Nesta sexta-feira, às 8h, moradores do bairro Cidade Industrial, em Caxias do Sul, vão bloquear o Km 72 da ERS-122 (Rota do Sol), na frente do trevo da Iveco. É um protesto para exigir a instalação de quebra-molas, sinaleiras ou outros equipamentos para conter os acidentes no trecho.
Testemunhas das tragédias contam que pelo menos 30 pessoas pereceram ali em duas décadas. Com ajuda do motorista aposentado Leonir Soares dos Santos, morador do bairro desde os anos 1990, a reportagem conseguiu recuperar a história parcial de 18 delas.
Veja quem foram as vítimas fatais desde 1997, entre o Km 71, perto do viaduto torto do bairro Desvio Rizzo, e o início do Km 73, acesso ao bairro Cidade Nova.
José Antônio saiu para passear e não voltou
27 de abril de 1997: José Antônio Sgorla, 29 anos, foi passear de moto numa manhã de domingo e não voltou para o churrasco em família. Morreu ao bater num caminhão no Km 71. São 18 anos de saudade. O pai dele, Humberto Sgorla, 79, lembra do filho trabalhador, que era responsável por controlar as contas da casa. O que mais dói é saber que a voltinha de José Antônio serviria apenas não deixar a moto "enferrujar" na garagem. O homem rodou de Farroupilha a Caxias, e retornava pro churrasco quando aconteceu o acidente. A ferida cicatrizou. A dor, não.
Rosangela tentava encontrar um emprego
28 de setembro de 2000: Rosangela Pereira, 17 anos, era babá mas sonhava com um emprego formal, com garantia de salário e crescimento profissional. Empolgada com a possibilidade de ser contratada, Rosangela saiu bem cedo, no Cidade Industrial, para entregar um currículo. Cinco minutos depois de se despedir de familiares, a jovem foi atropelada por um caminhão na Rota do Sol, a 500 metros de casa. Uma cruz fincada no acesso ao bairro lembra o fim precoce de uma vida. Parentes da garota ainda residem no Distrito Industrial, e convivem com a perda trágica e a insegurança de atravessar uma rodovia marcada por tantas histórias tristes.
Marise buscaria carne na casa da mãe
23 de março de 2003: Ainda adolescente, Marise Cappelletti, 19, optou por viver longe dos pais. Saiu de Forqueta, bairro onde se criou, passou pelo Desvio Rizzo e se estabeleceu com o companheiro num porão alugado no Cidade industrial. Mesmo distante, mantinha contato com a família para desabafos. A mãe dela, Maria Brustolin Cappelletti, recorda o último telefonema numa manhã de domingo:
- Ela precisava de carne pra fazer comida, e eu disse pra vir buscar.
Antes de embarcar num ônibus para Forqueta, Marise decidiu passar na casa de uma amiga no Cidade Nova, o que exigia a travessia da ERS-122. Disseram que a jovem estava desatenta e não viu um carro se aproximar. A garota foi jogada para o alto e bateu a cabeça. Mais tarde, a mãe recebeu um telefonema do hospital. Marise resistiu apenas dois dias no leito de UTI. Uma foto desgastada pelo tempo é a recordação estampada na parede da casa da mãe.
- Era a última foto dela. Guardo para não esquecer.
João Paulo voltava para casa depois de um dia de trabalho
22 de maio de 2003: Diariamente, o agricultor João Paulo Eberhardt, 22, subia a Serra para negociar produtos na Central de Abastecimento (Ceasa) em Caxias. Era de praxe seguir de carona na cabine, ao lado do colega. A dupla vendia verduras e retornava pro interior de Pareci Novo, no Vale do Caí. Numa dessas voltas pra casa, ocorreu a colisão com outro caminhão. O colega, que estava ao volante, teve traumatismo craniano, mas escapou da morte. João Paulo morreu, e deixou a companheira, que estava grávida.
Só encontraram o corpo do Seu Chico no dia seguinte
14 de julho de 2004: Francisco Martins Dutra, o seu Chico, 67, fazia parte da primeira leva de famílias que assentou moradias improvisadas em terreno público às margens da Rota do Sol, há três décadas. Era casa muito simples, mas ajudava na sobrevivência ao lado dos quatro filhos. Viúvo, tirava o sustento da aposentadoria e aproveitava a folga para passear pelo Cidade Industrial. Numa dessas caminhadas, à noite, foi atropelado e tombou sem vida numa valeta do acostamento. Na comunidade, só souberam da morte de Seu Chico no dia seguinte, quando alguém avistou o corpo. Familiares do aposentado ainda residem perto do ponto do acidente, e se arriscam quando precisam transitar pela rodovia. A filha Maria Elisabete, 44, lembra apenas da hora que recebeu a notícia e evita pensar no assunto.
