Quando o técnico em impressoras Clademir Zotti procurou o Ministério Público Federal, em março deste ano, poucas esperanças lhe restavam. Desde outubro do ano passado ele, a mulher e mais três famílias buscam ajuda após seus filhos terem sido certificados — na prática, dispensados — do atendimento na Escola Especial Helen Keller, em Caxias do Sul. Ao todo, seis pessoas com deficiências (surdez e atraso mental) com idades entre 22 e 54 anos teriam sido prejudicadas pela medida. Nesses seis meses, os familiares procuraram diversas entidades, poderes públicos municipal e estadual e vereadores, mas nenhuma solução foi encaminhada.
— Sabe aquele ditado que diz "vai procurar o bispo"? Pois eu, literalmente, procurei até o bispo. Só que até agora todas (as entidades e autoridades) atribuíram a responsabilidade uma para outra e ninguém fez nada — desabafa Zotti.
O filho dele, William, tem 29 anos. A idade é justamente um dos argumentos para a dispensa — tanto dele quanto de outros quatro jovens na faixa entre 20 e 30 anos. William é surdo e tem paralisia cerebral. Além disso, locomove-se apenas por cadeira de rodas e tem idade mental de nove anos.
O Certificado de Conclusão com Terminalidade Específica expedido pela instituição anteciparia o término do Ensino Fundamental, tornando o aluno apto a ingressar no Ensino Médio — mesmo que os jovens tenham cursado entre o 4º e o 6º anos—. O problema é que para o Ensino Médio só há turmas no turno da noite na Helen Keller (única instituição a ofertar formação pedagógica a surdos em Caxias), o que inviabiliza a logística e a rotina de trabalho dos pais de William.
— Não temos condições de levá-lo à noite. Precisávamos que fosse durante o dia, pois trabalhamos para custear a vida do William (entre os tratamentos, a família gasta mais de R$ 1,5 mil/mês) — complementa Zotti.
Embora a secretária municipal da Educação, Marina Matiello, alegue que não haja restrição de idade para atendimento da rede de inclusão no município, ela afirma que os estudantes já teriam aproveitado todo o alcance de aprendizagem proporcionado pelo Ensino Fundamental, estágio onde se enquadravam na grade escolar.
— Eles precisavam ir para o Ensino Médio em algum momento, caso contrário o atendimento vai ficar se repetindo e eles não vão aproveitar nada. Nossa obrigação como município, por lei, é garantir atendimento até os 18 anos. Esse parecer que certifica eles (os alunos) para o Ensino Médio é técnico — defende a secretária.
Ela explica que o caso já foi remetido à 4ª Coordenadoria Regional de Educação, que é a entidade responsável pelos encaminhamentos da Helen Keller no âmbito do Ensino Médio. No entanto, de acordo com Marina Matiello, as famílias já haviam recebido a proposta de continuidade do atendimento, porém, a rejeitaram por se tratar do turno da noite:
— As famílias alegaram que precisam que o atendimento seja durante o dia, pois eles trabalham e não têm com quem deixar os filhos. Agora, quem deve articular isso é a 4ª CRE com a Secretaria Estadual da Educação. Da parte do município, fizemos tudo que estava ao nosso alcance.
Quando Zotti procurou o MPF como último recurso há algumas semanas, não imaginava que o órgão seria o responsável por pressionar o poder público. Recentemente, a prefeitura de Caxias foi notificada sobre a demanda e, a partir disso, articulou-se para organizar reunião sobre o assunto, ocorrida nesta segunda-feira.
"Foi uma decisão arbitrária e insensível"
Embora a secretária de Educação ressalte o embasamento técnico e legislativo da certificação, a decisão é contestada pela ex-diretora da Helen Keller Maria Alice Stefanon, que alega que não houve respaldo técnico. Na verdade, segundo ela, a instituição havia sugerido a permanência dos alunos.
— Não tem porquê o município fazer isso. Não ia gerar novos gastos, pois usariam os mesmos profissionais. Eu era diretora quando a secretaria nos comunicou da decisão. Tentamos argumentar e eles foram inflexíveis. Foi uma decisão arbitrária e insensível — denuncia.
O parecer descritivo emitido pela secretaria alega que a decisão em conceder o certificado a William foi conjunta entre a família do estudante, profissionais da escola e assessoria da secretaria. Todos os consultados pela reportagem contestam o fato e afirmam que, na verdade, a decisão foi unilateral.
— Nos posicionamos contrários por diversas vezes. Eles poderiam permanecer até o nono ano. Mas apenas executamos as ordens, não tomamos as decisões — afirma Maria Alice.
A secretária Marina Matiello garante que as articulações para a transição dos estudantes foram realizadas conforme o previsto:
— O que não houve foi aceitação desses pais. A gente entende que precisa propiciar o desenvolvimento. Em nenhum momento houve falta de diálogo.
4ª CRE avalia retomada de atendimentos para 2019
A coordenadora regional de Educação reconhece que houve falhas na articulação para o encaminhamento.
— A solicitação para uma abertura de uma turma à tarde nunca havia chegado até nós. Eles (Secretaria de Educação) deveriam ter nos procurado antes. Não temos como abrir uma turma sem estrutura nenhuma e sem programação — afirma Janice Moraes.
Ela, no entanto, conta que a 4ª CRE encaminhou solicitação para abertura de nova turma para o dia. Ainda assim, antecipa que, devido aos processos burocráticos que devem transcorrer, a medida só deve ser concretizada no próximo ano.
