No final de junho, a estudante de Psicologia da UCS Priscila Gomes comemorou 20 anos de vida. Embora seus documentos registrem que ela veio ao mundo em 18 de novembro de 1988, a jovem e seus familiares sabem que uma nova Priscila surgiu do leito 1 da UTI do Hospital Pompéia no inverno de 1993 (foto abaixo). Aos 4 anos de idade, ela sobreviveu a um atropelamento por um caminhão na ERS-122, no bairro Pedancino, e ficou 58 horas em coma. Duas décadas depois, as marcas do acidente são souvenires da vitória da família Gomes sobre a morte.
Naquele amanhecer de 28 de junho de 1993, o então desempregado Clóvis de Araújo Gomes planejou sair de casa para uma entrevista de emprego no centro da cidade. Antes, porém, foi com as três filhas buscar o jornal, na época deixado nas casas do outro lado da rodovia. A mais nova, Nicole, de seis meses, levou em um dos braços. Andressa, 2 anos, caminhava segurando sua mão esquerda. Priscila, 4, andava solta ao seu lado. Na hora de cruzar a faixa de volta para casa, não conseguiu conter a mais velha quando ela saiu em disparada sem olhar para o outro lado. Priscila foi atingida pelo pneu de um caminhão que vinha no sentido contrário. Voou uns 10 metros, segundo o pai.
Clóvis lembra de correr e pegar nos braços a filha inconsciente, devido ao impacto da pancada na cabeça. Como a menina estava bem agasalhada por causa do frio, o pai não conseguiu perceber as fraturas de fêmur, tíbia e perônio que quase provocaram a amputação da perna direita da filha. Dentro de casa, a mãe, Merli Gomes, ouviu o som do caminhão tentando frear e na mesma hora pensou no pior. Em pânico, foi ela quem fez o contato com o Hospital Pompéia, para onde a menina foi encaminhada.
Os dias seguintes foram de agonia e desespero para a família. Priscila ficou 24 dias na UTI - as primeiras 58 horas em coma. As convulsões frequentes nas primeiras horas davam aos médicos e enfermeiros a quase certeza de que ela não sobreviveria. Um deles, primo da família, confessou mais tarde ter saído do quarto em determinado momento para não vê-la morrer.
- Tentavam nos confortar, diziam que tínhamos 3 filhas, que deveríamos ir para casa e cuidar das outras duas - lembra a mãe.
Mas Priscila reagiu. Clóvis lembra de estar no quarto quando a filha começou a responder a estímulos das enfermeiras e saiu do coma. Como se fosse ele o paciente, também reagiu de tal forma que saiu gritando pelos corredores. "Ela voltou, ela voltou!" dizia. Mas ainda era só o começo da recuperação. Para recuperar a perna e o braço feridos, ainda havia um logo tratamento pela frente. Ao longo dos dois anos seguintes, a mãe conta que perdeu as contas de quantas cirurgias foram feitas para normalizar a perna e o braço de Priscila. Na última delas, em 1995, foi necessário tirar pele da nádega para fazer um enxerto na panturrilha.
O acidente teve ampla repercussão na imprensa e gerou comoção na sociedade. A solidariedade veio de pessoas que sequer eram conhecidas dos Gomes.
- Ficamos um bom tempo ajudando a cumprir as promessas de pessoas que nem conhecíamos pela recuperação de nossa filha. Tivemos que ir a Passo Fundo, Santa Maria, conhecemos muita gente solidária e de diferentes religiões - conta a mãe.
Talvez por isso, a família faça questão de dizer àqueles menos próximos, mas que também se solidarizaram à época, que Priscila vai muito bem, obrigado. A perna que carrega as marcas do acidente, ela não esconde. Usa biquini na praia normalmente, usa saia na rua sem se importar com os olhares indiscretos, que só são repreendidos pela inseparável irmã caçula, Nicole, 20 (a irmã Andressa, 21, vive em Pelotas).
- A maior dificuldade pra mim foi ser sempre muito protegida, o que ainda me deixa um pouco insegura às vezes, mesmo sem motivo - comenta.
A família ainda vive na mesma casa, no bairro Pedancino, às margens da ERS-122. Eles têm uma empresa de transportes, administrada pelo pai, que conta com ajuda da mãe e da filha mais nova. Para Priscila, que hoje trabalha como monitora em uma escola e sonha em trabalhar com auxílio psicológico a crianças carentes depois de formada, a alcunha de "filha do Clóvis, aquela do acidente" não incomoda mais.
De enfermeira a quase irmã
Nos dias mais incertos quanto ao futuro de Priscila, quando a família praticamente se mudou para o Hospital Pompéia, a enfermeira Angela Ortiz, então com 27 anos, era a responsável não só por acompanhar o tratamento, mas também por deixar a pequena impecável. Penteava seus cabelos cheios de nós por passar os dias deitada e passava seus batons vermelhos nos lábios da paciente, só para descontrair.
- Logo que ela recuperou a fala, sussurrava bem baixinho pra mim: "tia Ana...". Conforme ela foi ficando mais forte, o volume ia aumentando, até que no fim ela gritava do andar de cima quando me via chegar no hospital: "TIA ANA!". Acho que por isso que ela fala assim, alto, até hoje - brinca. Priscila, de fato, fala bem alto.
A relação de carinho entre a enfermeira recém-formada pela Universidade Católica de Pelotas e a paciente se transformou em uma grande amizade. Não é raro Priscila ir dormir na casa de Angela, onde já é íntima da família toda. A enfermeira, hoje encostada por problemas de saúde, não sabe explicar porque foi ter justamente com ela uma relação tão próxima.
- Eu tinha pouca experiência e fiquei impressionada. Aquela coisinha pequena toda cheia de tubos, gesso, correndo risco de vida. Cada vez que o pai abria a porta do quarto bem devagar pra não acordá-la, me partia o coração - se emociona, contando a história no sofá da sua casa, em Flores da Cunha, com a amiga do lado.
Neste sábado, Dia do Amigo, Angela e Priscila combinaram de passar a tarde juntas. Um dia, a enfermeira talvez cobre os batons que a amiga lhe deve há 20 anos.