Fosse um personagem de um filme, a burocracia seria um tanto dissimulada. Para uma grande maioria, ela é uma vilã tenaz. Para outros, mais racionais, ela é uma forma de organização tradicional e importante. E, para os acadêmicos, ela deve ser aplicada e modernizada a partir da sua teorização. Porque só a sistematização pode dar conta de cumprir com o objetivo da organização, respeitando os demais atores envolvidos no processo, sem prejuízo de suas competências.
Dentro desse contexto esquivo, Idalberto Chiavenato, escritor paulista, professor e consultor administrativo defende: “Apesar de todas as limitações e restrições, a burocracia é talvez uma das melhores alternativas de organização, provavelmente muito superior a várias outras alternativas tentadas no decorrer do Século 20”.
No entanto, quando essa forma de organização encontra um ambiente político centralizador ou uma gestão pública emaranhada por leis que se sobrepõem umas às outras, a tendência é de que a burocracia emperre o desenvolvimento econômico. Para destravar esses nós, que vão ficando pelo caminho, diversos governos municipais têm revisado suas legislações a fim de deixar os processos mais fáceis e transparentes.
É o caso de Caxias do Sul. No dia 5, o prefeito Adiló Didomenico assinou o decreto que regulamenta a Lei de Liberdade Econômica no município, que tem por base a legislação federal, sancionada em 2019. Com ela, passa ser possível liberar as atividades de empresas de baixo risco assim que o CNPJ é emitido, dispensando o alvará, como já ocorre com os microempreendedores individuais (MEIs).
Contudo, para as atividades de médio risco, como é o caso de um restaurante, após o registro da empresa o alvará sanitário é emitido em caráter provisório, de 12 meses. Sendo que a inspeção será feita a partir de um ano.
Outra novidade, que entrou em vigor na semana passada, é que os MEIs não vão precisar mais procurar a prefeitura mensalmente para emissão de nota fiscal, pois o envio da documentação será no formato digital. Conforme Élvio Gianni, secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Emprego, de Caxias do Sul, essa ação vai fazer com que cerca de 2 mil microempreendedores, mensalmente, não precisem mais se dirigir à prefeitura para começar a emitir uma nota fiscal.
Liberdade econômica
A pandemia ainda está aí, atravancando o caminho, mas, para o prefeito Adiló Didomenico (PSDB), com o avanço da vacinação, Caxias tem condições de sair na frente quando a economia retomar a sua aceleração. Nesse sentido, entende que a Lei de Liberdade Econômica, sancionada no dia 5, servirá também como uma forma de estímulo ao empreendedorismo. O prefeito explica que, além da referida lei, uma série de outras ações e revisões da legislação serão fundamentais para o desenvolvimento do município.
— Primeiro, simplifica o processo. Segundo, por meio de novas leis, deixamos claro o que pode e o que não pode, para que o servidor tenha segurança jurídica das suas decisões. Na esteira disso, com a Lei de Liberdade Econômica, as empresas de baixo risco não precisam de alvará. As de médio risco terão uma autorização liberada no início, na base da boa fé. E, assim, o município deixa o empresário começar a trabalhar e faturar, e temos até um ano para fazer a fiscalização — explica Adiló.
Na mesma esteira, Élvio Gianni, secretário do Desenvolvimento Econômico, entende que a lei traz à tona uma via de dupla libertação. Primeiro, para o empreendedor, que tem uma legislação que pretende facilitar a sua vida. E, segundo, procurar tirar a angústia do servidor público, que se via em meio a um emaranhado de leis e regras dissonantes e ficava inseguro para tomar uma posição.
— Em conversas com os servidores, percebíamos que o atraso, muitas vezes, era da insegurança jurídica, e eles tinham receio de correr o risco de terem de passar por uma sindicância — explica Gianni.
O secretário revela ainda que a Lei de Liberdade Econômica vai facilitar o processo de abertura de cerca de 800 atividades cadastradas no CNAE (Classificação Nacional de Atividades Econômicas).
— Cerca de 700 delas são do grupo de baixo risco, que dispensa alvará — aponta.
No cerne da lei, está uma nova mentalidade, baseada na “presunção da boa fé”.
— É uma mudança de cultura muito grande. Partimos do pressuposto de que todos são corretos. O empreendedor que não for correto está sujeito às punições previstas. Mas é importante dizer que a primeira fiscalização é instrutiva. Ou seja, o fiscal vai avaliar se tem algo errado e vai conceder um prazo para que o problema seja corrigido. É uma fiscalização construtiva e não punitiva — justifica Gianni.
Menos burocracia
O volume de processos liberados pela prefeitura de Caxias do Sul, no primeiro trimestre, em relação ao mesmo período de 2020, aumentou em 110% na regularizações de imóveis, 16% na aprovação de novos projetos e 64% na expedição de habite-se.
Rompimento com o Brasil cartorial
Ruben Bisi é diretor Institucional da CIC Caxias e vice-presidente do Simecs, o Sindicato das Empresas Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Caxias do Sul e Região. Para ele, a Lei de Liberdade Econômica vai contribuir com a parcela de empresas que tem baixa e média complexidade. No entanto, ele ainda vê muitos entraves para quem deseja implementar uma fábrica, por exemplo.