— Não há muitos profissionais no nosso quadro com habilitação para trabalhar com Libras. Encaminhamos a solicitação para o turno da tarde, mas isso não se resolve de ano pro mesmo ano. Há um período em que são organizadas as turmas e, mesmo se fosse possível abrir imediatamente, teria problema de recursos humanos. Tudo é uma questão de planejamento — explica.
Janice diz que apesar de haver, de fato, embasamento em lei federal para a emissão de certificação, a decisão tomada pela secretaria é questionável:
— Eles (alunos) ficaram até agora. Acredito que poderiam ter ficado mais um tempo sem a certificação. Dá-se essa certificação aos estudantes que estão condições de seguir adiante. Aí, fica o meu questionamento: eles tinham condições de seguir adiante?
"Não há instituição pública ou privada, além da Helen Keller, para cuidar dos nossos filhos"
Atualmente, devido ao fato de os pais de William Zotti trabalharem durante o dia, os avós acabam cuidando dele. A situação, no entanto, não deve se manter por muito tempo, de acordo com a mãe de William, Maria Ilone Zotti.
— Os meus sogros são idosos, têm mais de 80 anos. Não podemos passar esse problema para eles — afirma.
Ela acrescenta que o movimento de pais que cobram providências não questiona a lei em que o município se baseia, mas, sim, a forma como a rede lidou com a situação:
— Todos os órgãos sabem que não há nenhuma instituição pública ou privada, além da Helen Keller, para cuidar dos nossos filhos. Se eles queriam dar essa certificação sabendo das consequências, poderiam ter apresentado uma alternativa. Nós vamos batalhar por eles e não vamos aceitar qualquer coisa. Não podemos deixar que regridam.
Embora tecnicamente a Escola Helen Keller possua o mesmo formato pedagógico do ensino regular, com a diferença de os profissionais disponíveis terem conhecimento de Libras, as famílias ressaltam que as atividades voltadas especificamente a pessoas com necessidades especiais facilitam o desenvolvimento e a evolução dos estudantes.
— Lá, eles tinham computação, desenho, recorte. Mesmo em épocas que eles evoluíam pouco, digamos 10% em um ano, ainda assim é muito importante. Eles estão sendo estimulados. Mas o poder público não vê retorno nos nossos filhos. Para eles, são apenas gastos e vagas que podem ser abertas. E o pior é que com a prefeitura não tem negociação — comenta a diarista Marili Pereira, mãe de William Pereira, 22 anos, outro estudante certificado, que é surdo e deficiente mental.
Ela também contesta o tratamento dado à situação pela secretaria de Educação, que, segundo afirma, responsabilizou somente as famílias:
— A secretária falou que queríamos nos livrar dos nossos filhos. Isso não é verdade. Muito pelo contrário, estamos lutando por eles e sendo teimosos nisso — ressalta.
Estudantes sentem falta do convívio
Para Angélica Cristina dos Passos, cunhada do estudante Pablo Vinicius da Cruz, 22 anos, também certificado, o descaso e a falta de opções tornam a família impotente diante da situação. Ela e o marido passaram a cuidar de Pablo, que possui atraso mental e é surdo desde o ano passado, quando os tutores dele morreram.
— Ele perdeu o avô e a avó no mesmo ano. E, justamente nesse momento difícil, perdeu também a escola. Procuramos por tudo e não encontramos nada. É desprezível a forma que a secretaria está tratando isso — protesta.
Os familiares lamentam também a carência que os jovens sentem pelas atividades pedagógicas.
— Não tenho problema em dar atenção, mas é complicado porque tenho dois filhos. E o pior: quando ele vê meus filhos indo para a escola, (o Pablo) também pede para ir. Não sabemos o que fazer — desabafa Angélica.
— Esses dias eu estava estava fazendo anotações em um caderno, e ele (William) ficou me olhando. Dei rascunho e ele escreveu bastante. Ele sente falta. Pergunto se ele sente falta, e ele comunica que sim — relata Marili Pereira, mãe de William Pereira.
ENTENDA O CASO
Seis pessoas com deficiência entre 22 a 54 anos receberam no ano passado o Certificado de Conclusão com Terminalidade Específica do Ensino Fundamental da Escola Helen Keller. Com isso, eles passaram a estar aptos a iniciar o Ensino Médio na mesma instituição que, no entanto, oferece a modalidade somente no turno da noite, o que inviabiliza a participação dos alunos nas turmas.
Além da inviabilidade do turno para as famílias, não há outra opção além da Helen Keller para atender ao público em questão. A insuficiência de profissionais com capacitação em Libras é o principal empecilho.
As famílias procuraram soluções junto à Fundação de Assistência Social (FAS). Porém, a entidade alegou possuir apenas modalidade de serviços semelhantes para pessoas em situação de vulnerabilidade ou risco social e sem instrumento pedagógico requerido pelas famílias.
A prefeitura de Caxias alega que a situação deve ser resolvida pelo Estado, por meio da 4ª Coordenadoria Regional de Educação, responsável por administrar o Ensino Médio da instituição.
A 4ª CRE afirma que solicitação por abertura de nova turma demorou para ser encaminhada. Com isso, haverá um tempo maior para articulação e organização da medida. A Coordenadora estima que processo só poderia ser viabilizado para o próximo ano.
O que diz a legislação
Art. 59. Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação:
I - currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades;
II - terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados;
III - professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns;
IV - educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora;
V - acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais suplementares disponíveis para o respectivo nível do ensino regular.