Utilizar a criatividade para criação de um produto ou gerar soluções está no centro dos segmentos que fazem parte da economia cultural e criativa. O setor, que envolve moda, design, produção audiovisual, arquitetura, tecnologia, comunicação, entre outras atividades, está em crescimento no Brasil e no Estado, conforme dados do Observatório Itaú Cultural, que lançou em abril o PIB da Economia da Cultura e Indústrias Criativas (Ecic). Em Caxias do Sul, o cenário não é diferente, como apontam grupos que acompanham o segmento e o enxergam em crescimento.
Integrante do núcleo de negócios criativos da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Caxias, Caliandra Troian descreve que o segmento é visto como um potencial para o desenvolvimento do município e da Serra. Entre os setores que se destacam estão as artes, moda e tecnologia da informação (TI), além desta economia estar relacionada com o turismo.
— Especialmente porque a economia criativa envolve 17 segmentos, dentre eles arte e cultura e também se correlaciona com o turismo. E também é justamente o momento em que estamos vivendo na nossa cidade, da diversificação da nossa matriz e do desenvolvimento do turismo, com o link com a cultura e a economia criativa — explica Caliandra.
No Estado, de acordo com a pesquisa do Observatório Itaú Cultural, são nove mil empresas do segmento. Moda lidera com 2,5 mil negócios, seguida por publicidade e serviços empresariais (1,5 mil) e atividades artesanais (1,2 mil). Enquanto isso, são mais de 410 mil trabalhadores, com uma média salarial de R$ 4,1 mil - maior que a média estadual entre todos os empregos, que é de R$ 3,2 mil.
Uma forma de fortalecer o setor é por meio de incentivos e investimentos. Em Caxias, Caliandra destaca que agentes culturais e entidades estão trabalhando em prol da economia criativa, a partir de ações que fortaleçam o ecossistema. Uma delas é o lançamento, junto à prefeitura e outras entidades, de um calendário anual. Em 2024, inclusive, a Feira da Economia Criativa: Cultura, Turismo e Negócios deve ser promovida. Na última sexta (21), inclusive, o Dia Mundial da Criatividade foi celebrado na Universidade de Caxias do Sul (UCS).
No lançamento do PIB da Economia de Cultura e Indústrias Criativas, em São Paulo, Leandro Valiati, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade de Manchester, e Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú, explicaram como o setor criativo teve um crescimento relevante no país durante uma década. Em 2012, representava 2,72% do produto interno bruto, o que passou para 3,11% em 2020:
— O que queremos chamar atenção é a oportunidade de crescimento que tem os Estados e o quanto isso é gerador de emprego e renda. Quando aqui oferecemos essa informação de que no país é 3,11%, mas poderia ser ainda maior.
Negócio criativo transforma pessoas
Com a economia criativa em crescimento há uma década, quem atesta a procura por soluções criativas em Caxias é a publicitária Luana Belarmino. Sócia-fundadora da Agência Moça, a profissional viu o negócio ser alavancado na pandemia, possibilitando triplicar o número de funcionários (todos colaboradores criativos) e mudar-se para uma sede própria.
— A demanda só aumenta porque o mercado está cada vez mais focado nas pessoas e as empresas entenderam que se a gente não transforma as pessoas, a empresa não vai conseguir avançar. Isso tanto na ascensão quanto na hora da dificuldade. A pandemia deixou isso muito claro — observa Luana.
Um dos focos da agência se tornou o endomarketing (o marketing voltado para comunicação interna) depois de uma oportunidade que surgiu há nove anos. Trabalhar com essa forma de comunicação também destacou a importância do capital intelectual (isto é, sabedoria, conhecimento e experiência dos trabalhadores) para atender os clientes - o que é uma das características da economia criativa.
— Entendemos que precisamos usar muito do nosso capital intelectual, porque não é apenas venda. Precisamos tocar as pessoas, encantar e engajar. Identificamos um trabalho mais complexo e corpo a corpo — explica Luana.
“Não é só artesanato”, diz economista
Pesquisadora e professora de ciências econômicas da UCS, Jacqueline Corá chama atenção para um engano comum de que ainda não é familiarizado com a economia criativa. O setor “não é só artesanato”, como alerta Jacqueline:
— Entender a grande cadeia. A economia criativa envolve um sistema de atividades econômicas. Desde a parte da criação, da produção, e distribuição de bens e serviços que vão ter uso e aplicação da criatividade e capital intelectual . A cadeia é bastante ampla, do universo envolvendo muita tecnologia, como segmento dos jogos. Com essa parte avançando muito. As pessoas começam a entender melhor economia criativa que não trata-se apenas da feira que ocorre na frente da Maesa.
O Observatório Itaú Cultural coloca os seguintes segmentos como parte da economia de cultura e indústrias criativas: moda, atividades artesanais, indústria editorial, cinema, rádio e TV, música, desenvolvimento de software e jogos digitais, serviços de tecnologia da informação dedicados ao campo criativo, arquitetura, publicidade e serviços empresariais, design, artes cênicas, artes visuais, museus e patrimônio.
