A minha eletrola era laranja clarinho. Tinha uma tampa que era também a caixa de som e ficava num móvel no meu quarto, ao lado dos LPs. Essa é a primeira lembrança que eu tenho da música na minha vida. O embalo nunca mais parou. Foi das trilhas de filmes que eu ouvia sozinha ao gravador do meu irmão, quando passamos a ter também fita cassete. E do pop lá de casa para o clássico das aulas de ballet. Passou por Legião Urbana no walkman sentada nos degraus de concreto da quadra da escola ou no banco de trás do carro viajando pra praia, quando as músicas de pai e mãe não estavam em alta no meu conceito e me isolavam nos fones.
A vida pode ser contada por meio uma playlist. A trilha sonora muda conforme a idade, a companhia, o lugar onde a gente vive, o estado de espírito. Sai do Tchaikovsky da sapatilha de ponta para o dance da adolescência. Vai da alegria de dançar uma noite inteira à balada lenta chorando na cama. Faz com que, tempos e tempos depois, já tendo passado pelo aparelho de CD e chegado no MP3, eu lembre daquela festa de mais de uma década atrás. O ouvido me leva de volta, provoca a nostalgia, faz com que eu quase sinta o cheiro daquela época. A cabeça se enche de lembranças dos amigos, das aventuras, de um tempo bom. E é inevitável que os acordes que ecoam pelo ar desenhem um sorriso no rosto, façam com que o olho fite o vazio.
A música vai comigo da insônia a uma viagem. Da festa com amigos aos fones caminhando sozinha na beira do mar. Está na diversão e no trabalho, como inspiração para escrever meus textos. Está tocando agora, enquanto eu preencho essa tela que começou em branco. O som nos fones consegue me isolar do barulho da redação, me transportar para um lugar em que somos só eu, a música e o teclado. Esse mundo formado por acordes tem alegria, tristeza, emoção, saudade. Tem coisas boas e ruins, como a vida real, mas é regido pela playlist que a gente coloca pra tocar. Escolher ser feliz, encarar, arriscar ou sofrer mais do que é necessário pode ser decidido a partir de uma música. Quando a coisa parece não ter saída, a força que a gente precisa pode estar na trilha. É só subir o som e correr pra vida.
Opinião
Paula Valduga: a vida pode ser contada por meio de uma playlist
Aos sábados, jornalistas do Pioneiro publicam crônicas sobre assuntos diversos
GZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: