Dos 55 anos que a perícia médica apontou ser sua idade, a vacariense Iraci Alves só lembra dos dez últimos. Da vida que teve até chegar ao bairro Petrópolis, na casa simples em que hoje vive com o companheiro Horácio de Lima, além dos 11 gatos, cinco cães, dois galos, uma galinha e um pinto, restam lapsos de uma memória consumida pelos anos de bebedeira em que se enfiou após a perda dos pais. Trabalhadores rurais errantes e enterrados como indigentes, legaram a Iraci a mesma indigência que lhe privou de qualquer registro civil. Para a sociedade organizada, Iraci nunca existiu.
- Fiquei pelo mundo que nem uma pessoa indigente, sem documento nenhum. Meus pais andavam pra lá e pra cá e eu me criei assim, atirada...não sei ler, nem escrever. Até pra ir no mercado é meu marido quem tem que ir, porque eu não entendo nada - conta.
Com marcas de tempos sofridos estampadas no rosto, a mulher de cabelos curtos e desgrenhados fala apenas o necessário, mas sorri fácil. Passa os dias em casa, entre afazeres domésticos, cuidados com a bicharada e o preparo da comida para o marido, Horácio de Lima, 40 anos, roçador de canteiros e meios-fios em Vacaria.
Horácio e Iraci se conheceram há cerca de duas décadas, pelos botecos da localidade de Imperial, interior de Vacaria. Era onde ele vivia e onde ela apareceu de forma que não se sabe explicar. Para quase tudo, a resposta de Iraci é a mesma:
- Isso é melhor perguntar pro meu esposo...
Mas Horácio também desconhece a origem da esposa. Ambos bebiam muito. Aos poucos, a saúde de Iraci tornou-se frágil. Já moravam na cidade quando uma convulsão quase a levou à morte, oito anos atrás. Foi então proibida de beber por um médico que só a atendeu por misericórdia e repetiu o que outros já alertavam: Sem documentos, uma pessoa não pode ser atendida. E não seria a primeira vez que o atendimento lhe seria negado. Ao perceber que poderia perdê-la a qualquer momento, Horácio, que também deixou de beber, montou em sua bicicleta e foi atrás de uma identidade para a esposa.
- No interior, a gente não se interessava por isso, só queria saber de beber. Só fui descobrir que ela não tinha documentos quando passou a precisar de médico. Falei com os primos dela, cada um dizia uma coisa, ninguém sabia de onde ela vinha. No cartório, pesquisaram nos últimos 50 anos e não tinha registro dela, nem dos pais. Lá me disseram pra procurar a defensoria pública - conta.
Era o dia 3 de junho de 2013, uma segunda-feira que a defensora pública Regina Célia Borges nunca esqueceu.
- Tinha à minha frente uma pessoa muito humilde, que procurava a defensoria porque queria existir juridicamente, receber atendimento médico, não ser enterrada como indigente, como os pais. Foi o caso mais comovente que atendi em meus 11 anos de carreira - conta Regina.
No Termo de Comparecimento assinado com impressão digital naquele mesmo dia, Iraci Alves, brasileira, convivente do lar, pediu à justiça o registro civil extemporâneo. Mas não seria fácil. Por solicitação do Ministério Público (MP), o casal teve de apresentar testemunhas que atestassem os poucos fatos relatados por Iraci sobre sua vida misteriosa. Foram ouvidas seis pessoas, entre vizinhos, amigos próximos e também conhecidos dos anos vividos na zona rural. Os depoimentos foram unânimes sobre a boa índole e boa conduta da interessada.
Para fazer da requerente uma cidadã, era preciso uma data de nascimento para constar em seu futuro registro. E Iraci não sabe onde, muito menos quando nasceu. Por ordem judicial, foi encaminhada à perícia médica, que conferiu-lhe a idade aproximada de 55 anos. Quinze a mais do que os 40 que ela imaginava ter.
O segundo nascimento de Iraci Alves foi sentenciado no último dia 4 de abril, pela juíza Vanessa Krás Borges. Por considerar que a falta de provas sobre a origem não deve se sobrepor ao direito de ser registrada, julgou a ação procedente e ordenou a confecção do registro. O dia da propositura da ação, 5 de junho, mais o ano de 1959, atendendo ao resultado da perícia médica, passava a ser a data de nascimento da mulher que, por já ser chamada de Iraci Alves em seu meio de convívio, teve o nome mantido e oficializado.
Quis o destino que a segunda gestação de Iraci demorasse pouco mais de dez meses. Na tarde da última terça-feira, com fala calma e pacienciosa, a defensora Regina Borges explicava ao casal o procedimento para retirada da certidão de nascimento e orientou os próximos passos, como providenciar RG, CPF, título eleitoral e cartão do SUS.
Nesta quarta-feira, ao mesmo tempo em que uma história triste chegava ao fim, uma nova jornada começava. Essa, com a promessa de ser bem mais feliz. Com a certidão finalmente em mãos, Iraci optou por sorrir ao invés de chorar. Para ela, só o riso, nunca o choro, explica a felicidade.