Se há um ano os moradores do bairro Euzébio Beltrão de Queiróz, em Caxias do Sul, comemoravam a revitalização da Rua Cristóforo Randon, ao lado do Estádio Centenário, hoje o alargamento da via realça um problema social e ambiental que escancara a falta de políticas públicas abrangentes na cidade.
Os problemas expostos em trecho da Cristóforo, entre as esquinas das ruas Bento Gonçalves e da João Batista Scalabrini, vão além da grande quantidade de lixo espalhado na calçada por conta da presença de quatro empresas de reciclagem: há também usuários de drogas morando em barracas montadas no espaço destinado para estacionamento e o consumo de entorpecentes a céu aberto.
Com investimento de cerca de R$ 5 milhões do governo federal, a recuperação da principal rua do Euzébio durou 17 meses e contou com obras de alargamento da via, calçamento e iluminação. Na mesma época, em 2016, a entrada do bairro recebeu uma nova rotatória, em frente ao Estádio Centenário, e o Centro Cultural Euzébio Beltrão de Queiróz. Porém, por trás da beleza visual, todo o problema social que afeta a comunidade do bairro, que é acossado pelo tráfico de drogas, foi esquecido pelas autoridades: são as próprias recicladoras existentes na via que dão emprego aos usuários de entorpecentes e tentam, desta forma, reduzir os índices de violência na região.
— Antes de a rua ser reformada eu já tinha a reciclagem. Os 10 que trabalham comigo são usuários e foi esse emprego que tirou eles da vida criminosa. Esse é o meu único sustento e o deles também. Não é fácil lidar com eles (os dependentes químicos). A gente tenta, sempre na base da conversa, mostrar que não é para deixarem o lixo espalhado. Eu até estou tentando ampliar a minha garagem para colocar o máximo de lixo para dentro, mas a limpeza não depende só de nós — conta Cassiano Machado Pereira, 28.
Um abaixo-assinado foi organizado pelos moradores e deve ser encaminhado até a próxima semana para a prefeitura e a Câmara de Vereadores. O líder comunitário do Euzébio, Paulo Roberto Teixeira, o Cara Preta, diz que a solução seria encontrar um local adequado para o trabalho desses recicladores:
— Já fizemos tantas reuniões sobre isso e não deu em nada. Ali a solução é arrumar um lugar adequado para eles trabalharem — opina o líder do bairro.
Eleane Ferreira da Silva, que reside na Cristóforo Randon há 24 anos, está desanimada.
— Estamos tristes e indignados com a situação, porque parece que não somos dignos de receber ajuda. Eu pago meus impostos em dia, mas não tenho espaço para andar na calçada, sou obrigada a conviver com os ratos que se criam nessa "lixaiada" e ainda preciso aceitar que usem drogas praticamente na porta da minha casa. Isso é ou não é um problema público? — questiona Eleane Ferreira da Silva, 56 anos e que reside na Cristóforo Randon há 24.
"A gente precisa amparar esse catadores"
Para Ana Cristina da Silva de Brito, coordenadora da Cadeia Produtiva da Reciclagem (CPR), órgão ligado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Emprego, a falta de uma lei que mude a forma de regularização das reciclagens favorece o crescimento de situações como a da Cristóforo Randon. Hoje, apenas 13 recicladoras estão cadastradas na prefeitura e possuem acompanhamento na CPR. Com pouca ou até inexistente orientação sobre esse trabalho, os catadores que entregam latinhas de metal, garrafas pet e papelão às recicladoras instaladas na Cristóforo Randon, acabam retirando o lixo de um ponto da cidade e, simplesmente, depositando em outro. É esse processo irregular que trouxe tantos insetos e roedores às moradias próximas.
— Eu tenho total interesse e muita vontade de resolver o problema das empresas de reciclagem irregulares, mas não depende somente de uma pessoa. Os vereadores, que poderiam criar um projeto de lei sobre o assunto, não manifestaram interesse em conhecer a realidade da reciclagem em Caxias. Acaba que não tenho forças para lutar sozinha, é preciso apoio de pessoas dispostas a ajudar e com bom senso — afirma Ana.
O vereador Renato de Oliveira (PCdoB), que tem um projeto de lei para regrar a separação de resíduos em repartições públicas e beneficiar a reciclagem, diz que a tarefa de regulamentar o setor deve partir da prefeitura.
— Não são os vereadores que devem apresentar esse projeto, é o Executivo que tem o dever de fazer isso. Caso contrário, será inconstitucional — rebate o parlamentar.
Por outro lado, a coordenadora da CPR pretende avaliar pessoalmente a situação dos catadores:
— A gente precisa amparar esse catadores. Me comprometo em ir até essa rua e conversar com os responsáveis pelas recicladoras. Ao menos a orientação sobre todo o contexto ambiental a gente pode e vai fazer. O que não podemos é deixar que a situação tome dimensões mais caóticas — promete a coordenadora.
Codeca diz que realiza coleta diária
A Companhia de Desenvolvimento de Caxias do Sul (Codeca) afirma que está coletando diariamente o lixo orgânico e o material seletivo na Rua Cristóforo Randon. Em nota, o gerente operacional da companhia, Igor Rossi, explica que esse trabalho era realizado em dias intercalados na semana. Contudo, com a presença de catadores que mexem nos contêineres da coleta mecanizada e misturam os resíduos, foi necessária a mudança, que também abrange vias próximas.
A empresa também garante desloca uma equipe para retirar o lixo que fica espalhado na rua e no passeio público a cada 15 dias. Por outro lado, conforme Rossi, a Codeca não possui controle sobre a ação dos catadores e não tem como inibir possíveis transtornos.
Consultório de rua atende uma vez por semana
Se o lixo esparramado pela rua incomoda a vizinhança, a presença de usuários de drogas é um problema ainda mais complexo. Segundo a presidente da Fundação de Assistência Social (FAS), Rosana Santini Menegotto, as pessoas que residem nas barracas na calçada não são atendidas pelo programa Superação, voltado para recuperar moradores de rua.
— Esse não é o nosso público, são catadores que moram por perto ou tem família. Além disso, a atuação dos assistentes sociais naquela área é complicada, precisa sempre do apoio da liderança do bairro para que eles possam entrar.
Daniel Araújo dos Santos, coordenador do Consultório de Rua, revela que os catadores são atendidos uma vez por semana. Os integrantes da equipe repassam orientações, distribuem preservativos, fazem curativos e encaminham homens e mulheres para exames ou consultas clínicas.
— Esteticamente fica feio, mas se tira a reciclagem é pior, pois para onde iriam essas pessoas? O ideal é criar um comitê para que todos sentem para conversar e façam um tratado de convivência entre moradores e recicladores — sugere Santos.