Restos de madeiras e entulhos deixados às margens da Rota do Sol pelas quase 420 famílias beneficiadas com moradias populares no residencial Rota Nova são uma cicatriz deixada por dois grandes bolsões de pobreza em Caxias do Sul, formados a partir do surgimento de loteamentos irregulares. Apesar de o projeto representar um avanço na área habitacional, a situação ainda está longe de ser resolvida.
A Secretaria Municipal da Habitação não tem um número fechado sobre quais as áreas irregulares ocupadas hoje na cidade nem de quantas pessoas vivem nesses locais. Nos último meses, porém, ordens de reintegração de posse determinadas pela Justiça _ como nos bairros Salgado Filho e Cinquentenário II, por exemplo _ mostram que a situação se espalha por diversas regiões. Embora não represente o total de pessoas que precisem de casa própria, a prefeitura contabiliza cerca de 9 mil pessoas cadastradas para participar de programas habitacionais.
Para a secretária do Urbanismo, Mirangela Rossi, o surgimento de loteamentos irregulares é resultante de diferentes fatores, tanto sociais quanto políticos:
— São questões que abrangem falhas das administrações na fiscalização, seja por falta de estrutura ou noção dos transtornos que as ocupações poderiam representar num futuro. Mas não podemos negar que há falta de informação da população, ausência de políticas públicas para suporte a essas famílias e ainda interesses políticos envolvidos — afirma.
A inexistência de mecanismos públicos voltados à habitação é a principal carência citada, inclusive, por órgãos e entidades ligadas ao Executivo. Para a diretora de Proteção Social Básica da Fundação de Assistência Social (FAS), Heloísa Teles, os mecanismos disponíveis hoje para diminuir a fila de espera a famílias que aguardam moradias são insuficientes.
— Não dispomos de uma política habitacional própria do município. Ainda dependemos muito dos sistemas federais como Minha Casa, Minha Vida. Precisamos desenvolver estratégias para definirmos o que queremos para Caxias no futuro. E isso só será possível por meio de um trabalho intersetorial que reúna diferentes esferas de órgãos públicos — entende.
Contudo, conforme Heloísa, a eficiência do trabalho também depende da continuidade do suporte de equipamentos públicos para propiciar a dignidade das populações que residem em conjuntos habitacionais.
— Temos exemplo do Campos da Serra, onde as pessoas foram contempladas com moradias, mas o poder público não ofereceu nada além disso. Há uma UBS, mas isso não é o suficiente. Precisamos dispor do máximo de direitos sociais para garantir a autonomia desses núcleos —complementa.
Quase 10 mil famílias pobres
A dificuldade de rastrear e combater ocupações irregulares é um problema histórico, agravado pelo aumento populacional e pelas migrações em busca de melhores condições de vida, que também provocam o surgimento de novos núcleos familiares em vulnerabilidade social. Pela última atualização do diagnóstico socioterritorial do município, referente a 2016, 9.599 famílias vivem em condições de pobreza ou extrema pobreza na cidade.
Entende-se por pobre o grupo cuja renda per capita varia entre R$ 85 a R$ 170; em extrema pobreza estão aqueles que vivem com renda per capta mensal de até R$ 85. Com a projeção de que cada núcleo familiar é constituído por, no mínimo, três integrantes, o índice projeta mais de 30 mil pessoas na condição de vulnerabilidade em Caxias do Sul. O estudo contém mais de 300 páginas e foi realizado em bairros, vilas e loteamentos atendidos pelos Centros de Referência de Assistência Social (Cras). Com ele, é possível identificar localidades mais propícias à existência de bolsões de pobreza e áreas de risco.
No diagnóstico, estão citadas também necessidades de cada região para qualificar o atendimento ao crescente número de famílias vinculadas ao Cadastro Único.
NÚMEROS
Confira abaixo os 10 locais com maiores índices de pobreza ou extrema pobreza — perceba que muitas deles sediam ou já sediaram loteamentos irregulares — de acordo com o levantamento, e que concentram 34% do total somado entre todas as regiões atendidas pelos Cras.
