Mesmo com as adversidades da pandemia, os Caminhos de Caravaggio já se consolidam como uma das principais rotas de peregrinos do Brasil. Desde maio de 2019, quase 2 mil pessoas já fizeram os cerca de 200 quilômetros da caminhada que liga os santuários de Caravaggio em Canela e em Farroupilha, passando também pelos municípios de Caxias do Sul, Gramado e Nova Petrópolis — muita gente também faz o trajeto de bicicleta. Esta contagem está no livro de passagem do Seminário Divina Providência, em Santa Lúcia do Piaí, interior de Caxias, um dos pontos de descanso e alimentação para os peregrinos. A rota turística valorizou diversas localidades rurais da Serra e desenvolveu novos negócios.
A estimativa é que cada peregrino gaste cerca de R$ 1,6 mil para os 10 dias da rota, com hospedagem — incluindo as estadias antes da caminhada e a da chegada — e alimentação. Quando o peregrino utiliza um serviço de guia, este valor é estimado em R$ 3 mil. E, claro, no caminho há outros gastos que o visitante pode ter, como comprar morangos direto de um produtor ou descansar aproveitando um tradicional vinho serrano.
Há quem faça por devoção a Caravaggio e quem percorre independentemente de religião, em busca de conexão consigo mesmo, para apreciar as belezas naturais. O grau de dificuldade da caminhada pelos morros e a hospitalidade típica da Serra agrada aos peregrinos. O roteiro tem potencial para se desenvolver ainda mais. A comparação inevitável é com os Caminhos de Santiago de Compostela, peregrinação histórica na Espanha.
— Como tem mais subidas e descidas, o grau de dificuldade é maior. O de Compostela é encantador, tem toda uma mística e uma estrutura de anos. Na beleza (paisagem), ambos são impressionantes e valem a pena. Quem deseja fazer a peregrinação lá, pode ter uma base aqui em Caravaggio — diz a aposentada Isabel Cagliari Zago, 56 anos.
Moradora de Videira (SC), ela estava acompanhada de outras quatro amigas que começaram a peregrinação no último dia 17.
— Estamos encantadas. A paisagem é bem diferente da nossa região, com morros, vales e pedras. São vários locais pouco habitados, é justamente o que queríamos encontrar e nos conectar. Preferimos o chão de terra ao asfalto. É melhor este trajeto natural e de roça. Como é início da primavera, há vários tons de verde. Muito agradável para os olhos — comenta a comerciante Ivonete Pagliarini, 50.
Uma das principais diferenças com a peregrinação europeia são os locais de descanso. Enquanto na Espanha é mais comum os peregrinos ficarem em albergues municipais com dezenas de camas por cômodo, na rota serrana são pousadas familiares com quartos para duas ou três pessoas. O atrativo principal, contudo, é a receptividade.
— O atendimento é especial. Em outros locais, o pessoal distingue o peregrino. Aqui não, fomos muito bem recebidos, estão de parabéns pela alimentação e conforto — exalta Neusa Zago, 52, que completava o grupo com Rizoni Maria Baldissera Bogoni, 54, e Inês Maria De Bortoli, 61.
Dona de pousada vira "madrinha" de casamento
Solange de Souza Pinto, 67, ou simplesmente dona Solange é a proprietária da primeira pousada em Vila Oliva, no interior de Caxias, no terceiro trecho dos Caminhos. Doméstica aposentada, ela admite que foi resistente a receber os peregrinos em casa, mas foi convencida e encontrou uma nova alegria.
— Na época, passaram por toda a vila e ninguém queria. Eu não tinha nada pronto, mas fui começando. O primeiro peregrino fui eu que recebi. Hoje adoro recepcionar meus peregrinos. Faço muitas amizades e adquiro muito conhecimento. Conto as dificuldades que tenho, e a gente acha que só a gente tem problemas, e conversando vemos que tem pessoas com mais problemas — conta.
Nascida e criada em Vila Oliva, dona Solange tem visitantes de todo o Brasil. Aos poucos, a casa foi ampliada para ter mais quartos e uma cozinha capaz de atender aos peregrinos. Por R$ 130, o peregrino recebe o quarto, banheiro, local para lavar e secar roupas, janta, café da manhã e um lanche para levar.
