O desabafo de uma familiar do homem indiciado por atear fogo na ex-companheira e na afilhada deles de 8 meses levantou a discussão sobre como Caxias do Sul está cuidando dos seus dependentes químicos. O caso acabou resultando na morte da criança e deixou a mulher com graves queimaduras pelo corpo. Em estado de desespero, a tia do suposto autor do crime – responsabilizado pela Polícia Civil por homicídio com duas qualificadoras e por tentativa de homicídio – procurou o Pioneiro para relatar a dificuldade que a família enfrentou na busca por tratamento ao homem que é usuário de drogas desde os 14 ou 15 anos.
Em seu relato à reportagem, a tia disse que a família queria uma internação compulsória (que ocorre independente da vontade do usuário), mas que foi informada pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e pela Brigada Militar que, para isso, seria necessária uma ordem judicial. Não houve tempo para a medida antes que o crime ocorresse.
O caso de Maycon Marcelino da Silva, 30 anos, é um exemplo extremo, mas que serve de alerta para muitas famílias. Para quem luta, junto com os seus dependentes químicos, por um tratamento, é bom saber que qualquer pessoa, independente de renda salarial tem direito ao tratamento público gratuito oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O acesso pode começar na rede básica de saúde ou nas unidades especializadas, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) para dependentes químicos. Caxias tem dois desses centros, um municipal, o Reviver, no bairro Cinquentenário, e o Centro de Atenção à Vida Novo Amanhã, no bairro São Ciro, que presta serviço ao município.
Só no Reviver, segundo a coordenadora, Margarete Isoton De David, são cerca de 9 mil cadastros de pacientes que utilizaram ou utilizam algum tipo de serviço oferecido no local. No Novo Amanhã, conforme Chiara Ziliotto Brisotto, que coordena a unidade, são mais de 3 mil cadastros, totalizando cerca de 12 mil usuários do sistema na cidade.
Se considerarmos a população estimada para Caxias do Sul em 2017 pelo IBGE, 483.377 habitantes, seria o equivalente a dizer que 2,5% da população local teve ou tem algum tipo de dependência química de álcool e/ou drogas. O índice contabiliza apenas as pessoas que procuram os serviços. Talvez, por isso, esteja abaixo das estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) que são de que cerca de 3% da população brasileira e em torno de 5% da mundial usem drogas ilícitas.
Em Caxias, de acordo com as coordenações dos dois Caps, ambos têm os profissionais recomendados pelo Ministério da Saúde – cada um tem 32, entre funcionários e estagiários – e conseguem atender aos pacientes que chegam. Nos dois serviços são feitos acolhimento, atendimentos ambulatoriais, visitas domiciliares e internações para desintoxicação. Junto ao Reviver, funciona, ainda, o Consultório de Rua, que leva o serviço em pontos onde os usuários costumam se reunir.
Troca de informações
O município diz ainda que há troca de informação e encaminhamentos entre os serviços. Ou seja, os serviços voltados ao atendimento desses dependentes existem, funcionam e se comunicam, segundo os agentes que integram a rede pública municipal. O principal entrave seria a falta de vontade dos usuários em procurar os serviços e em aceitar o tratamento. É que, nos serviços públicos e mesmo nas comunidades terapêuticas, o tratamento não é compulsório, ou seja, não pode ser feito independente da vontade do usuário, ele tem de querer.
Familiares de dependentes químicos confirmam o desinteresse por parte dos usuários e a impotência da família ao ver os casos se agravando e as famílias se desestruturando:
– Já passei noites sem dormir procurando ele (filho) na rua. Quem tem um pouco de condição paga uma clínica. Quem não tem, fica na rua mesmo. Ele (filho) disse que não ia, que não queria se internar. Quando uma mãe chama as autoridades desesperada é para impedir que o filho faça mal para os outros – desabafa a mãe de um usuário de drogas que defende a internação compulsória.
Na prática, esse tipo de internação só é obtida na Justiça. Para pleiteá-la, é preciso procurar um advogado ou a Defensoria Pública do Estado que ingressará com ação na Justiça. A decisão final será do juiz que avaliará o caso.