:: Fátima Alto - 394 (centro)
:: Santa Fé - 391* (norte)
:: Esplanada - 356 (sul)
:: Planalto - 353 (sudeste)
:: Campos da Serra - 342 (centro)
:: Reolon - 330 (oeste)
:: Mariani - 317 (oeste
:: Desvio Rizzo - 301 (centro)
:: Belo Horizonte - 262 (norte)
:: Serrano - 252 (leste)
* Parte das famílias foram transferidas para o Rota Nova.
Sessenta famílias permanecem no Santa Fé
Levantamento da Secretaria da Habitação indica que 60 famílias continuam a ocupar a área pública às margens da Rota do Sol, no bairro Santa Fé, principal região afetada pela realocação. Os motivos variam. Algumas pessoas se negaram a deixar as residências por não gostarem do novo local, outras não encaminharam documentação a tempo e, também, há grupos familiares com grande número de pessoas, não comportados pela capacidade dos apartamentos do Rota Nova. Essas, cujo termo técnico se refere como "famílias numerosas", aguardam uma solução do poder público, que garantiu realocá-las em sobrados ou moradias de tamanho adequado. A promessa, no entanto, é motivo de desconfiança entre muitos moradores.
— Ninguém nos informa nada. Quando falam alguma coisa, dizem que não sabem o que vão fazer com a minha família. Cortaram a água e a luz e não nos deram respostas — reclama Neusa Hoffmann Pereira, que mora há 10 anos com outras seis pessoas em uma das casas remanescentes.
Neusa Corrêa da Silva, outra moradora das imediações, que residia junto à rodovia e foi transferida para uma outra casa nas proximidades, diz estar desorientada quanto ao futuro. Ela reclama ainda das condições da moradia na qual a prefeitura instalou ela e a família:
— Disseram que iam demolir essa casa e construir uma nova. Mas eles nos "jogaram" de qualquer jeito aqui, sem nos avisar direito. Eu preciso de cuidados médicos constantes e esse lugar que estamos morando dificulta a minha locomoção — comentou.
O coordenador de Habitação da Secretaria da Habitação, Guilherme Luís Junker, reconhece que ainda não há uma definição do que será feito com as famílias restantes. No entanto, garante prioridade àquelas que ficaram de fora da seleção por serem numerosas.
— Aquela área (do Santa Fé) é de propriedade do Daer. Nosso acordo com eles (Daer), que garantia a permanência daquelas famílias, dura até o fim de todo o processo do Rota Nova, ou seja, até a retirada dos entulhos. A partir de então, não sabemos o que pode acontecer, mas, até que não haja uma definição judicial para reintegração de posse, como ocorreu no Cidade Industrial, as famílias poderão permanecer lá — explica.
A prefeitura considera o trabalho de realocação das 420 famílias concluído. Até o final do ano, os moradores receberão acompanhamento de equipe do setor de reassentamento da Universidade de Caxias do Sul (UCS) que irá dar continuidade ao processo de organização comunitária nos condomínios.
Dos necessitados aos oportunistas
— Eu fui o mais prejudicado. Perdi 12 aluguéis que recolhia aqui com moradores — afirmou um homem não identificado à reportagem durante a ação de demolição das últimas casas no bairro Santa Fé, na quinta-feira passada.
O relato simboliza uma das perspectivas comuns que envolvem as ocupações: grileiros, que no passado enxergaram em uma área livre a oportunidade de lucrar. Apesar de, para a maioria das famílias, a aquisição de moradias irregulares estar ligada a dificuldades financeiras ou mesmo ignorância, alguns admitem que sempre estiveram cientes da ilegalidade da condição:
— Na época em que eu cheguei, havia uma placa de "vende-se". A própria pessoa que se adonou e me vendeu o terreno contou que era irregular. Só que ele garantiu que, caso a prefeitura me despejasse, ela me realocaria para outro lugar — afirma Vilson Rodrigues da Silva, que há 20 anos adquiriu uma área no Santa Fé.
