O nome Fernando Kreling, possivelmente, passe despercebido mesmo para o mais efusivo amante do vôlei. Fernando, por sinal, ficou apenas às costas da camisa 6. Aos 25 anos, o caxiense Cachopa — como de fato é conhecido no esporte o levantador da seleção brasileira masculina – realizará o sonho de todo atleta: disputar uma Olimpíada. O jogador é um dos 12 convocados do técnico Renan Dal Zotto para os Jogos de Tóquio, que começam na próxima sexta-feira (23).
Titular do Sada/Cruzeiro-MG, Cachopa ganhou espaço na seleção principal aos poucos. Antes da convocação final, o gaúcho fez parte do grupo que conquistou a Liga das Nações, em junho. Ir ao Japão neste momento acabou sendo uma condição natural, mesmo que a velocidade dos acontecimentos chegue a surpreender.
— Comecei a jogar como titular efetivo há três ou quatro anos (no Cruzeiro). Talvez não esperasse participar desse ciclo agora de Tóquio. Esperava, talvez, em Paris (2024). Não participei de todo ciclo. Depois do Rio (2016), fui aparecer na seleção em 2019. Me senti parte do grupo que estava se preparando para ir à Olimpíada, se eu ia pisar em Tóquio agora ou não, era outra decisão. Mas me sentia fazendo parte do ciclo, do grupo e da preparação — afirmou o jogador, que preferiu não focar na convocação às vésperas da decisão do treinador da seleção:
— Me policiei ao máximo nesse tempo para não ficar pensando nessa questão da Olimpíada e aproveitar o momento que eu tinha, com a disputa da Liga das Nações, e os treinamentos. Mas, ainda assim, foi um momento muito especial quando saiu a convocação. Logo depois de ganhar o campeonato ainda, foi um momento muito incrível.
COMEÇO NO ESPORTE
O ingresso de Cachopa no vôlei aconteceu quase que por acaso. Irmão mais novo de Felipe, o Feijão, ex-levantador da UCS, o camisa 6 da seleção não esconde a preferência quando criança.
— Gostava de futebol, queria chutar bola, ver jogo — admite, interrompido por Feijão entregando o desejo do irmão:
— Ele queria ser o camisa 5 do Juventude — brinca o mais velho.
Com o irmão jogando na UCS, o exemplo de casa fez diferença na escolher da modalidade. Os filhos de Mário Roberto e Vera Maria se apoiavam no esporte.
— Eu batia bola no colégio. Depois fui fazer uma peneira na Apaavôlei/UCS. Ele (Feijão) já jogava. Entrei no time mirim e dali não saí mais da quadra — recorda o levantador, relembrando dos momentos acompanhando o time adulto da Universidade:
— A visão que eu tinha de vôlei era o time profissional daqui. Era ver os caras jogando. Às vezes, eu ia ver o treino e os caras enchiam o saco, davam uma cornetadinha e uma puxada de orelha. A gente ia secar a quadra e jogar a bola para eles. Isso era o que me brilhava os olhos na época.
— Mesmo quando cheguei no adulto, ele (Cachopa) sempre esteve perto. Conviveu bastante no ambiente do vôlei. Ele viu um espelho ali para seguir adiante. Ia nos treinos, nos jogos, secava bola. Eu fiz isso também quando piá e acredito que influenciou muito na decisão de seguir como atleta — afirma Feijão.
COMEÇO PROMISSOR
O início, assim como boa parte da carreira de Cachopa, foi bem rápido.
— Ele sempre foi precoce. Jogava na categoria dele, mas treinava na de cima. Na época, eu era técnico da infanto e ele estava uma abaixo. Falei para o técnico dele, o professor Rodrigo Santos, que não dava para segurar na categoria, teríamos que subir. Só desceria para jogar. Ele chegou comigo com 15 anos e eu treinava a sub-18. Contra os meninos de 17 e 18 anos, ele com 15, já era titular da categoria — conta Giovani Brisotto, que fez parte da formação de Cachopa na APV/UCS e que viu um potencial diferente no jovem levantador:
— Hoje ele tem 1m85cm, na época não tinha isso. Mas a gente via que tínhamos um talento nato na mão, com facilidade de aprendizado, um menino que gostava de ouvir e com uma tranquilidade, uma liderança e um carisma fora do comum. Ele treinava em duas categorias, então entrava na primeira hora da tarde e saía no último horário da noite. Todos os dias isso. Sabíamos que ele ia vencer, mas nunca achamos que ele chegaria tão rápido onde ele chegou.
O lado agregador de Cachopa sempre foi um diferencial, como lembra Feijão:
— Ele sempre teve uma liderança meio natural, sempre foi titular, brigando por posição em categoria acima. Ele sempre teve muita personalidade.
PROFISSIONALIZAÇÃO
Tornar essa diversão no esporte uma carreira profissional não foi fácil. A dúvida de fazer do vôlei o projeto de vida persistiu durante parte da adolescência.
— Até o segundo ano do Ensino Médio eu estava muito indeciso. Já tinha ido para a seleção de base, jogado Sul-Americano e as coisas estavam caminhando bem. Passei por uma fase meio difícil, não estava jogando bem. Achava que talvez deveria focar no estudo, porque quando vai para a seleção de base, perde um período grande da escola, de provas. Pensava em focar nos estudos para no outro ano tentar um vestibular — lembra o jogador, que voltou a atenção para a carreira naquele mesmo ano:
— Teve uma convocação e eu fui bem. Em 2013, me formei no colégio e em 2014 já fui para Belo Horizonte. No Cruzeiro, comecei a enxergar diferente o vôlei. Até 2013, eu pagava para jogar e no Cruzeiro comecei a ganhar um dinheirinho. Eles tinha um timaço e no fim daquele ano já comecei a treinar com eles. Daí não tinha mais volta.