Outra característica importante destacada pela pesquisadora é o fato de que existem trabalhadores criativos em áreas que não são do setor (por exemplo, um designer na indústria de móveis). Essa valorização e interesse das empresas auxilia também que outros segmentos sejam fomentados com essa colaboração.
— Nós temos dentro das próprias indústrias um segmento bastante interessante, porque nós não nos damos conta que existem as profissões criativas que atuam em outras indústrias. Hoje, na medida que também há um apelo para as empresas buscarem diferenciações e soluções inovadoras, o que faz nós termos uma solução diferenciada na sociedade? É a criatividade — reflete a professora.
Moda é líder
Como mostram os dados do Observatório Itaú Cultural (na tabela acima), o setor da moda é o que mais tem empresas no Brasil e no Estado. Em Caxias do Sul, uma das empreendedoras nesta área é a estilista Ana Dotto, que trabalha há 10 anos no ateliê, que leva o nome dela e é especializado em vestidos de noiva. Apaixonada por moda desde os 12 anos, ela vê que o município tem tradição em vestidos sob medida, até por conta da Festa da Uva.
— Claro que nos primeiros anos é aquela luta, tu trabalha muito. Tem que fazer muitos vestidos, tem que estar sendo conhecida, tem que criar o nome. Mas, depois que constrói, isso vai (dar certo)— relembra a estilista.
Durante os anos, Ana adotou pilares para as criações, como trazer vestidos românticos e clássicos. Uma mudança notada por ela é que, hoje, as clientes trazem muitas referências. Até por isso, para atender as noivas, a estilista utiliza todo conhecimento em moda e bagagem para chegar ao ponto ideal.
No município, Ana vê que existe um ambiente desenvolvido para a moda e nota um espaço interessante para quem está criando novas marcas.
— Outra vantagem que eu vejo aqui é que temos muitos fornecedores. Então, é muito viável trabalhar com moda na região — descreve a estilista, que atende também clientes de outras cidades.
Potencial de transformar Caxias
A economia criativa não está apenas ligada à geração de renda e emprego. Henrique Nogueira, proprietário da Dolphin Design - Santo Site, Naiades Cruz, proprietária da Wave Digital Art, e Bruno Bazanella, sócio da Farofa Comunicação, percebem que o acesso às informações do setor podem potencializar negócios, desde o artesanato até a tecnologia, e, principalmente, transformar a cidade.
— Nos nossos casos aqui, a matéria-prima é intelectual. Não preciso comprar um produto, colocar na prateleira e vender. Então, acho que, com essa dinamicidade, a gente pode mostrar para comunidade que a economia criativa é isso. Se a gente consegue fazer que a comunidade se dê conta disso, talvez a gente tenha mais pessoas querendo fazer parte desse contexto, e isso é uma forma de desenvolver a região, porque vamos ter pessoas abrindo negócios hoje e faturando na semana que vem — observa Nogueira, que é coordenador do Núcleo de Economia Criativa da Microempa.
Bazanella, por exemplo, percebeu esse poder do setor ao começar a estudar sobre o tema, há seis anos. O especialista em cultura e inovação busca levar a criatividade para a solução de problemas no próprio negócio:
— Eu decidi empreender para não ajudar apenas os empreendedores que querem encontrar novas formas de criar negócios, mas também as empresas a valorizarem a criatividade no ambiente de trabalho.
Para levar este conhecimento à comunidade, o Núcleo Setorial de Economia Criativa da Microempa promove, em maio, o 7º Festival da Economia Criativa. Uma das formas de auxílio no setor, inclusive, é o trabalho em rede, com compartilhamento de contatos e troca de experiências, o que pode inovar o que já existe na região.
— Precisamos fazer o convite para as pessoas entenderem o que é economia criativa. Quando olhamos para Caxias, nós temos, por exemplo, uma matriz agroindustrial, a produção de chimias e biscoitos. Se analisarmos, isso poderia se tornar um presente para quem visita a cidade. Isso é economia criativa — reforça Bazanella.
Desafio do mercado na Serra
Os três ainda veem desafios para conquistar parte do mercado de Caxias e na Serra. Bazanella e Naiades relatam que têm mais clientes fora da região. A empreendedora, que é de Guarulhos (SP), atende, inclusive, negócios de outras partes do mundo, como na Suíça.
— Eu vejo que Caxias, na parte de tecnologia, está um pouco mais fechado (o mercado). É um pouco cultural isso. Estão começando a abrir um pouco a mente para a criatividade — observa Naiades.
Para isso, ao mesmo tempo que o conhecimento pode ser levado aos caxienses, o objetivo é demonstrar o que a economia criativa é capaz de transformar.
