Para o fiel mais fervoroso, rezar por uma graça de Nossa Senhora de Caravaggio não é suficiente. Desde que o primeiro milagre da santa foi reconhecido na Serra Gaúcha, em 1899, os peregrinos deixam em Farroupilha algo que simbolize a bênção recebida, uma amostra que permita que os outros saibam o quanto se está agradecido. Bengalas, capacetes, roupas, sapatos, terços, bilhetes e fotos são itens que compõem um mosaico da fé no espaço chamado Ex-votos que, nesta romaria, ganha uma nova versão e resgata peças que estavam guardadas num depósito havia décadas.O Memorial do Devoto será inaugurado nesta semana e trará parte da história das 138 edições da romaria como forma de valorizar a trajetória dos romeiros.
As peculiaridades descobertas em meio à pesquisa histórica só reforçam o motivo que torna a Serra Gaúcha o berço da adoração pela santa.
O local estará aberto para visitação a partir desta quinta-feira, data em que será lançado um documentário sobre a romaria.
– Quando os objetos foram retirados da capela, ela passou a ter um aspecto mais litúrgico e sentiu-se que faltou o espírito dos Ex-votos. Percebeu-se que era preciso zelo pela religiosidade popular, e que era preciso cuidar muito bem disso porque é a expressão máxima da fé – explica o reitor do Santuário de Caravaggio, padre Gilnei Fronza.
O endereço da exposição não mudou: continua no complexo de salas à direita da capela. As fotos que ocupavam a espaço dos Ex-votos seguem exibidas em painéis que ocupam todo o ambiente. O que muda é a proposta: ao chegar, o visitante verá informações sobre a chegada da santa na Serra, o esforço da comunidade em erguer o Santuário, a peregrinação e outros detalhes importante da história de Caravaggio.
Em estruturas de vidro, peças com significado mais expressivo estarão expostas e serão trocadas de tempo em tempo para valorizar boa parte do acervo que está guardado por falta de espaço. Além disso, outro ingrediente torna a experiência mais emocionante: será possível assistir à reprodução de um documentário com mais de 30 depoimentos de fiéis que dizem ter alcançado milagres por intercessão de Caravaggio. Por fim, o visitante terá acesso à sala das confissões, espaço pouco usado e que permitirá uma pausa para reflexão e conversa com os sacerdotes.
– O vídeo é importante porque dá impressão de um elemento vivo, que é contado pelas próprias pessoas. Teremos o ontem e o hoje retratado pelos próprios fiéis – ressalta Fronza.
Quadro de pracinha da Segunda Guerra foi recuperado entre milhares de peças
O desespero que a agricultora de Pinto Bandeira Rosa Bottin Faggion sentiu ao ver um dos nove filhos se voluntariar para lutar na Segunda Guerra Mundial, em 1943, só podia ser acalentado pelo amor de outra mãe. Ela dizia ter encontrado o conforto necessário em Nossa Senhora de Caravaggio para suportar o período de quase um ano e meio em que José Faggion ficou distante de casa. A vontade de ser um combatente era só o pano de fundo para José, então com 20 anos, realizar o sonho de viajar e deixar o interior. Rosa recorreu à santa e prometeu peregrinar até o Santuário de Farroupilha caso José voltasse aos braços da família, o que aconteceu em 21 de outubro de 1945.
– A devoção pela santa era coisa da minha vovó. Quando meu pai retornou, teve até baile em Pinto Bandeira para festejar. E a avó foi levar a placa com a foto dele até a capela – explica José Carlos Kau Faggion, 68 anos, filho do ex-combatente.
O desfecho feliz desta história que se desenrolou há mais de 70 anos estará exposto no novo Memorial do Devoto. A placa ainda exibe José fardado de soldado ao lado de um resumo do milagre. Ainda na década de 1960, José quis levar os quatro filhos até a capela para mostrar o quadro em que aparecia. Não encontrou mais. Os próprios fiéis retiravam os quadros antigos e os substituam por outros, o que ocasionou a perda de muito material. O trabalho da equipe do Santuário resgatou boa parte do acervo. Isso permitirá que os filhos possam, finalmente, ver de perto a foto.
– Meu pai não se arrependeu de ter ido lutar. Até o fim da vida, ia à missa aos domingos – resume o filho do ex-combatente.José morreu em 1974.
Vestidos de noivas e camisetas
Aos poucos, a história dos devotos de Caravaggio se constrói por meio de um acervo com grandes descobertas. O pequeno espaço atrolhado de muletas e quadros deu lugar a um espaço bonito, organizado e mais moderno. A pesquisa é da museóloga Mirella Honorato, que trabalha há dois meses na separação do acervo. A maioria dos pedidos de intercessão depositados nos Ex-votos é pela família. Há também agradecimentos expressados de maneiras inusitadas: pelo menos 70 vestidos de noiva estão armazenados no Santuário, por exemplo.
– Em um dos casos, de um lado, está o convite do casamento e, atrás, uma foto da família formada por aquele casal, com 10 filhos. Essa deve ter sido uma das mulheres que deixou o vestido por lá – diz a museóloga.
Camisetas de times de futebol também fazem parte da exposição, pois registram a ligação da santa com o esporte, já que é comum técnicos como Tite e Felipão aparecerem por lá para pedir ou pagar promessas. Estão lá também o capacete que salvou a vida de um jovem em um acidente de trânsito, a muleta que ajudou alguém na recuperação de uma doença e até pedaços de platina removidos do corpo.
– No início, as fotos chegavam emolduradas. Depois passaram a ser colocadas nas paredes da capela pelos próprios devotos, que levavam o martelo e pregavam lá mesmo. Isso fala bastante de cada época – analisa a museóloga Mirella.
Parte do acervo é incinerado por falta de lugar
A quantidade enorme de pessoas que depositam fotos e outros itens quase que diariamente no Ex-votos cria um entrave: a falta de espaço para armazenamento. Além disso, há quem deixe roupas ou outros itens com vestígios de sangue, o que não é higiênico. Ainda que possa contrariar alguns devotos, a equipe do Santuário precisa, de tempos em tempos, incinerar parte das lembranças. O ritual que representa simbolicamente à entrega do objeto à santa terá espaço no memorial: uma urna onde ficarão as cinzas, também chamada de columbário.
– É como um incenso: a fumaça simboliza a devolução, pelo ar, do objeto aos pés da santa. A incineração é um processo histórico e recorrido bastante em santuários – explica a museóloga Mirella Honorato.
O bispo Dom Alessandro Ruffinoni diz que a maior parte dos objetos são guardados, e que há um cuidado especial com cada artigo deixado pelos fiéis.
– Não dá para salvar tudo, mas tentamos conservar em respeito à fé do peregrino. E as cinzas não é bom jogá-las fora, tem de ter um ponto de referência. E é isso que representará a urna nos Ex-votos. O peregrino terá vestígio daquilo que deixou por lá – explica o bispo.