Ao longo de nove décadas de Festa da Uva, conflitos mundiais, dificuldades financeiras, crise política e perdas na produção da fruta símbolo da região colocaram em xeque a realização do evento em Caxias do Sul. Agora, às vésperas da 33ª edição, a mais tradicional celebração da Serra gaúcha se molda para superar outro grande desafio: ser lembrada como uma atração segura, dentro e fora dos Pavilhões, enquanto a pandemia de covid-19 ainda é uma realidade global.
Para isso, o evento, agendado para começar em 18 de fevereiro, se organiza calcado em protocolos sanitários para voltar a ser realizado depois de três anos. Assim, voltando a gerar empregos, além de movimentar a economia e ser um alívio para os produtores de uva que sofrem com a estiagem. Formada em agosto do ano passado, a Comissão Comunitária começou a pensar a Festa da Uva desde o início com um cenário de restrições provocadas pela pandemia. A tranquilidade com o arrefecimento de casos de covid-19 no final de 2021 deu lugar ao desafio de realizar o evento com segurança diante do avanço dos casos da variante Ômicron.
De acordo com o presidente da Comissão Comunitária, Fernando Bertotto, os protocolos a serem seguidos serão semelhantes a outros eventos, como a Mercopar, Gramado Summit e também a Expointer. É do tradicional evento do agronegócio gaúcho, por exemplo, que os organizadores se inspiraram para contratar uma equipe de monitores que estarão nos Pavilhões orientando os visitantes a não descuidarem do uso da máscara, uma proteção que será obrigatória para quem estiver circulando nas áreas internas e externas.
Além disso, a Festa da Uva aposta em outras iniciativas, como os corredores mais largos, principalmente no pavilhão 2, que permitirão deslocamento com menos aglomerações na frente dos estandes. O álcool gel estará disponível em diversos pontos do parque. Como os acessos serão a partir da venda de ingressos, Bertotto explica também que os organizadores terão como controlar as entradas, podendo limitá-las caso haja lotação dentro do parque. Nos desfiles, que serão na rua e sem cobrança de ingresso, haverá mais dificuldade de fiscalização. Porém, por ser em local aberto, os riscos podem ser menores.
Esses desafios, segundo o presidente, somam-se a outros observados durante a trajetória da Festa da Uva (leia mais abaixo).
— Eu sabia que o fator pandemia seria o maior obstáculo para fazer a Festa da Uva desde quando assumi o cargo. Mas trabalhamos muito ao longo dos últimos meses para mostrar para a comunidade que vamos conseguir fazer um evento seguro e que também seja modelo para outras festas que virão. A economia precisa ser fortalecida depois de tanto tempo e também vejo que a Festa da Uva é fundamental para reanimar a nossa cidade — explica.
Segundo ele, a Festa da Uva movimentará cerca de R$ 200 milhões na economia local.
— É a rede hoteleira que se movimenta, os restaurantes que se preparam, os bares que registram mais público. É um setor que sentiu os efeitos da pandemia e volta a se aquecer com a Festa da Uva também. E, como outros segmentos, também estão autorizados a funcionar mediante protocolos — afirma.
Experiências e sugestões
Além da Expointer, Bertotto e demais integrantes da comissão estiveram em Santa Cruz do Sul, em outubro do ano passado, para acompanhar a programação e os protocolos praticados durante a Oktoberfest. Ao Pioneiro, a presidente do evento, Roberta Pereira, contou que os protocolos começaram a ser pensados três meses antes da abertura dos portões. Todas as regras passavam pelo aval do gabinete de crise da administração municipal da cidade do Vale do Rio Pardo, o mesmo comportamento adotado agora em Caxias para a Festa da Uva.
Segundo ela, a principal medida foi a redução de público e o trabalho de higienização. Testes e equipes de saúde também estavam à disposição no local. O público não pôde consumir alimentos e bebidas durante o passeio, somente em locais adequados e em mesas e cadeiras. Danças também eram proibidas na época e o sistema de som relembrava os protocolos a cada hora. Mesmo não obrigatório na época, o passaporte vacinal foi uma condição para quem quisesse acessar o parque.
— Em anos normais, a Oktoberfest costumava reunir de 40 mil a 50 mil pessoas por dia. No ano passado, trabalhamos com capacidade máxima de 4 mil pessoas por turno. A cada troca, todos os equipamentos eram higienizados e o parque também. Ocorreu tudo bem, mesmo com alguns episódios de algumas pessoas querendo dançar — relembra.
Segundo ela, o monitoramento da prefeitura de Santa Cruz do Sul não identificou aumento nos casos da doença após a realização do evento.
— Esse formato que adotamos foi um sucesso porque percebemos que, nos 15 dias posteriores ao evento, não houve aumento de casos nem de internações. Pudemos comprovar que a gente conseguiu, sim, cumprir com todos os protocolos e fazer um evento controlado e seguro — garante.