Para coibir a ação de grileiros e loteadores irregulares, a prefeitura busca reforçar as ações de fiscalização:
— Desde o início do ano, intensificamos a verificação de denúncias de ocupações. Quando se tratam de áreas privadas, o caso fica com a nossa pasta (Urbanismo). Quando se trata de terrenos públicos, a secretaria da Habitação e a Guarda (Municipal) verificam — explica a secretária do Urbanismo, Mirangela Rossi.
Por outro lado, a presidente da Fundação de Assistência Social (FAS), Rosana Menegotto, cita que a rapidez com que as construções irregulares são edificadas é um fator que dificulta o processo de remoção e o próprio convencimento de famílias a se cadastrarem a algum tipo de programa.
— Podemos, com o diagnóstico de nossa rede, antecipar esses movimentos de ocupações. Mas, mesmo quando conseguimos acessar as famílias para oferecer algum suporte, isso acontece num momento em que a obra já está tão avançada que, normalmente, não pode ser revertida — revela Rosana.
Ela reforça que a orientação à população é sempre procurar o poder público caso observe a invasão de uma área, pública ou privada.
— Caso essas pessoas não sejam impedidas de ocuparem terrenos, é muito provável que venham a viver em situação de vulnerabilidade e risco. A nossa intenção não é tirar a moradia delas e, sim, ajudar com os aparatos que dispomos até essas famílias se reestruturarem de alguma forma — complementa.
Denúncias e ajuda
Ocupações irregulares de terrenos podem ser denunciadas à Secretaria do Urbanismo no 3218-6130. O contato para pedir auxílio social a famílias de baixa renda pode ser feito pelo 3220-8700.
Dois destinos: regularização ou reintegração
As famílias que vivem em áreas invadidas têm duas opções: torcer pela regularização da área ou esperar que o terreno não seja alvo de um pedido de reintegração de posse pelo proprietário legal. A diferenciação entre propriedade pública ou particular, se é uma área verde ou está sob uma bacia hidrográfica são determinantes para projetar as dificuldades para legalizar os lotes ou o grau de risco para eventuais despejos definidos por decisões judiciais.
Em Caxias, há exemplos históricos de ocupações que foram regularizadas por se tratarem de loteamentos consolidados, ou seja, cujas comunidades dispunham de todos os serviços básicos legalizados e comprometimento tributário, inclusive contribuindo com o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), caso do Serrano, por exemplo, que inicialmente era considerado irregular por ter sido loteado em área de bacia.
Além dele, bairros como Jardim América (parte), Jardelino Ramos e Euzébio Beltrão de Queiróz também foram regularizados ao longo dos anos.
Atualmente, a secretaria da Habitação realiza procedimentos em quatro regiões cujas pendências são históricas: Monte Carmelo, Cânyon e Portinari, além do loteamento Esmeralda, na região leste. O mais adiantado é o Portinari, que já tem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) junto ao Ministério Público que determina prazo até dezembro de 2018 para a regularização da área.
Apesar de restar quase um ano para a data, a secretaria da Habitação estima ser inviável conseguir viabilizar até lá e, portanto, deve pedir a ampliação desse prazo.
— Apenas duas pessoas atuam no setor de regularização fundiária (na secretaria), e o processo burocrático é muito amplo e desproporcional ao nosso efetivo — relata o coordenador de Habitação da Secretaria da Habitação, Guilherme Luís Junker.
Outro ponto histórico de invasão é o loteamento Vila Amélia, na região do Desvio Rizzo. Este, de acordo com Junker, enquadra-se numa das regiões de iminente risco de reintegração, uma vez que está localizada na faixa de extensão férrea, cuja proprietária oficial é a União.
— Temos pouco a oferecer para aqueles moradores. São muitas famílias que correm o risco de, a qualquer momento, sofrerem ordem judicial de despejo — acrescenta.