Em seu livro de passagem, a dona Solange mostra mais de 1,2 mil recados desde o início de 2020, quando um peregrino fez questão de retornar para lhe presentear com o caderno.
Entre tantas histórias, dona Solange conta que já teve que "resgatar" peregrinos no meio da rota por causa da chuva e também acomodar um mineiro que não tinha reserva.
— Já aconteceu de eu dormir no chão (da sala) e esse peregrino dormir ali no cantinho. Estava lotado e ele não tinha agendado. Chegou já era escuro, chovendo. Era um rapaz de Belo Horizonte, fazendo a rota sozinho. Ele dormiu no canto da sala, feliz da vida — conta.
A história mais inusitada, contudo, é de como dona Solange se tornou madrinha de casamento de um paulista e uma brasiliense.
— Eles se juntaram no caminho, depois casaram e voltaram para me visitar, quando vieram de lua de mel em Gramado. Fiquei de madrinha de casamento — diverte-se.
"É uma das grandes promessas no Brasil"
O potencial de crescimento dos Caminhos de Caravaggio também é exaltado por guias turísticos e agente de viagens. Pelo menos oito profissionais independentes já se dedicam a organizar grupos de peregrinos — as pessoas que desejarem podem fazer de forma independente.
— Desde o ano passado, a procura está muito boa. Cada vez fica mais conhecido entre os peregrinos e todos que fazem dizem que a rota não perde em nada para os mais famosos — diz Marcio Crestani, sócio proprietário da Trilha do Viajante.
Guia de turismo há 13 anos, Crestani relata que a rota peregrina está se estabelecendo por si só, com esta divulgação espontânea de quem faz e o interesse das comunidades no movimento dos peregrinos.
— Essa movimentação atrai, e cada vez mais moradores criam seu ponto de apoio para oferecer o seu produto. Estão transformando locais, como uma casa parada, para receber estes peregrinos. Cada vez surgem mais negócios — relata Crestani.
A guia de turismo Adriana Reis, de Canoas, tem a mesma sensação.
— Antes tinha pontos com uma opção de hospedagem, e agora tem três ou quatro. Todos estão vendo que os Caminhos podem ser rentável para esse turismo rural. As comunidades estão percebendo e assim colocam mais estrutura, o que atrai mais peregrinos. É no boca a boca. Cada um que faz o Caminho vira um divulgador, espalha para mais e mais pessoas — diz.
Desde que fez a primeira vez o trajeto com seu cão Zeus, em setembro de 2020, Adriana já organizou 18 grupos de peregrinos. E a cada nova caminhada, a fama do roteiro se espalha.
— Ainda não alcançamos todo o potencial dos Caminhos porque é muito novo. Precisamos ajudar a divulgar. Há muitos voluntários fazendo isso. A comunidade apoia, inclusive ajuda em sinalização e estrutura. É uma das grandes promessas de rotas no Brasil — destaca Adriana, que também faz parte da Associação dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela (Acasargs) e ajudou na filiação da peregrinação serrana com a europeia.
"São pessoas de bem com a vida"
Enquanto muitas pousadas familiares surgiram para que os Caminhos de Caravaggio tivessem pontos de descanso, a Hospedaria Bom Pastor já era uma referência há 38 anos na Linha Brasil, em Nova Petrópolis. Ainda assim, a responsável Gleci Kleber, 68, sorri ao falar dos peregrinos.
— Não tem dia da semana, inverno ou verão. Sempre tem peregrino aparecendo. São pessoas de bem com a vida, que raramente reclamam. O que querem é uma cama limpa, um bom chuveiro e uma boa janta e café da manhã. Tem médico, funcionário, aposentado, jovem, idoso... Não existe um perfil definido. Vemos todos os tipos de pessoas, seja em grupo, família, casal ou sozinho — comenta.
Essa descrição é um consenso. O peregrino é visto como um turista simpático e que realmente tem interesse em se conectar com a região. São pessoas que querem conversar e conhecer. Inclusive na pandemia, que prejudicou a expansão dos Caminhos em seus primeiros anos, os peregrinos foram uma parte importante para estas comunidades.
