Depois de 13 anos, entornar a curva que liga as ruas Augusto Pestana e Coronel Flores, em São Pelegrino, passou a carregar uma sensação de vazio para o empresário e jornalista Fabian da Costa. Nas noites recentes, o neon do letreiro do Mississippi Delta Blues Bar foi substituído pelo apagar das luzes do fim de uma era.
– Era o último reduto de música ao vivo, de rock’n roll, de blues, de tomar drinks e encontrar amigos com pensamentos afins. Deixa um vazio inestimável. Os meus amigos até comentaram que não têm mais para onde ir agora que o Mississippi fechou – comenta Fabian, frequentador recorrente desde o início das atividades, em 2006.
O fim, no entanto, já era ensaiado. O próprio fundador, Toyo Bagoso, reconhecia que os tempos já não eram os mesmos e a pandemia de coronavírus representou o esgotamento das possibilidades para decretar o fechamento do estabelecimento.
A narrativa, por mais que indique o encerramento comercial do empreendimento como negócio, tem um impacto simbólico muito maior. O Mississippi foi praticamente o alicerce da identidade cultural que se estabeleceu naquela região, conhecida como Estação Férrea (ou Largo da Estação Férrea), que na última década consolidou-se como referência da vida noturna na cidade, mas hoje é ameaçada pelos efeitos econômicos da pandemia. A região funciona como um organismo comercial, a poucos minutos do Centro e com universidade próxima, pode atrair tanto estudantes depois da aula, quanto diferentes perfis de público em razão da diversificação dos estabelecimentos. Ali é possível jantar, ir para o “aquece” em um bar ou conveniência e terminar a noite numa festa, cuja rede era capaz de acolher todos os públicos.
Antes da pandemia, 14 casas noturnas, bares, restaurantes e casas de eventos da região empregavam mais de 160 pessoas, podendo superar até 200 trabalhadores em finais de semana mais movimentados.
Indiretamente, a cadeia era ainda maior, quando eram contratados artistas e terceirizados para atrações diferenciadas. O Mississippi, por exemplo, promovia shows de terças a sábados com músicos, gerando, portanto, renda à classe artística.
A região pulsante, no entanto, vem perdendo sua força em razão dos efeitos da pandemia. Após o anúncio de fechamento do Mississippi, outros dois locais devolveram as salas locadas: os restaurantes Uma-yoo e La Cantinetta del Mulino. O Uma-yoo demitiu todos os funcionários e ainda avalia possível retorno (apenas por delivery), e La Cantinetta del Mulino passa a fazer parte do Mulino Cucina (do mesmo proprietário), para atender ao meio-dia e tardes.
Os cerca de 165 empregados que exerciam a força de trabalho entre a rede de estabelecimentos foram reduzidos para menos de 25. Para os empresários, o futuro é tão incerto quanto o presente. Tudo depende de quanto durar a epidemia. Além das três baixas já concretizadas, pelo menos quatro estabelecimentos declararam risco de fechamento.
– Sexta-feira passada estávamos na frente da Level com os entregadores e falamos: essa hora a fila da Level já estaria se formando. Bateu uma tristeza ver os estabelecimentos fechados e nenhuma alma viva por ali – desabafa a sócia-proprietária da Level e do Doca, Lidia Ribeiro.
Apesar da apreensão, dos 14 estabelecimentos consultados pelo Pioneiro, sete deles reiteraram fôlego para aguentar até o fim do ano e continuar a tornar a Estação Férrea a referência da noite caxiense.
– Recebemos notícias de lugares fechando e é muito triste, pois a gente sabe a dedicação para se manter. Acredito que mais lugares vão fechar, mas futuramente outros vão abrir. Desejo que os gestores desta cidade possam enxergar que cultura, turismo e o entretenimento giram a economia assim como a indústria. Precisamos fazer Caxias ver isso, e não somente a Estação Férrea, como outros lugares também precisam de atenção – defende Lidia.
Sem previsão de volta
A agonia das casas noturnas deve perdurar, afinal, o segmento deve ser o último a obter liberação para a retomada, pois se caracteriza pela aglomeração de pessoas.
O vice-prefeito de Caxias, Elói Frizzo (PSB), reconhece que não deve ser decretado o retorno do setor tão cedo, mas reitera que a decisão é do Estado.
– A gente está limitado à orientação estadual. Em nível de cidade, só podemos ser mais restritivos e não mais liberais. Mas sem dúvidas serão os últimos a voltarem. Nos resta ficar na expectativa. Se formos basear nos demais países, a tendência é de que julho comece a reduzir um pouco.
Boa parte dos consultados pelo Pioneiro, no entanto, acredita que o retorno efetivo das atividades do setor só deve ocorrer a partir de agosto.
Otimismo e resistência
Fechamentos são decorrentes de oscilações naturais do mercado, que se acentuam em épocas de crise. Se a Estação Férrea de Caxias acaba sendo um microcosmo do que ocorre em todo o mundo, em resposta à inevitável retração econômica produzida pela pandemia, restam a esperança e a união.
