Um robô-menino é capaz de amar e ser amado e aprende, não sem dor e sofrimento, a lidar com os sentimentos e conflitos que a condição humana pressupõe. Em outra tela, uma gigantesca rede mergulha as pessoas em uma ilusão tão perfeita que poucos são capazes de perceber que a vida real corre por debaixo das linhas de uma programação que a todos engana e escraviza. Foi assim que o cinema poetizou a revolução tecnológica que estava nascendo na vidara do século 21.
Os filmes Inteligência Artificial (2001), do diretor Steven Spielberg, e Matrix (1999), das diretoras Lilly e Lana Wachowski, são dois exercícios de imaginação para um futuro em que as máquinas finalmente superam o que só os humanos possuem: emoções, arbítrio, escolha e decisão.
Mais de 20 anos depois, as previsões do cinema se confirmam, mas de forma mais discreta e rotineira do que as cenas épicas das telonas. Recursos como a Inteligência Artificial, que ensinou o robô-menino a amar, e Realidade Virtual, por meio da qual a Matrix mantém a humanidade sob uma opressora ilusão, fazem parte do dia a dia das cidades, das empresas, das famílias. Aqui mesmo, na Serra, elas estão por toda a parte.
Não, você não vai topar com Keanu Reaves fazendo piruetas ao sair do shopping em Caxias do Sul. Essas ferramentas, ao contrário, estão muitas vezes onde a gente não as enxerga, tornando o cotidiano mais funcional e a nossa vida mais prática e, quem sabe, mais feliz.
"As máquinas não substituem as pessoas. Mas as pessoas que sabem trabalhar com as máquinas substituem as que não sabem. O caminho é a qualificação"
LEANDRO CORSO
Professor e pesquisador da UCS
Para o professor e pesquisador da área de Inteligência Artificial da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Leandro Corso, essa tecnologia já faz parte do cotidiano das pessoas em variadas modalidades, por exemplo, no uso do smartphone. O que se torna cada vez mais comum é o desenvolvimento de ferramentas específicas para empresas, transformando os negócios e revolucionando a forma como nos relacionamos com produtos e serviços. Segundo Corso, o Brasil tem polos de pesquisa e desenvolvimento em tecnologia que são referência mundial – a região da Serra é um deles.
— Buscamos sempre estar no topo da produção de conhecimento nessa área, o que favorece as indústrias, o setor de serviços e o ensino — destaca.
Qualificação é o caminho
A segurança de que as pessoas seguirão sendo imprescindíveis, aliás, é a mensagem mais contundente que fica tanto dos filmes quanto da vida em meio à tecnologia. Criadas para reduzir burocracia, orientar decisões, calcular riscos e reduzir perdas, as ferramentas de Realidade Aumentada e Virtual e Inteligência Artificial já fazem parte do nosso dia a dia, mas não como substitutas da inteligência humana – para qual ainda não se encontrou concorrente.
— As máquinas não substituem as pessoas. Mas as pessoas que sabem trabalhar com as máquinas substituem as que não sabem. O caminho é a qualificação — completa o professor Leandro Corso.
Cidades inteligentes até 2030
O Programa Inova RS, lançado recentemente pela Secretaria Estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia, identificou nas regiões da Serra e Hortênsias o potencial para serem referências globais em inovação nas áreas de indústria 4.0, turismo e cidades inteligentes até 2030.
O caminho para essa conquista é a educação tecnológica, o que deve incrementar a matriz econômica atual da região e também fazer surgir novas oportunidades por meio da integração entre poder público, empresas, universidades e sociedade civil. A UCS, por exemplo, é uma das universidades parceiras do programa.
Desde abril deste ano, três projetos estão em andamento: um deles, na área de Indústria 4.0, pretende integrar os agentes produtivos e promover a troca automática de informação com recursos como big data e Inteligência Artificial; um outro, na área de Turismo, se destina a implantar um Sistema de Inteligência Turística, com geração, coleta e gestão de dados para apoiar a tomada de decisões pelo trade; o terceiro trabalha para a formação de um hub de cidades inteligentes, que utilizam seus recursos com eficiência e usam a tecnologia a serviço do bem estar coletivo.