Inexistência de atendimento específico para adolescentes é um entrave
Se conseguir que o usuário se submeta a um tratamento é difícil, o problema se agrava quando o público é adolescente. Não há um serviço específico para dependentes químicos nessa faixa etária em Caxias do Sul, nem existem comunidades terapêuticas que tenham espaços dedicados aos adolescentes.
Os atendimentos acabam ocorrendo, conforme previsão legal, no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Infanto-Juvenil que é voltado para o atendimento de transtornos mentais. E parte deles nos dois Caps Álcool e Drogas, onde a maioria dos casos é crônico. Nenhum dos lugares é o ideal, conforme reconhecem os servidores dos Caps.
Um dos motivos para não haver um local dedicado exclusivamente aos adolescentes, conforme os agentes da rede de atendimento, é que eles não são, nem de longe, o maior público entre os usuários na cidade. A maioria dos casos que chegam ao Caps Reviver, por exemplo, é de adultos e que acumulam anos de dependência. Atualmente, um número significativo de atendidos no local é morador de rua.
A equipe do Caps refere que já houve situação em que a melhor alternativa para uma adolescente foi fazer o processo de desintoxicação domiciliar. A análise é feita caso a caso pelo serviço. Para além disso, a alternativa é buscar atendimento na rede particular.
Vagas sociais são opções na cidade
Depois do atendimento no Caps, os pacientes podem pleitear um período mais longo de recuperação – que pode variar de seis a nove meses – em uma comunidade terapêutica. Nesse caso, o serviço da rede pública – Caps ou Unidade Básica de Saúde (UBS) –, faz a solicitação à 5ª Coordenadoria Regional de Saúde (5ª CRS) que procura a vaga em um dos estabelecimentos credenciados a receber pacientes junto à Secretaria de Saúde do Estado. Atualmente, apenas um local possui contrato vigente na área de abrangência da 5ª CRS, a Comunidade Terapêutica Vale a Pena Viver, em Gramado. São 10 vagas adulto masculino. Caso haja necessidade, a coordenadoria solicita vagas em outras regiões, fazendo contato com a respectiva Coordenadoria Regional de Saúde.
Conforme a 5ª CRS, mais oito estabelecimentos que atenderam às exigências do edital de chamamento público deste ano estão em processo de vistoria para contratação. Cada vaga custa ao Estado R$ 1 mil por mês.
Além das vagas ofertadas na área da saúde, existem outras custeadas pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), ligada ao Ministério da Justiça (veja quais locais oferecem vagas no quadro).
Ainda há alguns estabelecimentos que oferecem as chamadas vagas sociais que são pleiteadas diretamente pelos pacientes ou familiares no locais.
Plano Municipal sobre drogas deve definir o fluxo de pacientes na cidade
Em processo de reestruturação, o Conselho Municipal de Políticas Públicas sobre Drogas (Compod) de Caxias do Sul tem pela frente a tarefa de elaborar o Plano Municipal de Políticas Públicas sobre Drogas.
A elaboração do plano é uma das atribuições do conselho que é órgão fiscalizador, consultivo e deliberativo e que é composto por 32 pessoas, entre integrantes indicados pelo governo (50%) e representantes de entidades não-governamentais (50%).
Segundo a presidente do Compod, Daiane Carbonera, atualmente, o conselho não tem o cadastro das entidades que assistem aos dependentes químicos na cidade. Ocorre que, o conselho ficou desativado entre os anos de 2014 e 2015 e passou por um processo de reestruturação até ser reativado. A elaboração do plano acabou ficando para o ano que vem e será feita, com as propostas durante a conferência municipal realizada neste ano.
De acordo com Daiane, entre as diretrizes do plano, estará o fluxo de pacientes.
– As drogas são muito associadas à segurança pública, mas antes de ser um problema de segurança, é um problema de saúde. Falta investimento em assistência social e em educação para combater os índices de evasão escolar – argumentou Daiane.
A gestora salienta, ainda, que é preciso efetivar as diversas políticas públicas existentes.
– Muita coisa importante e que faz a diferença já foi elaborada precisa ser implementada, inclusive em nível de saúde, como o Consultório de Rua – opinou.