— Gente pobre se mete com gente rica e cai lá embaixo — pondera Genny Lovatto, 88 anos.
— Mas isso tá errado. Se ninguém fala, eles se aproveitam da situação — rebate Lourdes Maria Lovatto, 49.
A discussão entre mãe e filha acontece enquanto as duas decidem se revelam o drama de dona Genny para conseguir uma cirurgia. Para recuperar a qualidade de vida, a aposentada dependia de um procedimento de urgência coberto pelo plano de saúde. Todos médicos que ela procurou, porém, exigiraam um pagamento extra, valores incompatíveis com a renda da aposentada.
O receio de dona Genny em relatar o caso espelha o da maioria dos pacientes que se encontra frente a uma situação de cobrança indevida: a necessidade de tratamento e a relação de dependência com o médico desencorajam denúncias sobre supostas irregularidades.
Desta vez, porém, o sentimento de indignação da filha falou mais alto. Na sala pequena — mas impecável — da casa de madeira onde vive com a mãe, no bairro Serrano, em Caxias, ela decidiu contar ao Pioneiro o drama vivido desde a metade do ano.
Em junho, a geriatra de dona Genny detectou um problema de saúde que exigia a retirada do útero e recomendou outro profissional para a realização do procedimento. A cirurgia foi feita, mas 15 dias depois a aposentada voltou a apresentar os mesmos sintomas.
— Começou a agravar e eu marquei consulta com uma urologista. Pensei que era um problema de bexiga — relata Lourdes.
Com os novos exames, ela descobriu que o problema seguia no útero. Ao invés da histerectomia total (retirada de todo o órgão), procedimento pago pelo plano, o médico havia feito a retirada parcial do útero. Lourdes ainda estuda se entrará na Justiça pelo suposto erro médico.
A urologista recomendou uma consulta com uma colega ginecologista, que constatou a necessidade de uma nova cirurgia.
— Ela (a ginecologista) disse que cobrava R$ 3,2 mil e queria o dinheiro antes de fazer a cirurgia na minha mãe — conta Lourdes.
A ginecologista disse que realizaria o procedimento em parceria com a urologista que, por sua vez, já havia solicitado R$ 3,5 mil da paciente. Antes de pagar, Lourdes entrou em contato com a Unimed, operadora do plano.
— Achei muita grosseria ela (a médica) chegar e dizer, "quero uma nota em cima da outra, não quero cheque nem cartão". Eu perguntei, "tu me dá o recibo?". Ela disse "não, não trabalho com recibos"— lamenta.
Na Unimed, mãe e filha foram informadas de que deveriam procurar outro médico e receberam um novo laudo de urgência para agendar a cirurgia. A consulta com outro profissional, realizada em novembro, não teve o desfecho esperado.
— Esse doutor simplesmente disse que precisava de três médicos e cada um cobrava R$ 5 mil. R$ 15 mil era a diferença. Acho um absurdo. Tu paga um plano há tantos anos para isso. E ainda teve anos que a minha mãe nunca usou — comenta Lourdes, que deixou o emprego como metalúrgica para se dedicar integralmente aos cuidados da mãe, que paga R$ 644 pela mensalidade do plano.
Após a denúncia de Lourdes, o plano tinha prazo legal de sete dias para conseguir um profissional que realizasse a cirurgia de graça, o que não ocorreu. Foi somente por meio da intervenção de uma amiga da família que Lourdes finalmente conseguiu uma médica que operasse a mãe sem custo, no dia 1° de dezembro, quase um semestre após a primeira consulta.
Cicatrizes físicas e psicológicas
A manicure Ana Maria Mottes é outra paciente que vivenciou uma situação de cobrança por fora na rede privada. E pior: ela diz que está há mais de um ano sofrendo as consequências de um procedimento mal sucedido. Ana também precisava retirar o útero. Com o procedimento coberto pelo plano, ela marcou a data com uma ginecologista.
— Depois que todos os papéis estavam feitos, ela disse que cobrava. Se fosse por baixo (via vaginal), era R$ 2 mil. Se fosse por videolaparoscopia (método menos invasivo, por vídeo), era R$ 4 mil. Aí eu paguei os R$ 1,9 mil, ela me deu um desconto, e fiz — lembra.
Na época, Ana não questionou a cobrança. Oito dias depois, porém, diz que começou a sentir dores na região abdominal.
— Fiquei seis meses assim, reclamando. Ela me dava tratamentos e no fim eu fiz uma ecografia que apontou a infecção. Aí ela fez a cirurgia por vídeo e não me cobrou um real. Porque ela tinha errado — afirma.
Ainda assim, o desconforto continuava.
— Na terceira vez, ela me encaminhou para outro médico, porque dizia que eu estava com problemas emocionais, que era coisa da minha cabeça. Quando fizeram de novo (a cirurgia), por vídeo, viram que eu estava com as duas trompas infeccionadas, quase explodindo.
Conforme Ana, a médica justificou a cobrança inicial dizendo que o custo era referente ao aluguel de pinças necessárias para a cirurgia. Ela não levou adiante as reclamações sobre a cobrança e o suposto erro médico, mas ainda vive com as cicatrizes do trauma.
— Até hoje eu tenho problemas, não estou bem. Essa noite eu até sonhei que tinha colocado ela na Justiça. Foi muita humilhação, eu sentia muita dor — recorda.