O reencontro de pai e filho que nunca aconteceu
10 de agosto de 2004: Foi a saudade dos pais que trouxe Aguinaldo José Zanoni, 27, para um passeio na Serra. Morador de Montenegro, ele passou em São Marcos e convidou o irmão Renato para vir a Caxias do Sul. Os dois seguiram em duas motos, e fariam uma surpresa para o pai na saída do trabalho. No Km 71, por volta das 20h, Aguinaldo colidiu em outro veículo e morreu. Renato, que seguia atrás, chegou instantes depois no local do acidente e viu o corpo do irmão estendido.
- Tive que avisar meu pai, que passou e teve que ir ao hospital - lembra.
Aguinaldo conhecia bem a rodovia pois trabalhava em um caminhão de verduras e seguidamente viajava a Caxia. Deixou mulher e um enteado.
Sem Valmir, o atendimento o bar perdeu a graça
7 de junho de 2005: Para garantir o sustento da família depois de ter saído de um emprego formal, Valmir Fernandes de Lima, 25 anos, abriu um bar no Cidade Industrial. Também fazia extras como pedreiro. A nova rotina durou pouco. No final da tarde, Lima dirigia um carro e morreu na colisão com um caminhão no Km 71, perto de casa. Um dos filhos que o acompanhava, de 4 anos na época, sofreu ferimentos graves e teve sete paradas cardíacas, mas sobreviveu. O bar de Lima fechou e a mulher dele, Patrícia Godoy Silva, 37, refez a vida. Ela e os três filhos do casal ainda moram no Cidade Industrial.
Gilberto e Tereza morreram no trevo do Km 72
27 de agosto de 2005: Numa tarde de sábado, Tereza Catusso Scariot, 42 anos, e o marido dela, Gilberto Scariot, 45, saíram do bairro Santa Lúcia e pretendiam chegar a uma sede campestre próximo ao Km 72 da ERS-122. O acidente aconteceu quando Gilberto manobrou à esquerda na pista e foi atingido por um caminhão que vinha no sentido contrário. O casal trabalhava na mesma empresa de Caxias do Sul e deixou uma filha.
Mãe e filho morreram a caminho de aniversário
26 de abril de 2009: Aposentada, Jaldira Boscaini, 57, se dedicava às tarefas domésticas em Flores da Cunha. Um dos costumes era embelezar a casa ou presentear parentes com peças de crochê. Um dos filhos dela, Sidinei, 29, ganhava a vida como auxiliar de eletricista e encanador, e adorava se divertir com amigos nos finais de semana. Era uma rotina tranquila ao lado do marido, Antônio, 62, e dos outros filhos. Na manhã daquele domingo, a família saiu de Flores para comemorar o aniversário de 100 anos de uma avó em Carlos Barbosa. No km 71, entre a entrada do bairro Cidade Industrial e um posto de combustíveis, ocorreu a colisão frontal com um Gol que invadiu a pista contrária. Jaldira e Sidinei não sobreviveram. Antônio perdeu a consciência e só despertou do coma 21 dias depois. As lesões na perna de outro filho ferido no mesmo acidente exigiram o implante de 11 parafusos. O motorista do outro carro escapou sem ferimentos graves. Os sobreviventes da família Boscaini ainda passam por aquele trecho da Rota, e aguardam por um desfecho do caso na Justiça. Mas pai e filho jamais aprenderão a viver sem a família completa.
Seis filhos ficaram órfãos de Valdomiro
8 de julho de 2010: Ao lado da mulher, o carpinteiro Valdomiro de Godoy, 38, criava uma família numerosa: seis filhos. Chegou a Caxias do Sul em 2009, e se estabeleceu numa comunidade improvisada às margens da Rota do Sol, em terreno pertencente ao Estado. A rotina na cidade durou um ano e nove dias. Numa tarde, no caminho de casa, Valdomiro foi atropelado por um caminhão no Km 71. A companheira de Valdomiro e parte dos filhos voltaram para Três de Maio, terra natal do homem. Ademir Calixtro, 37, irmão da vítima, ainda reside nas proximidades da ERS-122.
- Meu irmão morreu que nem bicho. Pouco se fez e ficou por isso mesmo. Aqui talvez só uma sinaleira vá resolver - diz Ademir.
