Cada vez que olha para o quintal da sua casa, a agricultora de Bento Gonçalves Serena de Souza, 52 anos, silencia. Ao tentar explicar o que aconteceu ali há quase duas semanas, a voz falha e os gestos denunciam o tom de desespero. Serena estava na cozinha de casa na manhã do dia 8 de fevereiro. Ela explicava à mãe que não iria roçar o terreno porque preferia preparar uma geleia para aproveitar as frutas que recém havia colhido. Antes de terminar a frase, escutou um estrondo. Correu para tentar entender o que acontecia: um caminhão caiu de um barranco no km 8 da ERS-431, se partiu ao meio e, destruído, tombou no terreno vizinho. Tem alguém ali dentro, pensou ela, antes de acionar socorro.
— "É uma vida, é uma vida", eu gritava para a moça do Samu. Mas eu não consegui me fazer entender. Pedi que um vizinho ligasse então para o Samu, porque eu não consegui — lamenta Serena.
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Trecho sinuoso da ERS-431, em Bento Gonçalves, matou nove pessoas desde 2010
Caminhoneiro morre em acidente na ERS-431, em Bento Gonçalves
O drama ficou maior ao acompanhar o esforço de bombeiros para tentar resgatar o caminhoneiro Renan de Souza, 28 anos. Trabalho em vão, porque o jovem morreu na hora com o impacto. Na semana passada, os pedaços do caminhão ainda estavam espalhados pelo terreno ao lado da casa de Sirena. Ninguém sequer removeu os destroços. O caminhoneiro é a 12ª vítima em um trecho de dois quilômetros da ERS-431, no distrito de Faria Lemos, desde 2010. A contagem é do Pioneiro.
Ao contrário de rodovias como a BR-470, BR-116, ERS-122 ou RSC-453, que costumam ser alvo de operações especiais ou reforços de fiscalizações, a ERS-431 parece não ter a mesma visibilidade. Isso porquê é um trecho com menos movimento de veículos mas, mesmo assim, é uma das rodovias que mais matou gente na Serra Gaúcha — em uma extensão de apenas dois quilômetros, repita-se.
Além das características geográficas que tornam a ERS-431 extremamente perigosa, se desenhando sinuosa e com declive de quase quatro quilômetros, há muita imprudência por parte dos motoristas. Excesso de velocidade e ultrapassagens em pontos proibidos são só algumas das irregularidades que ocorrem ali e que o Pioneiro flagrou numa manhã de observação.
— Nós investimos R$1,5 milhão em sinalização, mas o pessoal tem que obedecer o que está escrito ali. Um caminhoneiro que quer manter a vida não pode colocar o excesso de peso, porque a caixa vai estourar e o caminhão não vai vencer as rampas de Faria Lemos— observa o diretor geral do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer), Rogério Brasil Uberti.
Uberti destaca que três pessoas morreram após o trecho receber sinalização noturna e a instalação de guard-rails que, segundo ele, são repostos com frequência. O engenheiro aponta este comportamento como um indicativo de excesso de confiança. De fato, a rodovia está em boas condições. O asfalto foi refeito há pouco _ e entregue na última quinta-feira à comunidade. Há placas que indicam a velocidade máxima para o trecho e alerta para o uso de freio-motor. A pintura no asfalto também lembra que é preciso rodar "devagar". Mas parece pouco diante de tantas mortes. A maior parte das vítimas tinha até 35 anos e duas crianças estão entre os mortos. Está descartada a possibilidade de mudar o traçado da rodovia, que apresenta ao menos 12 curvas extremamente fechadas e em um declive considerável, diz Uberti.
— O que podemos garantir é que o traçado está exatamente onde deveria estar. Em qualquer outro ponto, seria economicamente inviável — defende.
Trânsito de caminhões é proibido, mas norma não é seguida
A ERS-431, que liga os municípios de Bento Gonçalves a Dois Lajeados, é extremamente importante para a economia da região porque escoa, principalmente, boa parte da safra da uva. Inevitavelmente, o vai e vem de caminhões se torna habitual. No entanto, o trânsito de caminhões pela rodovia está suspenso desde o dia 12 de junho do ano passado, para que o Daer arrumasse o trecho do Km 12, que pertence a Monte Belo do Sul, e está com rachaduras na pista. Mesmo assim, basta alguns minutos de observação para constatar que este é o público que mais utiliza a rodovia. Mesmo com a proibição, indicada com uma placa no entroncamento da ERS-431 com a BR-470, a circulação de caminhões é recorrente.
— Nós devemos intensificar a fiscalização, já fizemos contato com o Daer de Bento Gonçalves. A multa é de R$ 187 e cinco pontos na CNH para quem descumprir a determinação— avalia o comandante do Grupo Rodoviário da Brigada Militar de Farroupilha, tenente Marcelo Stassak.
A proibição deve se estender pelos próximos dias, conforme o Daer. Mas a fiscalização por parte da polícia certamente teria um papel importante neste trecho:
— A BR-470, na descida do Rio das Antas, em direção a Veranópolis, é muito mais perigosa. E não tem tanto acidente como na ERS-431. São dois motivos: o patrulhamento da PRF e também porque os motoristas sabem que é perigoso ali, então, vão devagar — avalia o diretor-geral do Daer, Rogerio Uberti.
"Essa curva é sangrenta"
O trecho mais perigoso da ERS-431 é entre a Linha Paulina, no início da comunidade de Faria Lemos, até a Linha Alcântara. São cerca de 10 quilômetros com curvas fortes e poucos trechos de reta. Acostamento é praticamente inexistente — há poucos acessos secundários em que motoristas podem se refugiar, mas há barrancos por todos os lados.