— Uma das formas de atrair mais empresas é diminuindo a burocracia para a abertura de uma empresa. Hoje em dia, tem de se juntar uma série de negativas, e não só para abrir uma empresa, mas para comprar um bem, para alugar, para comprar uma máquina, para fazer financiamento no banco. Deveria haver uma comunicação melhor entre os sistemas do governo e da iniciativa privada, para que possamos estimular a abertura de novos negócios na base da confiança — diz Bisi, reforçando o novo conceito implícito na Lei de Liberdade Econômica.
Bisi cutuca ainda outro nó decisivo na questão da desburocratização. Para ele, o país tem ainda uma visão cartorial, que está baseada no tempo do Brasil Império.
— Vivemos em um Brasil cartorial, tudo tem de ter cópia, com assinatura registrada. Não basta levar uma cópia, tenho de levar uma cópia autenticada. Parece que estamos ainda na época do Império na questão da confiança. Mas temos de romper com o Brasil cartorial, para que venhamos a ter velocidade para fazer as mudanças necessárias — defende.
Semanalmente, Bisi participa de uma reunião com diversas entidades empresariais e a equipe do Ministério da Economia. Na pauta, o Custo Brasil e quais as sugestões e soluções que os empresários sugerem para a sua diminuição.
— Entre todos os participantes, sugerimos 1,8 mil alternativas para desburocratizar o país. O custo do Brasil é 30% maior em relação aos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) — menciona Bisi.
Compromisso estadual
Na última quinta-feira (15/4), o secretário de Desenvolvimento Econômico do Rio Grande do Sul, Edson Brum, esteve em Caxias. Recém empossado pelo governador Eduardo Leite (PSDB), Brum reuniu-se com Ivanir Gasparin, presidente da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços de Caxias do Sul (CIC). O secretário reconhece que sua responsabilidade na pasta é muito grande. No entanto, para além do fomento econômico, entende que é preciso fazer uma revolução interna na secretaria.
— Estamos nos propondo primeiro a desburocratizar e agilizar os processos internos de governo — revelou, Brum, ao elencar as prioridades.
Ao secretário, Gasparin ressaltou a da importância das ações de desburocratização e a criação de um ambiente mais amigável para os empreendedores e para o fomento de novos negócios no Estado. Também destacou a necessidade de o governo dar atenção às demandas de infraestrutura da Serra Gaúcha, que, no seu entendimento, aumentarão a competitividade das empresas e promoverão maior desenvolvimento econômico e social.
Lei da Liberdade Econômica
A prefeitura efetivou a Lei de Liberdade Econômica (nº 8.499) com uma série de benefícios para empresas consideradas de baixo risco, que estarão dispensadas de alvará para funcionamento.
Anteriormente, para um empresário abrir sua empresa, era necessária a vistoria do Executivo. A partir da nova lei, no caso de atividades de risco médio, a vistoria é feita, mas dentro de um prazo de um ano.
Além disso, a primeira vistoria será orientadora para atividades econômicas de médio risco, devendo ser lavrada notificação com prazo para adequação das irregularidades observadas. Enquanto isso, a empresa poderá estar aberta. Ou seja, com essa legislação, parte-se do pressuposto de que todos merecem de boa fé.
Diferentemente do antigo modelo, antes da Lei de Liberdade Econômica, em que se desconfia primeiro da idoneidade de todos, dificultando a abertura de empresas.
Como a tecnologia pode ajudar na diminuição da burocracia?
Gustavo Casarotto é diretor de Produto e Inovação na Metadados, instalada no bairro Cinquentenário, em Caxias do Sul. Sua empresa é referência no desenvolvimento de softwares para a área de recursos humanos. Por ser uma empresa do setor de tecnologia, revela que sofre demais com a incoerência de tantos processos, leis divergentes e exceções que confundem as regras no meio empresarial.
Apesar disso, Casarotto vê com bons olhos as intenções de desburocratização. Mas questiona: “para qual propósito?”
— Desburocratizar para quê? Se não for para melhorar a economia, não sei para que serviria. Porque um empresário como eu, que quer investir na cidade, precisa saber se a infraestrutura é boa e, se quando eu precisar de respostas do poder público, se eles me responderão prontamente. E se houver algum entrave, que seja rápida e objetiva a solução para a adequação. Além disso, é preciso segurança jurídica, também com agilidade e clareza — defende.
Casarotto avança em seu raciocínio e complementa:
— Agora, particularmente, entendo que é difícil para o governo conseguir desburocratizar. Porque a natureza da burocracia é a complexidade das leis e a falta de clareza. A tecnologia pode ajudar, mas só se os governos simplificarem as leis. Porque, se não, será só a digitalização de todo o emaranhado de leis e de burocracias. E uma tecnologia assim custa ainda mais caro — revela.
Case Florianópolis
A prefeitura de Florianópolis também já sancionou a lei e o decreto que simplificam o empreendedorismo em atividades de baixo e médio riscos. Além disso, conta Casarotto, o município tem uma política de incentivos à cadeia da tecnologia, com repasse de parte do ISS para um fundo de investimentos para startups.
— Florianópolis vivia do turismo e se tornou um polo de inovação. Hoje em dia, para cada R$ 1 que a prefeitura arrecada com o turismo, recolhe R$ 5, em impostos, com o mercado da tecnologia. A matriz econômica de Florianópolis mudou, porque isso foi feito de forma planejada — avalia.