TALENTO PRECOCE
As coisas aconteceram na carreira de Cachopa de forma precoce. Em 2013, aos 17 anos, foi campeão mundial Sub-23 com a seleção. Era, mesmo tão jovem, líder do time. O histórico na base chamava a atenção e, naturalmente, o levantador foi ganhando espaço no time adulto do Cruzeiro e na seleção principal. Mas só em abril de 2019 ele começou a carimbar seu lugar no grupo olímpico.
A entrada do técnico Renan Dal Zotto no comando da seleção, em 2017, foi determinante. A confirmação da primeira convocação, ainda que informal, veio em um momento difícil.
— A temporada 2018/2019 não acabou muito bem noCruzeiro. Saí chorando do ginásio, tinha sido eliminado e o Renan Dal Zotto era o técnico do outro time (Taubaté). Ele chegou para mim e disse: “guri, levanta a cabeça, foi uma baita temporada e a gente se vê em Saquarema-RJ (sede do CT das seleções de vôlei), daqui duas semanas. Eu nem estava entendendo, chorando e triste para caramba, não tinha nem pensado em seleção. Um dia depois que caiu a ficha que poderia ser convocado — conta o levantador.
Mas a dimensão do que estava acontecendo veio contra o Canadá, em amistosos realizados em Campinas, em maio daquele ano.
— Estava passando mal de nervoso no vestiário, ouvia a torcida gritando. E era um amistoso só, uma partida que não valia nada, mas ali vi que o negócio era sério, que era para valer. Já tinha jogado Sul-Americano e Mundial nas categorias de base, mas não é a mesma coisa, não é a mesma energia. Muda completamente.
Cachopa foi para a última competição antes da lista oficial para Tóquio. Porém, na Liga das Nações, a ausência foi fora da quadra. Renan Dal Zotto foi internado com covid-19 e a incerteza tomou conta do grupo antes da festa do título e da convocação.
— Foi mais especial por toda a circunstância. O Renan pegou a covid, foi uma situação complicada. Ele ficou 30 dias internado, fomos para a competição sempre pensando: “pô, será que o cara vai se recuperar?” No fim, deu tudo certo e saiu melhor que o planejado — celebra Cachopa.
REFERÊNCIAS NO ESPORTE, COMPANHEIROS NA QUADRA
Ainda no tempo de futebol, em que se arriscava na base do Juventude, o grande ídolo vestia a 10 do Barcelona e da Seleção.
— Quando criança, era fã roxo do Ronaldinho Gaúcho. Era impressionante, eu amava o cara — admite Cachopa, que começou a observar outras referências após a troca de esporte:
— Hoje, vejo grandes atletas no vôlei, principalmente na minha posição. O Bruno (Bruninho), acho um baita cara, o levantador da Argentina, o De Cecco, acho sensacional. O William (ex-companheiro do Cruzeiro e campeão olímpico pela seleção) é sensacional, passou dos 40 anos jogando e foi o melhor levantador da Superliga. São caras que eu me espelho.
Uma das referências, por sinal, é o “concorrente” direto por uma vaga na equipe titular do Brasil. Bruninho, aos 35 anos, é uma inspiração que Cachopa tem ao seu lado em cada treinamento com a seleção.
— Falei com alguns outros atletas na Liga das Nações e acho que ele é uma referência para o mundo todo. Impressionante a imagem que o cara carrega. Ele é um exemplo de atleta e de líder para qualquer esportista. Tenho o privilégio de estar com o cara, de ter a chance de aprender o que ele tem de melhor. Hoje, está um cara muito mais maduro, mais inteligente, sabe a função e a relevância no grupo, para o vôlei nacional. Eu, ainda novo, posso aprender muita coisa com ele.
ORGULHO PARA A FAMÍLIA E PARA A CIDADE
Desde muito cedo, Cachopa foi construindo seu nome no esporte de Caxias do Sul. Agora, com as fronteiras rompidas e levando o nome da cidade para o mundo, o levantador tem um papel de inspiração para os jovens que sonham em crescer no esporte.
— Acho isso muito legal. Apesar de fazer pouco tempo que eu saí da UCS, acho bacana eles terem esse contato comigo, com o Eder (Carbonera, atleta campeão olímpico em 2016) e o Gustavão (central, com passagem pela seleção). E eles têm que ter essa imagem de que se eu consegui, eles conseguem. Se tu se esforçar, se trilhar o caminho certo, provavelmente consiga alguma coisa legal para ti.
Em casa, o apoio e a torcida para Cachopa em Tóquio são incondicionais.
— Como família, é inacreditável, inexplicável. Um orgulho que não cabe no peito. Por ter passado na quadra, dimensiona ainda mais, de chegar lá, com 25 anos, muito novo. É algo surreal. Ele está realizando o sonho de muita gente. E tem muita coisa ainda pela frente. Pelo clima do grupo, vem medalha. E dourada — torce Feijão, junto com a mãe Vera e o pai Mário.
Cachopa é um pedaço de Caxias que vai para Tóquio. As mãos que levantam a bola, levam um pouco de cada um que incentivou o jogador caxiense. A camisa 6 da seleção carregará mais do que o nome “Fernando” às costas.
— Para mim, a ficha não caiu ainda, é um negócio muito grande representar a cidade e toda a região. Sou orgulhoso demais de ter nascido e crescido aqui. Amo galeto, polenta e amo demais esse lugar aqui. É uma honra para mim representar a cidade — concluiu Cachopa.