Uma nova visão para a cultura em Caxias, aconselha produtor cultural
“Estamos sentados em uma mina de ouro”, destaca o produtor cultural Robinson Cabral sobre o segmento em Caxias. As artes não estão ligadas à economia criativa apenas por sua natureza. Cabral pede que os gestores percebam como programações e atrações artísticas movimentam economicamente o município.
Um exemplo citado pelo produtor é o Carnaval de rua. Para Cabral, ele deve voltar ao formato antigo e ocorrer na área central, onde a população se deslocará para assistir. Consequentemente, cria-se o consumo em transporte, estabelecimentos e vendedores ao redor do evento.
— (A mina de ouro) é tanto econômica quanto cultural. Tu chuta uma pedra no interior e tem um grupo de coral, tu chuta outra pedra tem um filó, tu chuta outra tem um grupo de capoeira, tu chuta mais uma pedra e tem uma escola de samba. É interminável. Poucos lugares têm a capacidade de produzir cultura como Caxias. Polenta frita aqui é cultura. Tudo é cultura. Temos tudo para voar — analisa Cabral.
O produtor cultural acredita que um grande desafio para a cultura caxiense é a falta de fomento. Na visão de Cabral, o Financiamento da Arte e Cultura Caxiense (Financiarte) precisa ter um valor adequado à realidade do setor, para que artistas e gestores culturais possam ter a verba necessária para produções profissionais. Em comparação, o programa concedeu, em 2016, R$ 2 milhões para cerca de 70 projetos, enquanto, em 2022, o valor foi de R$ 800 mil, divididos em 32 projetos com cotas de R$ 25 mil.
— O que está faltando é uma política pública para que novos projetos nasçam. Um claramente que é a maior inclusão de mercado econômico, sem falar do potencial de cidadão e social, era o nosso Financiarte. Até 2016, tinha R$ 2 milhões, atendia 70 projetos. Desses 70 projetos, geravam mais de 3,5 mil atendimentos, centenas de contrapartidas diretas e indiretas na cidade. O Financiarte era a porta de entrada. Fechamos a porta de entrada — critica o produtor.
Cabral chama atenção que o programa auxiliava também na formação de novos profissionais, o que não seria possível com os valores oferecidos atualmente. Assim, na visão dele, apenas aqueles profissionais já estabelecidos no setor cultural seguem no mercado. Isso gera outro desafio para a cultura caxiense, que é a falta de mão de obra, como argumenta o produtor, que atua na profissão há mais de 12 anos no município e é músico desde os anos 1990:
— O que mais carece em Caxias é a profissionalização do setor da cultura. Temos em alguns setores da economia criativa, como a publicidade, algum espaço. A cultura por si só eu vejo muita falta de profissionalização, no turismo também. Não conseguimos tirar todo potencial que a gente tem.
"É uma parte da solução", afirma especialista
O pesquisador e diretor da UrbsNova, Jorge Piqué, percebe que ainda há um desenvolvimento na sociedade como um todo para a consolidação do setor. Piqué, que desenvolveu com a agência dele o Distrito Criativo de Porto Alegre - território criativo vencedor do Prêmio Brasil Criativo 2023, lembra que o setor surge nos anos 1990, em países e regiões com agricultura, indústria e serviços desenvolvidos, como no Reino Unido. O pesquisador esteve em Caxias, na última semana, para palestrar sobre o tema na CIC.
No Brasil, essa ainda não seria a realidade. Assim, para Piqué, ainda há um caminho a ser percorrido antes de chegar neste nível, em que a economia criativa é mais uma camada a ser colocada sobre esta estrutura:
— Artes e cultura têm uma grande importância pra nós como sociedade. Isso é indiscutível. Mas ela também tem uma importância econômica e para o desenvolvimento econômico. Então, no Brasil, você tem uma agricultura mais ou menos e uma indústria com problemas, onde houve muita desindustrialização nos últimos anos. Felizmente, Caxias é uma cidade bem industrializada. Então, essa camada de economia criativa, de negócios criativos, ainda tem muitos problemas. A economia criativa no Brasil não é algo que vai solucionar todos os problemas, é uma parte da solução. Mas, você precisa de uma sociedade mais robusta economicamente, com uma agricultura boa, com uma indústria boa, e aí a economia criativa pode vir como uma expansão. Da mesma maneira que a indústria no passado veio depois da agricultura, depois do comércio.
Para seguir o exemplo do que foi a indústria no passado, que abriu um novo espaço de negócios, o especialista vê que o consumo também precisa ser forte. Conforme levantamento do Observatório Itaú Cultural, feito entre junho de 2021 e julho de 2022, os principais hábitos dos brasileiros são ouvir música online e assistir filmes e séries online.
— Isso significa também mais educação. Uma sociedade não educada, não consome produtos da economia criativa. Precisa de desenvolvimento econômico harmônico, e aí o público tem que ser educado, políticas culturais são importantes nesse sentido, para esse público se acostumar a consumir e isso que vai fortalecer e fazer crescer a economia criativa no Brasil — analisa Piqué.