Na visão da médica infectologista do Hospital da Unimed e do Hospital São Carlos, Joana de Souza Sanchotene Moschen, é possível aumentar ainda mais a segurança de eventos, como a Festa da Uva, com maior atenção na entrada dos visitantes. Segundo ela, com a alta demanda de testagem e com a falta do insumos em alguns locais, a exigência de teste negativo para acessar o evento não seria uma alternativa viável.
— Entendo que deva existir uma conscientização para que a pessoa que estiver com sintomas gripais não vá para a Festa da Uva. Caso ela insista, seria importante ter um controle na entrada do parque para que, ao serem identificadas, possam ser orientadas a não acessarem os Pavilhões se estiverem com sintomas — sugere.
Nascida na crise, Festa da Uva encontrou outras adversidades em 90 anos de história
A inspiração para realizar o evento, mesmo diante de adversidades, é histórica. De acordo com a pesquisa do jornalista Luiz Carlos Erbes, autor do livro Festa da Uva - A Alma de Um Povo, o evento nasceu em março de 1931 como uma atração para ensinar os colonos a substituir a uva Isabel por linhagens mais nobres da fruta. Esse seminário embrionário, realizado na sede do Recreio da Juventude, buscava melhorar a qualidade do vinho produzido na época para que os produtores pudessem aperfeiçoar os seus negócios.
— Mesmo com impactos locais difíceis de mensurar, a Festa da Uva foi fundada diante da quebra da bolsa de valores de Nova York, um desafio no mundo que provocou danos na economia, afetando a indústria e dificultando empréstimos. Ou seja, um evento local, mas pensado em um momento de crise para que a produção de uva pudesse ter variedades mais nobres para garantir um vinho de melhor qualidade —pontua o pesquisador.
Ainda na década de 1930, a Festa da Uva voltaria a se deparar com desafios: em 1937, o evento precisou ser interrompido devido à Segunda Guerra Mundial, que afetou as ligações com a Itália. Erbes relembra que, anos mais tarde, outra adversidade quase provocou o cancelamento do evento: as dificuldades financeiras em 1983 da empresa Festa da Uva, que até hoje é responsável por organizar o evento.
— Se fosse uma empresa privada, certamente teria quebrado naquela época — resume.
O formato criado nos anos 1930 e consolidado nos anos 1990, com implantação de uma comissão comunitária e de atrações que remontam à imigração italiana, ainda é mantido. A crise mais recente, em 2016, também representou motivos a mais para celebrar. O evento foi realizado diante de instabilidade política nacional e com uma das piores quebras de safra da uva na região devido à geada.
Preço mais alto pago pela uva vendida à festa ajudará a amenizar prejuízos da estiagem
O símbolo da região chegará doce, gelado e saboroso para os visitantes aguardados para a edição deste ano do evento. A organização estima a compra de 150 mil a 200 mil toneladas de uva para ser distribuída nos Pavilhões e também nos seis desfiles na Rua Sinimbu.
Os primeiros cachos das variedades Niágara Rosada, Niágara Branca e Isabel devem começar a ser armazenados na semana que vem, em uma câmara fria de uma empresa da cidade. Mesmo durante uma das estiagens mais severas enfrentadas na região, a uva colhida nos parreirais chegará ao público simbolizando, mais do que nunca, a celebração da vindima.
Para ajudar os produtores a amenizar o impacto da falta de chuva, a Festa da Uva pagará um valor pouco acima do mercado, segundo o secretário municipal da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Smapa), Rudimar Menegotto. Ele também integra a organização do evento e é responsável pelo processo de aquisição da fruta.
Dessa forma, em anos de Festa da Uva, o lucro dos produtores pode aumentar. Sem a festa, por exemplo, parte da produção é destinada para a fabricação de vinhos, que paga valores industriais e mais baixos em comparação com a uva vendida para o consumo.
Para esta edição, a Festa da Uva fixou o valor e pagará R$ 3 o quilo para a uva de cultivo protegido e R$ 2,60 para as demais. É a primeira vez que o evento separa a fruta por categorias. Na edição de 2019, a última a ser realizada, o preço pago foi de R$ 2 ao quilo.
— Foi uma forma encontrada para que pudéssemos incentivar e valorizar aquele produtor que investiu mais na sua produção. Teremos uvas de estufas, com irrigação, além das tradicionais, em parreiras não cobertas. Além disso, sentimos maior interesse do produtor quando anunciamos esse valor mais alto para uvas de cultivo protegido. A partir de agora, é necessário ter essa diferenciação — explica.
A uva distribuída aos visitantes durante o evento é oriunda de cerca de 30 propriedades familiares do interior de Caxias. O agricultor Ademir Zanrosso comercializa a sua produção para a Festa da Uva há mais de quatro décadas.