— Recebíamos muitos grupos de turistas antes da pandemia, algo que ainda está recomeçando. Antigamente, chegavam 40 pessoas diferentes em excursões, com muitas escolas e grupos de terceira idade. Agora, o vemos são mais casais. De cada 10 hóspedes que recebemos, dois são peregrinos — relata Gleci.
Acostumada com negócios e turistas, a responsável pela hospedaria acredita que os Caminhos têm muito potencial a ser desenvolvido. Tanto na questão de divulgação, para ser mais conhecido e atrair mais visitantes, quanto na estrutura da rota com abertura de novos negócios.
— Está aumentando gradativamente o número de peregrinos. E temos muita atenção aos visitantes. Vemos que está se desenvolvendo e em breve deve ter mais opções. Hoje, é muito variado. Tem semanas que chegam 40 peregrinos e outras que são três ou quatro. É difícil abrir algo pensando que durante a semana vai passar quatro pessoas. Mas, está evoluindo este movimento e o crescimento das pousadas é melhor exemplo — exalta.
Na Hospedaria Bom Pastor, o peregrino recebe pouso, café e lanche por R$ 95. Quando há evento na Escola Bom Pastor, que fica no mesmo terreno, a janta é oferecida com cobrança à parte. Nos outros dias, a hospedaria disponibiliza a cozinha e orienta sobre o mercado próximo e telentrega dos restaurantes de Nova Petrópolis.
Casa dos Pezzi é transformada em hospedagem
A família Pezzi é outra que viu os Caminhos de Caravaggio aproximarem os turistas para a localidade de Nova Palmira, em Vila Cristina, Caxias do Sul. Perto de um riacho e aquele silêncio do interior, o casal Jaime Luiz, 64, e Loiva Regina, 57, já oferecia, aos finais de semana, a comida italiana no Café Colonial Famiglia Pezzi. Foi justamente por esta relação com os visitantes que eles foram convidados para ser um dos pontos de referência no trecho sete da rota.
— Não tínhamos um espaço para hospedar, por isso decidimos usar a casa dos meus pais e transformar numa hospedagem familiar. Se tornou um braço do nosso negócio. É uma participação mais tímida na nossa receita, mas que está crescendo e se tornando mais importante. Tanto acreditamos nos Caminhos que já temos um projeto de ampliação, para realmente nos tornarmos uma pousada. É uma realidade, uma opção turística cada vez mais interessante na nossa região — opina Daiane Pezzi, 40, que administra os negócios da família com os pais e o marido, Rudinei Del Souto, 44.
No ano passado, a Famiglia Pezzi recebeu 677 peregrinos — o dobro do que em 2020, que foi afetado pela pandemia. A expectativa é que esta ano o número seja ainda maior — já foram mais de 500 peregrinos em oito meses. Daiane acredita que a rota tem uma sinergia muito boa com a cultura italiana da Serra:
— O peregrino, diferentemente do turista, gosta de sentar à mesa com a gente, quer conhecer nossa família. Eles gostam de, durante o caminho, ir conhecendo todas as pessoas. Para eles, é uma grande experiência de vida. E, para nós, mais ainda, pois cada dia é uma pessoa de um canto diferente do Brasil, uma miscelânea de costumes e sotaques.
Souto lembra que o trajeto também atrai atletas. O maior exemplo é a Ultramaratona Caminhos de Caravaggio, que já integra o calendário da Associação Internacional de Trail. Em maio, 157 atletas participaram da segunda edição do circuito de 217 quilômetros.
— As pessoas falam muito bem do percurso, que é muito bonito e propício para estas práticas. Muitos fazem mais do que uma vez, pois tem as duas direções. Ainda que 98% venha de Canela para Farroupilha — conta o comerciante.
— É que em Farroupilha tem o Santuário. O peregrino gosta de tocar o sino, ouvir a missa do peregrino, entregar o passaporte carimbado, muitas vezes dá entrevista lá na rádio. Tem todo um evento quando chega, por isso preferem fazer neste sentido. Quando o Santuário de Canela ficar pronto, talvez aumente o interesse pelo outro sentido — acredita Daiane.
Além da pousada com sete quartos e o chamado pacote peregrino, com pernoite, janta, café e lanche por R$ 145, a Famiglia Pezzi também oferece serviço de agência, com apoio de transporte e translado do aeroporto.