Rodrigo só queria andar de moto
23 de dezembro de 2010: Rodrigo Barcelos Saratt, 20, optou por morar em Caxias do Sul com o objetivo de construir profissão, e quem sabe uma família. Após meses de trabalho em uma oficina mecânica, e preenchendo as folgas como servente de pedreiro, o rapaz realizou o sonho acalentado na infância e adolescência em Santo Antônio das Missões: comprou uma moto. Para ele, se tratava de um grande feito. De emprego novo em uma lavanderia, o rapaz estava se encaminhando na vida. Dois dias antes do Natal, saiu da moradia que dividia com amigos no Cidade Industrial e ingressou na ERS-122. O passeio terminou sob o rodado de um caminhão, por volta das 22h.
- Não queremos que outras famílias passem pelo que nós passamos pois parte de nós morreu naquela rodovia - desabafa Mariane Saratt, irmã do rapaz.
Helen não tinha dinheiro pro ônibus e foi atropelada no asfalto
4 de maio de 2012: Helen Camargo Fonseca, 9 anos, recém havia se mudado com a família para a Zona Norte de Caxias, mas tinha ligação com o Desvio Rizzo: era no bairro que a menina se dedicava ao estudo e treinava canto numa igreja evangélica. No início da tarde, Helen, quatro primos e uma tia saíram do Santa Fé para empreender uma longa caminhada pelo acostamento da Rota do Sol para visitar uma avó no Rizzo. Poderiam ter percorrido o trajeto de 10 quilômetros de ônibus, mas não tinham dinheiro para as passagens. O passeio terminou no Km 71, em frente a casebres erguidos na beira da rodovia. Helen se soltou da mão da tia e correu na frente do grupo. Foi atropelada por um Golf em um ponto sem acostamento ou passagem para pedestre. A criança morreu antes de receber socorro. Alguns moradores da rodovia ainda lembram do acidente, mas esqueceram do rosto e do nome da menina.
Adilson planejava comprar um carro
19 de fevereiro de 2013: Era terça-feira, e Adilson Ghisolfi, 20, pretendia devolver filmes que havia retirado numa locadora. Pegou a moto que tanto gostava, entrou na ERS-122 e foi tragado pelo temido trânsito do Cidade Industrial. A colisão contra um caminhão não deu muitas chances, e o rapaz morreu na noite seguinte no hospital. Encerrava ali o sonho de crescer profissionalmente na cidade que o recebeu oito meses antes.
A moto era sua paixão, mas Adilson planejava comprar um carro. Natural de Cerro Negro (SC), ele era solteiro e sem filhos. Guardava parte do salário como auxiliar de produção numa grande empresa. Familiares lembram dele como um rapaz feliz, festeiro, que sabia construir relacionamentos com facilidade. Como boa parte das vítimas da rodovia das lágrimas, Adilson veio desconhecia os riscos do Km 72.
Rita perdeu a vida e deixou a família em Flores da Cunha
20 de fevereiro de 2014: Um acidente entre dois caminhões e três carros matou Rita Bernardi Gaio, 51, no Km 71. Ela conduzia um Fiesta, e levava na carona uma amiga. Rita entrou com vida no Hospital da Unimed, mas não resistiu. A amiga escapou com ferimentos. Rita morava em Flores da Cunha.
Tiago queria ser caminhoneiro
7 de abril de 2014: Inspirado pela profissão da sua mãe, motorista há 22 anos, Tiago Henrique Omissolo Paim, 20, dizia a todos que gostaria de dirigir caminhões pelo Brasil afora. Tinha tanta vontade de ser caminhoneiro que se dedicava a empregos diferentes em duas transportadoras. Era rotina puxada, de 14 horas diárias de trabalho e pouco descanso. Foi no caminho de casa, depois de passar a noite carregando e descarregando mercadorias, que a fatalidade alcançou Tiago. Ele dirigia um Astra e bateu de frente com uma caminhonete quase na entrada do bairro Cidade Nova. A condutora do outro veículo sobreviveu, Tiago não. Era o único filho de dona Luisa.
Aldeci morreu no trajeto que conhecia bem
10 de setembro de 2014: Vendedor experiente, colega parceiro e bom motorista. É assim que colegas descrevem Aldeci de Bortoli, 50 anos. Morador de Farroupilha, ele trabalhava numa recuperadora de pneus em Caxias. Diariamente, cruzava a Rota do Sol num caminhão da empresa para atender cidades vizinhas. Numa manhã, a trabalho, colidiu frontalmente contra outro caminhão, na subida do Km 71, pouco antes de um posto de combustíveis. Um carro também se envolveu no acidente. Das quatro pessoas nos três veículos, foi Aldeci quem sofreu os ferimentos mais graves e morreu no impacto.