Uma safra que exigiu muito de agricultores, de pesquisadores e de todas as peças da engrenagem que constitui a cadeia de produção da uva e do vinho na Serra gaúcha. Nos últimos meses, a região sofreu intensamente com o fenômeno El Niño, e a quantidade de chuvas muito acima das médias registradas nos anos anteriores deve ter impacto direto na uva a ser colhida nas próximas semanas.
Embora os produtores ainda vivam o começo da vindima, iniciada oficialmente na metade de janeiro, as primeiras avaliações dão conta de que o segmento poderá ter quebras entre 30% e 35% e, em cenários mais graves, de até 50%, segundo estimativas feitas pela Embrapa Uva e Vinho. Chefe-adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da entidade, Henrique Pessoa dos Santos acompanha as safras na região desde 2001, e aponta os principais fatores que devem causar as perdas.
— As respostas de produção que estamos vendo são o resultado de uma sequência de eventos que se iniciaram ainda na primavera de 2022, com frios tardios que determinaram a presença ou ausência do cacho nas brotações de algumas culturas. Na sequência, tivemos o inverno de 2023 com poucas horas de frio e uma primavera muito chuvosa, em função do El Niño muito forte. Isso causou um acúmulo de chuvas bem acima da média, e impactou na polinização e no número de bagas por cacho, além da sanidade da produção — elenca Santos.
Doenças comuns à cultura e a dificuldade na aplicação de tratamentos químicos, somadas à falta de sol, que influencia na evolução da maturação da fruta, completam a lista de problemas enfrentados pelos agricultores. O granizo, que agravou as perdas em algumas propriedades, também foi ressaltado pelo pesquisador.
Emater projeta quebra de 30% na produção
Acompanhar o dia a dia do produtor e trabalhar na orientação para diminuir os prejuízos causados pelas intempéries foi papel também da Emater Regional de Caxias do Sul desde o começo do ciclo que culmina na colheita desde ano. O coordenador de Fruticultura da instituição na Serra, engenheiro agrônomo Enio Todeschini, faz uma avaliação dos números projetados para a vindima.
— A safra ainda não está definida, mas teremos, sim, perdas importantes. Dos 820 milhões de quilos que esperávamos, teremos uma quebra próxima aos 30% — aponta Todeschini.
Para fins de levantamento, a Emater considera nos cálculos toda a uva com propósito comercial produzida na Serra.
O ranking de problemas enfrentados pelos produtores, de acordo com o coordenador regional da instituição, possui quatro principais elementos. Entre eles estão os custos de produção elevados, em virtude do excesso de chuvas, a queda no preço mínimo pago pela indústria, a falta de mão de obra para colheita, além da quebra da safra.
— É triste o que a gente ouve dos agricultores. Muitas vezes, inclusive, exercemos um papel quase de psicólogo, escutando o desabafo de quem vê o trabalho de um ano inteiro comprometido — revela Todeschini.
Vinhos e espumantes com qualidade garantida
As dificuldades na produção da uva em 2024 não passam despercebidas aos olhos dos responsáveis pela qualidade das principais estrelas da região. A qualidade dos vinhos e espumantes que serão produzidos a partir da colheita que está em andamento é a grande prioridade da Associação Brasileira de Enologia (ABE), presidida pelo enólogo garibaldense Ricardo Morari.
— Ainda é precoce falarmos em percentuais de quebra, mas ela existe. Contudo, a qualidade se mantém. Nos últimos anos, as vinícolas têm buscado tecnologia para superar as condições climáticas desfavoráveis. Isso permite colher uvas de qualidade que vão dar origem a vinhos de boa qualidade – avalia.
Conforme Morari, a profissionalização de todos os processos, investimento das vinícolas e maior conhecimento dos enólogos foram fundamentais para a padronização da marca Serra Gaúcha.
— Hoje, não é mais como uma vez em que produtos bons dependiam somente de safras boas. O nosso padrão de qualidade já não sofre oscilações, independentemente do clima – garante o presidente da ABE.
Fundada em 1976, a entidade possui 339 associados em todo o país. Desses, 277 são da Serra.
Os motivos que explicam as perdas na safra
1. Geadas tardias
O ciclo de fatores que ajuda a explicar as perdas significativas na produção da uva na colheita deste ano remete ainda a 2022, quando geadas tardias registradas durante a primavera, somadas à estiagem do período, impactaram na brotação das videiras, determinando a ausência ou presença de cachos. Naquele ano, o fenômeno meteorológico chegou a ser observado no mês de novembro, em um dos frios mais tardios em mais de duas décadas, o que também prejudicou o processo de fertilidade das gemas.