Neste ano, serão 10 toneladas, principalmente da variedade Niágara, que está se desenvolvendo em sete hectares na comunidade de Linha 40. Os primeiros cachos devem começar a ser colhidos em até 10 dias. Ao todo, serão 200 toneladas da fruta, incluindo as variedades de mesa, que serão comercializadas por Zanrosso no mês que vem na Praça Dante Alighieri.
— Neste ano, a colheita será tardia. Muitos produtores estão enfrentando essa mesma adversidade, mas o importante é que uva não vai faltar, seja para a Festa da Uva como para quem quiser comprar no mercado — conta ele.
A produção de Zanrosso é formada por uvas de cultivo protegido (parreiral com cobertura plástica), por isso, ele será melhor remunerado pela festa. Mas, segundo ele, esse não é o principal motivo de estar envolvido no evento mais uma vez.
— Trabalhamos o ano todo para ver os parreirais bonitos e perfumados. Para nós, é uma alegria muito grande saber que o turista, a pessoa que vem a Caxias, vai saborear a nossa uva — conta.
Edição deve gerar 2 mil vagas de trabalho direto e indireto
Para manter um formato diário e com mais de duas semanas de duração, é necessário montar uma força-tarefa para auxiliar na organização. A estimativa da Festa da Uva é que o evento deste ano gere 2 mil vagas de trabalho de forma direta ou indireta antes e durante a programação. São trabalhadores temporários para o atendimento de visitantes, montagem de espaços, venda de alimentos, demandas dos shows, serviços de limpeza e segurança, entre outras áreas.
Os shows nacionais, uma das principais atrações da programação da Festa da Uva, vão representar a volta desse tipo de atração a Caxias desde novembro de 2019, quando Marília Mendonça e Wesley Safadão reuniram milhares de pessoas nos Pavilhões. Neste ano, serão seis atrações. Para controlar os acessos, os ingressos para o parque não dão direito a assistir os shows, que precisam ser adquiridos de forma separada. Além disso, os portões abrirão cerca de quatro horas antes das apresentações para evitar aglomerações.
Todos os detalhes das apresentações estão sob a liderança do diretor da AM9 Produções, Anderson Moraes, que é dono da empresa contratada pela Festa da Uva para gerenciar os shows. Na última quinta (20), ele concluiu a contratação de 166 pessoas para trabalhar nos acessos aos shows do parque, um trabalho que demandará a leitura dos ingressos, colocação de pulseiras e orientação.
Neste ano, cada um dos seis espaços terá uma entrada exclusiva, uma demanda da organização para evitar aglomerações e separar o público conforme o perfil de ingresso. Somente nesse perfil de profissional, segundo ele, serão investidos R$ 43,5 mil. Ainda segundo ele, 90% são trabalhadores de Caxias e o restante da região. Fora isso, somente para atendimento nos bares, serão 80 pessoas, que receberão, em média, R$ 230 por oito horas de trabalho noturno.
Além desses profissionais que aparecem, há quem atue nos bastidores ou muito antes dos shows começarem. A empresa de Vanderlei Ramos, conhecido como Anjo Negro, é responsável pelo trabalho de carregamento das estruturas dos shows, como caixas de som, cenários, entre outros equipamentos para a passagem de som de cada artista. É um trabalho braçal, pesado, que envolve a contratação também de outras 15 pessoas.
— Sem shows, eu fiquei sem trabalhar, mas também todo mundo que trabalha comigo. É uma cadeia muito grande, impactando muita gente. Passamos esse período com a ajuda das pessoas. Fizemos formaturas, eventos pequenos, mas agora esperamos que a retomada seja possível com a Festa da Uva. Entendo que as pessoas se vacinando e se cuidando é possível ser seguro — afirma.
Esse sentimento de retomada também é sentido por Moraes.
— É um serviço que está parado desde o último show na cidade. Para não passar fome, muitos desses profissionais precisaram trabalhar em outras áreas. Quando entro em contato com eles para contratar para a Festa da Uva, eles ficam eufóricos. Chegam até a chorar porque estão ansiosos em busca de uma oportunidade e a Festa está representando isso.
Em relação às críticas de quem entende que a programação não deveria ser realizada durante a pandemia, Moraes afirma que a agenda dos principais cantores do cenário nacional está praticamente lotada para essa época do ano em todo o país.
— Não estamos fazendo nada de diferente do que está acontecendo em outras partes do Brasil. Basta olhar para o Instagram dos artistas. Há shows em praticamente todos os finais de semana, com grande público. Não existem mais sábados disponíveis dos principais cantores para esse ano, só para 2023. Por que só Caxias não pode realizar shows? — questiona.
Os organizadores não divulgaram o número de ingressos vendidos para os shows.