– Eu tento ser sempre otimista. Quando o desespero aparece na porta, eu mando ele embora, quando estou desanimada, meus sócios me animam e assim eu com eles. Nossos funcionários estão constantemente em contato conosco nos dando apoio, assim como também nós com eles. Estarmos seguros, e ver nossa equipe e os clientes seguros é ter certeza de que não tivemos prejuízo e que o que estamos perdendo agora, vamos ganhar lá frente de uma forma ou outra – defende Lidia Ribeiro, que é sócia-proprietária de três empreendimentos na região da Estação Férrea.
Prejuízo, inclusive, é um termo que ela busca manter distante do vocabulário do atual momento:
– Não falamos muito sobre o que estamos “perdendo”, pois estamos sempre falando no que vamos fazer quando abrir, que festa faremos, como será a decoração, como faremos as embalagens dos novos produtos, o que terá na lojinha que vamos lançar, que cor vamos pintar a parede, e por aí vai.
Já a visão do empresário Gustavo Gazzola é convicta de que, por mais que os abalos aconteçam, a Estação Férrea persistirá sendo referência da vida noturna na cidade:
– Pandemia teria que perdurar por muito tempo para quebrar os estabelecimentos. Não vejo outro lugar para acolher essa estrutura para a vida noturna, e ela vai sempre acontecer – destaca Gazzola.
A estação
O futuro da estação
Confira o impacto e a perspectiva de cada estabelecimento com apelo noturno da Estação Férrea:
COM RISCO DE FECHAR
Sorriso Lindo
Lanchonete e bar localizados na Rua Os Dezoito do Forte.
:: Situação: funcionando parcialmente. Faturamento caiu 90%.
:: Funcionários: 8 (antes da pandemia). Todos demitidos. Família e amigos ajudam no atendimento atualmente.
:: Futuro: incerto. A intenção do proprietário é manter o negócio
"Reabri depois de 60 dias, mas tive de pegar dinheiro emprestado, perdi mercadoria. Tomei mais de R$ 100 mil de prejuízo nesses dois meses. Vivo disso, não posso fechar. Vou tentar resistir ao máximo, mas não está fácil”. Roberto Silva dos Santos, proprietário
Mulino Cucina
Restaurante contemporâneo fundado em 2012, localizado no Moinho da Estação.
:: Situação: atividades suspensas. Nas próximas semanas, deve começar a operar por sistema de delivery.
:: Funcionários: 5 (antes da pandemia). Mantidos.
:: Futuro: incerto. Deve expandir atendimento para durante o dia, absorvendo a demanda da La Cantinetta del Mulino, que funcionava em complemento e foi desativada.
“Corremos o risco (de fechar). Todo mundo corre esse risco. Mas atualmente eu dependo mais que os clientes venham até restaurante. O movimento caiu 80% desde o início da pandemia”. Rodrigo Eberle Ferreira, proprietário
Bulls
Estabelecimento com apelo de música sertaneja, localizado na Augusto Pestana.
:: Situação: atividades totalmente suspensas. Eventos marcados na agenda para 60 dias foram cancelados.
:: Funcionários: de 80 a 100 (antes da pandemia). Todos demitidos.
:: Futuro: incerto, reabertura dependerá do tempo que perdurar a pandemia
“Não temos como decidir nada ainda pela incerteza do que vai acontecer com o mercado. Nem de abertura, nem de fechamento. Seria irresponsável até abrir casa noturna neste momento.” Airton Martins, proprietário
Level
Casa noturna com apelo LGBT Friendly.
:: Situação: lives com DJs tradicionais da casa. Funcionam com venda de pizzas no momento (delivery).
:: Funcionários: 10 (antes da pandemia). Apenas um foi demitido. 90% da equipe foi afastada e está recebendo auxílio do governo. O restante foi remanejado para trabalhar na Level Coffee Store.
:: Futuro: incerto. Depende de até quando durar a pandemia.
“Dizer que não há possibilidade de fechar a Level seria uma grande mentira. Sim, existe essa possibilidade. Mas, obviamente, estamos trabalhando incansavelmente para que essa realidade não bata na nossa porta.” Lidia Ribeiro, sócia-proprietária
DEVOLVERAM AS SALAS
La Cantinetta del Mulino
Extensão do Mulino Cucina, foi inaugurado em meados de 2018, servia refeições ao meio-dia e happy hour.
:: Situação: fechou.
:: Funcionários: 5 (antes da pandemia). Mantidos para trabalhar na Mulino Cucina.
:: Futuro: atendimentos serão absorvidos por Mulino Cucina, cujas atividades estão suspensas no momento. Expectativa é de que volte a funcionar no sistema delivery nas próximas semanas.