Na opinião do professor Leandro Corso, é fundamental que empresas e governos valorizem o conhecimento tecnológico e invistam em pesquisa para inovação.
— Aqui na Serra estamos no caminho certo, pois as empresas já compreenderam que, para ser mais competitivas, precisam investir em tecnologia — completa.
Revolução silenciosa na pesquisa
Dos laboratórios do Grupo Uniftec, em Caxias do Sul, saem algumas das ideias capazes de provocar pequenas revoluções por meio da tecnologia. Em uma das aulas do curso de Enfermagem, alunos atentos dissecam um corpo humano em seus pormenores. Com um bisturi descobrem órgãos, tecidos, lesões, investigam qual poderia ter sido a causa da morte daquele sujeito. Nada de anormal, exceto pelo fato de ninguém estar na presença de um cadáver verdadeiro.
A aula ocorre por meio de um óculos de Realidade Virtual, que mostra ao estudante as entranhas de um indivíduo, sem a necessidade de um corpo. Esse é o projeto que já toma forma no Laboratório de Anatomia Virtual da Uniftec, que prepara softwares de aulas para variados cursos da área da saúde como Fisioterapia e Odontologia. O programa já foi apreciado pelo Ministério da Educação e está homologado para uso. É claro que a realidade virtual não substitui o contato entre o paciente, o professor e o aprendiz, mas complementa de forma eficiente a necessidade de estudos e de prática dos alunos.
Quem também está saindo do mundo virtual para circular pelos corredores da instituição de ensino é Eliza, que até pouco tempo era somente o chatbot de atendimento no site do Uniftec e agora se prepara para ganhar forma física e passear por entre estudantes e professores. A ideia é que ela possa interagir por meio de voz e Inteligência Artificial. Quando um estudante quiser saber em que sala terá sua próxima aula, bastará perguntar à Eliza.
"A Serra pode puxar o Brasil para transformar os empreendimentos com as novas tecnologias"
PEDRO BOCCHESE
Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento do Grupo Uniftec
Outros projetos ocupam a agenda dos pesquisadores do Centro Universitário. Um deles, já em fase de testes, utiliza a Inteligência Artificial para identificar o humor dos funcionários e alunos. Com base em um banco de expressões faciais será possível decifrar o estado de espírito dos indivíduos. Em outro, veículos autônomos já estão sendo calibrados para circular dentro de indústrias e de condomínios fechados, entregando correspondências e transportando peças e implementos. No futuro, a ideia é digitalizar as ruas de Caxias do Sul para calibrar o veículo autônomo para que circule na cidade.
Para o diretor de Pesquisa & Desenvolvimento do Grupo Uniftec, Pedro Bocchese, as empresas precisam ter uma estratégia mais tecnológica e digital, sob pena de perderem a corrida da competitividade.
— Culturalmente, esperamos que as grandes empresas façam a transição para o ambiente tecnológico para, depois delas, pensar em investir. O fato, porém, é que a maioria dessas ferramentas é financeiramente acessível para empresas médias e, dependendo da tecnologia, até para as pequenas. Quando as pequenas e médias decidem implantar essas tecnologias, conseguem resultados mais rápidos e eficientes que as grandes. O caminho do futuro é esse — pontua.
Bocchese ressalta ainda que a região da Serra reúne os atributos para se destacar nessa área no cenário nacional: cultura de empreendedorismo, polo robusto de industrialização, com destaque para o setor metalmecânico, e arranjos produtivos sólidos, com o impulso de instituições de ensino e do poder público.
— A Serra pode puxar o Brasil para transformar os empreendimentos com as novas tecnologias — salienta.
Realidade virtual, eficiência real
Já imaginou construir uma máquina customizada, de altíssimo valor, sem os riscos de perder material ou tempo por erros na execução ou nos projetos? É neste mundo quase ideal que a Sumig, de Caxias do Sul, opera para desenvolver células robotizadas para solda e corte.
Por meio de Realidade Virtual, a empresa e o cliente visualizam uma maquete em tamanho real, na qual o robô simula todos os processos, demonstrando com precisão o funcionamento da célula depois de pronta. Nessa simulação, é possível detectar falhas de projeto e até implementar melhorias para o futuro desempenho da máquina.