2. Poucas horas de frio
Não basta fazer frio, é preciso que as temperaturas ideais para a formação da uva se estendam por longos períodos. E foi exatamente o contrário o registrado no inverno de 2023, o que impactou diretamente na brotação, graças à alta umidade. Conforme dados da Embrapa Uva e Vinho, foram apenas 230 horas de frio (com temperaturas iguais ou inferiores a 7,2ºC) na estação teoricamente mais gelada do ano. Em calendários considerados normais, a incidência de frio é de 409 horas.
3. Excesso de chuvas
O El Niño e sua principal característica: muita chuva. Além de causar excesso de umidade e restringir a frequência de temperaturas baixas, o fenômeno castigou os parreirais com volumes de água que não eram vistos na região desde 2020. Conforme dados da Embrapa, foram 1.1174mm, frente a uma média de 462,8mm observados nos três anos anteriores (veja no quadro). O cenário afetou a polinização, diminuindo a quantidade de bagas e cachos nas videiras.
4. Doenças
Quanto mais chuva, menor a eficácia do tratamento necessário para manter o nível de sanidade dos parreirais. Com as janelas para aplicação de produtos químicos severamente diminuídas pelas seguidas precipitações, os produtores não conseguiram evitar doenças como o míldio (espécie de fungo que ataca as parreiras) e podridões, que comprometeram boa parte das culturas.
5. Falta de sol
Por mais que possa parecer a mesma coisa, excesso de chuvas e falta de sol, ainda mais para a agricultura, são situações bem distintas. E a segunda foi outro fator a prejudicar a safra da uva. Com a diminuição de horas de sol e consequente falta de radiação, impossibilitou maior uniformidade e evolução da maturação da fruta.
6. Granizo
Embora mais pontuais, os prejuízos trazidos pela queda de granizo ajudaram a piorar as perdas dos produtores neste ano. São diversas propriedades que somam também o fenômeno à lista de problemas enfrentados.
Histórico de chuvas
Período X Precipitação
Quantidade normal (agosto a dezembro): 790mm
2020 (agosto a Dezembro): 461,9mm
2021 (agosto a dezembro): 451,8mm
2022 (agosto a dezembro): 474,8mm
2023 (agosto a dezembro): 1.174 mm
Fonte: Estação meteorológica da Embrapa Uva e Vinho
Ano ideal para a Moscatel
Cada ano, uma adversidade. E boas surpresas. Na comunidade de Santos Anjos, no interior de Farroupilha, a Vinícola Casa Perini, mesmo confirmando o cenário de menos quantidade vindo das propriedades fornecedoras, registra uma temporada de qualidade ideal para uvas que servem de base para a produção dos espumantes da marca. O diretor de produção e enólogo Leandro Santini salienta que o suco proveniente da fruta colhido até agora mostra uma uva propícia para grandes safras.
— Todo ano, cada variedade se comporta de uma maneira diferente, em virtude do clima. O desafio é extrair o melhor de cada variedade para a safra 2024. A gente está recebendo as variedades para espumantes e, em termos técnicos, como PH e acidez, o consumidor pode ter certeza de que vai encontrar uma qualidade excepcional — garante Santini.
A uva moscato, uma das variedades mais utilizadas pela Perini, tem destaque também neste ano. O diretor e sommelier da empresa, Pablo Perini, enfatiza os aromas enaltecidos da cultura e ressalta que os melhores produtos da linha dos espumantes terão uma safra ainda mais especial.
— É o caso do Casa Perini Moscatel, premiado como quinto melhor vinho do mundo pela Associação Mundial de Jornalistas e Escritores de Vinhos e Licores, e que, mais uma vez, terá um ano de excelência — aposta Pablo.
Esforço que garante o suco
Desfilando entre vinhos e espumantes, líderes de mercado na região, o suco de uva ganha cada vez mais espaço e atenção. Com quase dois terços da linha destinados para o segmento, a Cooperativa Nova Aliança, de Flores da Cunha, passa por um ano desafiador entre os produtores. Praticamente todas as 700 famílias cooperadas e que fornecem a fruta sofreram com o El Niño, o que acarretará uma perda de 30% a 35% no volume final. Dos 45 milhões de quilos previstos para este ano, cerca de 35 milhões devem se confirmar.