Quem vive na comunidade de Faria Lemos e, especialmente na beira da rodovia, entende bem porque há tantas palavras "devagar" pintadas no asfalto. É preciso mais prudência, e poucos são os que respeitam a velocidade máxima de 60 quilômetros por hora. Uma das casas construídas no fim da interminável descida em direção a Dois Lajeados é também ponto de acolhimento. Famílias costumam bater na casa de dona Lucila de Lourdes Cristofoli, 64 anos, para usar banheiro, pedir telefone e buscar socorro. São mais de 40 anos em que vive em uma bonita residência no km 10, entre duas curvas que concentram boa parte dos capotamentos e colisões fatais. Prova disso é que, mesmo cercado, o pátio tem cacos de vidro de veículos que ocasionalmente caem ali.
Lucila tem dificuldade em relatar a sequência de 25 mortes que diz ter testemunhado quase na porta de casa desde o fim da década de 1990, época em que o asfalto chegou até a localidade. O que era para trazer evolução ao distrito de Faria Lemos seria, também, o motivo de muita insegurança no trânsito.
Ela emociona-se ao lembrar de crianças, pais de famílias e motoristas jovens que perderam a vida. Já foi chamada até para fazer oração na cena do acidente para tentar, em vão, trazer alguém de volta enquanto o socorro médico não chegava.
— Essa curva é sangrenta, é sangrenta, aqui nós choramos lágrimas de sangue. Quantas pessoas já perderam a vida aqui, o que as autoridades estão esperando que aconteça para fazer algo por nós? E os motoristas, quando vão tomar cuidado? Eu tenho certeza que 90% do que já vi acontecer aqui de ruim é falha humana — desabafa Lucila.
Parte dos terrenos usados para que o traçado da ERS-431 fosse concebido pertenciam a ela e ao marido. Quando viu o desenho do projeto, ficou temerosa. Sabia que seria perigoso. E agora, pede mais atenção da polícia e das autoridades:
— Quem sabe uma lombada eletrônica? Mais guard-rails? Quem sabe uns tachões na pista? Se foi falha lá atrás, na hora de desenhar a pista, quem paga a conta somos nós— cobra a dona de casa..
"Tu não vai vencer a curva", gritou tendeiro
Sentado em uma tenda que vende produtos coloniais, Artêmio Cobalchini, o Neco, chora ao falar das crianças que já tentou socorrer em acidentes na ERS-431. Não que as outras vítimas não impactassem o sentimento do vendedor, mas quando os casos envolvem crianças, a situação fica pior, afirma ele. Por ficar boa parte do dia esperando pelos clientes na beira da rodovia, no km 8, ele já presenciou a dezenas de acidentes. Também acaba ajudando pessoas que pedem para que ele acione socorro ou ceda um copo de água, por exemplo. Um dos casos mais impactantes, que vitimou um caminhoneiro e a enteada de seis anos em 2017, foi acompanhado de perto por Neco. No mesmo dia, pela manhã, ele havia gritado a um motorista para buscasse uma forma de parar um caminhão sem freios. Esse condutor acabou morrendo.
— Minha esposa desembarcou do ônibus e me disse: Neco, está descendo um caminhão em velocidade alta e cheio de fumaça. Quando vi, eu gritei: tu não vai vencer, tu não vai vencer (a curva)! Não deu tempo. Depois, o caroneiro disse que eles me escutaram, mas não sabiam o que fazer. Eles tinham que ter "barranqueado"— lamenta Neco, referindo-se ao ato de tirar o caminhão da pista e tentar pará-lo nos paredões de pedra da ERS-431.
Até que ele superasse o trauma vivido naquele 4 de outubro, Neco passou noites em claro. Ele assiste, diariamente, a muitas ultrapassagens em locais proibidos e de caminhões que começam a perder a capacidade de frear próximo da tenda. Por isso, o comerciante recomenda:
— Eles (motoristas) precisam ler as placas para reduzir a velocidade. E também não descer isso aqui cheio de carga, porque não vão conseguir vencer as curvas.
DOZE VIDAS PERDIDAS
:: 2010: no dia 27 de setembro, a colisão entre um caminhão e dois carros no km 9 matou Paulo Laércio Bruxel, 22 anos, Adílio Goulart, 32, Lorici Fátima dos Santos, 37 anos e Vitória dos Santos Goulart, quatro.
:: 2014: Aldino Manoel Araldi, 60, e Carlos Costa Gomes, 56, estavam em dois caminhões que colidiram no Km 9 no dia 6 de novembro.
:: 2015: Alexandre Lima Ramos, 28, passageiro de um caminhão, morreu num acidente no Km 10, no dia 28 de julho. No dia 6 de novembro, Jefferson Sant'anna, 33, morreu após tombar um caminhão.
:: 2017: Bruno Storti, 24, morreu ao bater uma moto contra uma máquina agrícola no Km 10, no dia 16 de junho. No dia 4 de outubro, Robinson da Silveira Machado, 28, perdeu a vida no tombamento de uma carreta. À noite, morreu Emanueli Reisla Barbosa Delziovo, seis anos, que estava na carona do caminhão conduzido
:: 2017: No dia de 16 de junho, Bruno Storti, 24, morreu ao bater a moto que conduzia contra uma máquina agrícola no Km 9 da ERS-431. No dia 4 de outubro, mais dois acidentes graves no Km 9. Pela manhã, Robinson da Silveira Machado, 28, perdeu a vida ao tombar um caminhão. À noite, morreu Emanueli Reisla Barbosa Delziovo, seis anos, caroneira de um caminhão conduzida pelo padrasto, Lucas Batista de Jesus, 21. Lucas morreu no hospital.
:: 2018: Renan de Souza, 28, morreu ao perder o controle de uma carreta e caiu em um barranco no km 8.
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