem fins lucrativos, o Lar da Velhice dependeu totalmente de doações para funcionar desde a fundação, em 1960. Para tentar superar essa dificuldade, durante sua gestão, Léa e outros administradores da casa pensaram em uma alternativa, que a presidente considera o maior desafio e a maior conquista: a construção do Recanto das Laranjeiras.
— Aqui, o que a gente sempre esbarrou foi na questão financeira. O objetivo com o Recanto das Laranjeiras era fazer uma casa que atendesse a uma camada da sociedade, da comunidade de Caxias, que procurava atendimento fora daqui porque não existia uma casa mais elitizada — lembra.
Durante a década de 1990, a nova estrutura foi construída, também no bairro Marechal Floriano. A obra levou vários anos. O desafio pessoal de Léa veio logo no início, quando Ernesto Grazziotin, ex-presidente do Lar da Velhice e idealizador da obra, faleceu.
— Aí eu pensei, meu Deus, e agora? Eu sou psicanalista, não sou engenheira, nem arquiteta. Mas tinha que fazer. Uma obra de mais de três mil metros quadrados, toda feita com doações — comemora.
Hoje, o Recanto das Laranjeiras, que completou 15 anos neste mês, funciona como lar privado, com a cobrança de mensalidades e atende 39 idosos. As atividades financiam mais de 50% dos gastos do Lar da Velhice.
— Às vezes, as pessoas não entendem, dizem que lá é para quem tem dinheiro e aqui não. Eu já penso: ainda bem que alguém pode pagar. Quanto mais pessoas estiverem lá e gostarem do serviço, melhor para nós. É o que nos mantêm. Nesses anos de crise, diminuíram muito as doações. Muitos empresários que doavam, já faleceram. Sem a receita do Recanto, talvez nós tivéssemos que fechar as portas — explica.
Além do Recanto, Léa planejou outra grande obra antes de deixar a presidência: mais 18 quartos para o Lar da Velhice. No ano passado, conseguiu financiamento de 75% da obra por meio do Lions Club e, no fechar das cortinas, encaminhou o restante. Se tudo der certo, em breve a casa poderá atender mais 36 idosos carentes.
Presidente e, nas horas vagas, madrinha de casamento
Há um momento específico que tem lugar insubstituível no coração de Léa: quando organizou o casamento de dois moradores do local. O ano era 1994:
— Eram o seu João e a dona Olinda. Eles começaram a namorar aqui. O seu João tinha uns dois metros (de altura). Ela era bem baixinha. Os dois viúvos. Um dia, ele me disse: "doutora, eu queria tanto uma coisa". Pensei que era uma necessidade. E ele disse que queria casar!
Léa conseguiu convencer a diretoria. Escolheu até a data: 27 de setembro, Dia do Idoso (em 2007, a data passou a ser celebrada em 1º de outubro).
— Fui a madrinha (risos). A gente conseguiu, fizemos um quarto para eles, com doações de móveis. Ela queria casar de branco, uma malharia deu a roupa. Veio o coral da UCS e cantou. Antes de ir para a igreja, ela me perguntou: onde vai ser a nossa lua de mel? E era a única coisa que eu não tinha pensado. Mas uma das enfermeiras conhecia um pessoal de um hotel e nos cederam um quarto. A Kombi levou eles e na manhã seguinte foi buscar — conta.
A cerimônia já fez Léa chorar, mas o desfecho da história é digno de filme:
— O seu João já estava meio doentinho e ela (a dona Olinda) dizia, "eu tenho que ficar viva para cuidar dele. Três anos depois, ele faleceu. Adivinha que dia? Na quinta-feira, quando eu estava aqui. Aí a dona Olinda disse, "agora que o João se foi, eu posso ir". E na quinta-feira seguinte, faleceu. O que explica isso? Foi o amor. Uma coisa maravilhosa que eu sei que prolongou a vida deles — emociona-se.
O casamento só foi possível graças ao empenho de Léa, sempre focada em buscar soluções, e não problemas.
— Quando eu levei (a ideia) para uma reunião com a diretoria, disseram que eu estava louca, todos vão querer casar depois. Sim, mas qual é o problema? Se eles forem lúcidos, estiverem solteiros, fazemos.
O mesmo questionamento aconteceu quando uma das moradoras do lar pediu uma televisão para o quarto.
— Tínhamos uma idosa que fazia esses bordados e bonecas de pano. Ela dizia que queria uma "tevelisão". Colorida. Eu falei, "a senhora está fazendo essas bonecas, então nós vamos vender". Mas eu sabia, óbvio que não daria. Então, levei numa creche e comprei a TV para ela. O presidente na época disse "agora todos os idosos vão querer TV". Falei, então eu vou buscar, com quem quiser doar. Hoje, só não tem TV quem não quer —alegra-se.
O reconhecimento pelo trabalho pode ser notado quando a doutora passa pelo Lar da Velhice. Alguns idosos já dizem que ela parece um sol que dá vida ao local. Eventualmente, Léa passa por um morador e pergunta se está tudo bem, a resposta é imediata:
— Agora que estou do seu lado, sim — brinca o senhor.
— São coisas que tu ouve e quando tu não espera, tu pensa, "mas meu Deus, eu fiz tão pouco". Só que esse tão pouco, para quem recebe, é muito. Não tem dinheiro que pague — define.
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