O diretor Heleno Facchin lamenta o panorama vivido pelos cooperativados.
— O nosso produtor enfrentou todas as dificuldades de um inverno ameno e precipitações intensas, além das doenças nos parreirais, o difícil controle e o incremento de custos disso à produção — avalia Facchin.
O enólogo André Gasperin acredita que a safra só foi possível graças à dedicação enorme do viticultor.
— A gente tem observado nestas primeiras entregas de uvas que o produtor, com muito trabalho, muito esforço e amor pelo cultivo, cumpriu seu papel, fornecendo uma uva de qualidade satisfatória, para que a cooperativa consiga entregar ao mercado produtos dentro no nosso padrão, e com preço competitivo – avalia Gasperin.
Cuidados redobrados, poucas perdas
Um ano para se dormir embaixo da parreira. A avalição bem-humorada de um momento de muito desafio é do enólogo Edegar Scortegagna, responsável pela produção da Vinícola Luiz Argenta, em Flores da Cunha. Scortegagna se refere à necessidade de cuidados máximos com o acompanhamento da fruta que a safra 2023-2024 exigiu do viticultores. Tudo para que os prejuízos provocados pelas intempéries do tempo fossem amenizados.
— Levando em consideração as condições climáticas deste ano, foi preciso ter um cuidado mais do que redobrado. O nosso agrônomo Zair Molon praticamente dormiu nas videiras. Se nós cuidássemos do vinhedo (da mesma maneira) como nos últimos cinco anos, que foram maravilhosamente secos, nós teríamos perdido uva. Então, foi preciso uma atenção muito maior nas podas verdes, para a uva ventilar mais e ficar menos úmida, nos tratamentos que são feitos nos vinhedos, e também qual e quando o tratamento da planta devia ser feito — analisa Scortegagna.
Tamanha atenção, além de evitar maiores perdas, que na Luiz Argenta deve ser de apenas 5%, possibilitou manter frutas no padrão desejado.
— Pelas uvas que estão sendo colhidas agora, a qualidade não está nada comprometida — aponta o enólogo.
Compra de uvas também diminuirá
Na Linha 30, interior de Caxias do Sul, a Vinícola Lovatel começou a receber a uva dos fornecedores para a safra 2024 nos últimos dias. E neste ano serão menos caminhões que chegarão à propriedade para a entrega. Isso porque a quantidade de fruta adquirida junto aos produtores será menor do que em anos anteriores. O enólogo responsável da empresa, Jhonatan Lovatel, aponta não somente a quebra da safra como um dos motivos para a diminuição, mas também a destinação da uva para a produção de sucos, que aumentou na região.
— Nós vamos comprar menos uvas. Foi um ano muito difícil para o agricultor, que precisou trabalhar e investir ainda mais, e mesmo assim terá menos fruta para fornecer. E também o segmento dos sucos tem adquirido muito mais de uns anos para cá, o que diminui as variedades à disposição — revela Lovatel.
Com 45 anos de atuação, a vinícola caxiense espera receber 2 milhões de quilos de uva nas próximas semanas, e pretende produzir 2,5 milhões de litros de vinhos, espumantes e sucos em 2024.
Safra sem produtos especiais
No Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, o Grupo Miolo começou a colheita deste ano projetando baixa quebra na safra, já que produz 100% das uvas que utiliza. Com isso, a empresa deverá deixar de produzir alguns dos itens. Em compensação, produtos oriundos de safras especiais em anos anteriores serão lançados em 2024, de acordo com o gestor comercial da empresa, Alexandre Miolo.
— Vinhos de guarda, que necessitam de envelhecimento, caso dos que chamamos de lendários, não serão produzidos em função do clima, do solo, da região, apesar de ser uma safra boa. Desses, nós lançaremos as safras 2020, 2021, 2022 e até 2023, possivelmente entre abril e maio — projeta o gestor.
O enólogo Gilberto Simonaggio, que há anos cuida do processo completo do plantio ao envase no grupo, reforça o quanto a Serra sofreu com as adversidades climáticas durante todo o ano passado, e o trabalho necessário de todos os envolvidos.
— Pelos aspectos naturais, a nossa região foi ainda mais atingida pelo El Niño e as chuvas em volume excessivo. Nós, que lidamos com a safra, precisamos de muito mais empenho para garantirmos a uva — esclarece Simonaggio.