O mesmo critério abrange outros loteamentos localizados junto a trechos da malha ferroviária na região oeste da cidade.
Zonas de risco consolidadas
Um levantamento feito pelo Pioneiro em 2015 mostrava que havia cinco zonas de risco, caracterizadas por habitações irregulares e bolsões de pobreza. Dessas, apenas uma — às margens da Rota do Sol — recebeu solução com a criação do residencial Rota Nova, no loteamento Mattioda. Embora não tenha mapeado os pontos críticos, a Secretaria de Habitação confirma que esses locais continuam sendo vulneráveis. Confira a relação abaixo:
:: Ocupações nos trilhos do trem
Do loteamento Vila Amélia ao bairro Forqueta são cerca de 1 mil famílias assentadas na faixa de domínio da antiga ferrovia. Não há planos definidos para remoção a curto prazo.
:: Subabitação no Planalto
O bairro tem mais de 200 famílias vivendo em áreas precárias. A ideia é construir novos imóveis dentro do bairro e desocupar terrenos dos pontos conhecidos como Chapa e Cooesp. Não há prazo para o projeto sair do papel.
:: Margens do Arroio Tega
Mais 460 unidades serão erguidas no futuro loteamento San Gennaro, próximo ao antigo aterro São Giácomo, entre o Cidade Nova e o Reolon. O espaço receberá famílias de diversos bairros e também dos casebres às margens do Arroio Tega, entre o Reolon e a Vila da Esperança. A expectativa da prefeitura é lançar a licitação em 2018 e concretizar o processo de realocação em 2020. Outra hipótese cogitada é construir uma estrutura para abrigá-los no Campos da Serra.
:: Sob a rede de alta tensão
Pelo menos 20 famílias vivem em subabitações debaixo da rede de alta tensão no loteamento Madalosso, no bairro Cânyon. Não há prazo ou projeto para retirá-las do local.
Prefeitura avalia novos projetos
Com a concretização do Rota Nova, o poder público municipal conseguiu viabilizar o segundo grande projeto de reassentamento num intervalo de dois anos. O primeiro exemplo bem-sucedido foi a ação concluída em 2015, no Fátima Baixo, quando 366 famílias foram realocadas da ocupação conhecida como Valão dos Braga para moradias no loteamento Victório Trez. O processo todo demorou oito anos para ser executado. No Rota Nova, desde o levantamento inicial das áreas até a execução final do projeto, passaram-se cerca de seis anos.
De acordo com o secretário municipal da Habitação, Elisandro Fiuza, apesar de ações como essas demandarem amplo esforço, a intenção é dar continuidade a projetos para realocar famílias que vivem em zonas de risco a moradias populares:
— Já estamos fazendo estudos de locais em situação mais vulnerável para promover novos projetos habitacionais. É claro que dependemos de outras entidades para viabilizar, mas queremos estar com tudo encaminhado já em 2018 — afirma.
Segundo ele, a ideia é lançar um dos projetos nos mesmos moldes do Rota Nova, para remanejar pessoas sem condições financeiras para conjuntos habitacionais sem a cobrança do imóvel. A outra proposta visa dispor de unidades por meio de financiamentos com parcelas de baixo custo.
— Espero que o Rota Nova represente o primeiro passo de algo muito maior. Que sirva de referência para as próximas ações na área e garanta às famílias em situação de vulnerabilidade uma vida de dignidade.
Em longo prazo, Fiuza também acredita que a criação de uma política específica habitacional é a alternativa mais adequada para garantir um futuro com maior controle do setor no município:
— O mínimo que podemos fazer é buscar o melhor para o setor que estamos responsáveis. E o mínimo, nesse caso, é garantir uma política sólida para não acontecer como ocorre há décadas — afirma.
Ainda assim, ressalta não haver avanços concreto com relação ao tema, embora garanta que a ideia seja implementar o plano até o final da atual gestão.