Rodando há cerca de sete meses na empresa, a ferramenta de Realidade Virtual ainda não teve seus resultados aferidos em números de produtividade. Mas já é possível destacar a queda vertiginosa no desperdício e no retrabalho, especialmente da equipe de Engenharia, segundo o analista de Desenvolvimento e Automação da Sumig, Mateus Gaspary.
Entregar uma célula perfeita, no entanto, não é o bastante. Com uma ferramenta de Inteligência Artificial alimentada por dados enviados pela própria célula, instalada no cliente da Sumig, será possível mapear os processos e identificar os problemas na planta, propondo soluções. Ao longo do tempo, a ideia é gerar um banco de dados e treinar a Inteligência Artificial para ajudar o cliente na gestão da sua unidade, diagnosticando gargalos e falhas nas operações, melhorando a eficiência e a produtividade.
— Já temos tecnologia habilitadora para a Indústria 4.0. Nosso plano é ter uma Inteligência Artificial por trás disso, para que possamos gerar dados e ajudar nossos clientes na gerência da fábrica, no planejamento estratégico e até no uso da energia nas unidades. Tudo isso baseado em informações que as células podem fornecer — explica Gaspary, acrescentando que a expectativa da Sumig é ter dados suficientes para treinar o algoritmo em aproximadamente dois anos.
Simulação da vida real para aprender inglês
Por meio de um programa de realidade virtual, a startup de educação Beetools convida o aluno a trabalhar em uma empresa americana de tecnologia, em um modelo de storyliving. O aluno participa como protagonista da história, interagindo com outros personagens, desenvolvendo assim as habilidades de fala, escuta, leitura e escrita. A atividade em realidade virtual faz parte do currículo do curso, não sendo opcional ou lúdica – ao contrário, é imersão total em uma simulação de vida real, que aumenta o interesse do estudante e potencializa seu aprendizado.
— Pesquisas demonstram que a Realidade Virtual aumenta em até duas vezes a capacidade de concentração do aluno, pois desperta a sensação de viver uma experiência. Isso gera lembranças, memórias, o que possibilita um aprendizado mais sólido e de longo prazo — comemora o diretor Administrativo da Beetools, Tiago Fonseca.
Inteligência Artificial para contratar
Também foi em 2018 que a Metadados, empresa de soluções em recursos humanos e recrutamento, passou a utilizar Inteligência Artificial para a seleção de currículos para as vagas. De um grande universo de candidatos cadastrados, o algoritmo ranqueia os perfis mais compatíveis com as exigências de determinada vaga, enviando ao avaliador somente aqueles que realmente têm chance de contratação. Com isso, o trabalho burocrático de análise caiu muito, elevando o grau de eficiência e de assertividade nas contratações.
— A Inteligência Artificial leva em conta muitas variáveis para selecionar somente aqueles que se encaixam nas exigências da vaga. A ferramenta seleciona os candidatos compatíveis entre um universo imenso de currículos. A qualidade do profissional, essa sim, será avaliada por uma pessoa — explica Thiarlei Macedo, diretor executivo da Metadados.
Experiência imersiva para comprar imóveis
Ainda falando em proporcionar experiências, quem não gostaria de andar pelo seu apartamento mesmo antes de o prédio ser construído? Foi com o foco nesse mercado que a Studio 360 nasceu em 2018, propondo adicionar mais interatividade e experiência ao mercado imobiliário. O que começou como modelos de maquetes interativas destinadas às construtoras logo se subdividiu em um programa de Realidade Virtual por meio do qual o usuário navega no futuro imóvel em uma experiência imersiva e real, compreendendo de forma mais ampla os detalhes do projeto.
O contato próximo com as construtoras revelou outras necessidades, como uma plataforma, que por meio de Inteligência Artificial pudesse controlar os processos, desde o comercial até a execução das obras. Surgiu assim um dos produtos mais populares da Studio 360, que hoje atende mais de 150 construtoras nos três estados do Sul do Brasil.
— Vemos o pessoal testando as ferramentas e compreendemos que a relação com a tecnologia precisa ser simples e eficiente, como é o caso dos nossos programas. A Realidade Virtual, por exemplo, melhora as vendas dos corretores, pois dá a eles um poderoso argumento. O retorno tem sido muito positivo — revela Felipe Perini, CEO da Studio 360.