“Fomos bem impactados e o movimento já estava baixo, Eu servia 150 refeições e nos últimos dias estava servindo 12.” Rodrigo Eberle Ferreira, proprietário
Umai-yoo
Sushi bar. Localizava-se na Augusto Pestana, junto ao Café de La Musique.
:: Situação: fechou.
:: Funcionários: 7 (antes da pandemia). Todos foram demitidos
:: Futuro: estabelecimento avalia possível retorno.
“Já estávamos mal das pernas, e a pandemia veio para terminar com isso. Caiu mais de 80% do faturamento. Não tem como sobreviver. A ideia é continuar com delivery, mas estamos ainda avaliando se temos força.” João Carlos Ferreira, sócio-proprietário
Mississippi Delta Blues Bar
Tradicional bar de Caxias do Sul, fundado em 2006.
:: Situação: fechou.
:: Funcionários: 12 (antes da pandemia). Todos foram delsigados.
:: Futuro: empresa deve dedicar atividades em filial no Rio de Janeiro e, em Caxias, apenas promover o tradicional festival de blues.
“Não deu para segurar, a falta de atenção do poder público prejudicou muito a Estação Férrea.” Rodrigo Parisotto, sócio-proprietário
VÃO RETORNAR
Zero54
Casa noturna localizada junto aos trilhos.
:: Situação: funcionamento suspenso. Atualmente realiza lives esporádicas. Nas apresentações, são vendidos drinks (delivery).
:: Funcionários: 25 (antes da pandemia). 60% foram dispensados.
:: Futuro: deve começar a funcionar como delivery de refeições a partir de julho. O estabelecimento não deve fechar as portas.
"Desde que começou a pandemia na China, decidimos não fazer investimentos que íamos fazer, seguramos uma grana e veio a calhar neste momento. Chegou um momento que não conseguimos segurar tudo que achávamos e tivemos que demitir alguns funcionários. Mas não é alternativa fechar o 'Zero'”. Gustavo Gazzola, sócio-proprietário
Doca
Bar inspirado nos “beer gardens” (com ambientação composta por plantas) europeus.
:: Situação: funcionamento suspenso.
:: Funcionários: 6 (antes da pandemia). Todos os empregos foram preservados. 90% da equipe foi afastada e está recebendo auxílio do governo. O restante foi realocado para trabalhar na Level Coffee Store.
:: Futuro: pode reabrir nas próximas semanas com limitação de público.
“Já poderia estar operando, pois também configuramos como restaurante, mas optamos por manter fechado. Estudamos abertura nas próximas semanas, de forma segura e reduzida. Acreditamos que fechar as portas não será uma realidade.” Lidia Ribeiro, sócia-proprietária
Casa do Comendador
Casa de eventos localizada na Coronel Flores com capacidade para até 100 pessoas.
:: Situação: aguarda decreto com especificações para retomada das atividades. Eventos foram cancelados ou transferidos.
:: Funcionários: nenhum. Só a proprietária administra o funcionamento.
:: Futuro: não fechará.
“Tranquilo ninguém está, porque precisamos de receita, mas pretendo continuar, até porque tenho compromissos assumidos.” Marli Trentin, proprietária
Café de La Musique
Localizado na Augusto Pestana, local era alugado para eventos sociais e empresariais e sediava festas mensais.
:: Situação: sem previsão de volta. Desde o início da pandemia, entre 15 e 20 eventos foram transferidos para o fim do ano.
:: Funcionários: 5 (antes da pandemia). Quatro foram demitidos
:: Futuro: tendência é voltar após a pandemia.
"Hoje é dificil dizer, pois a pandemia é algo que nunca passamos, então tudo é incógnita, mas esperamos voltar após isso. Muitas pessoas estão marcando eventos para o final do ano, isso causa otimismo." Leo Zanotto, proprietário
Cachaçaria Sarau
Bar voltado a drinks e com amplo mix de cachaças.
:: Situação: aguarda liberação. Proprietários optaram por não funcionar como restaurante.
:: Funcionários: 4 (antes da pandemia). Todos foram demitidos.
:: Futuro: esperam reabrir nas próximas semanas, mas garantem funcionamento após a pandemia.
“Não acho que corro risco de fechar o negócio, pois conto com auxílio familiar. Meu pai me ajuda. E investi uma fortuna na ampliação. Quem vai me pagar? Presidente não, nem a prefeitura. Tenho de me segurar.” Roque Pelizzer, proprietário
Tsuru
Sushi bar. Funciona há cerca de um ano no complexo do Moinho da Estação.
:: Situação: funciona com atendimento delivery e presencial (com restrições). Movimento, entretanto, diminuiu 70%.
:: Funcionários: 14 (antes da pandemia). Oito foram demitidos.
:: Futuro: deve permanecer operando.
“Não está fácil, mas vamos manter até final do ano, porém, tudo depende do cenário. A Estação estar fechada prejudica, as demissões em massa também, deixou o pessoal sem dinheiro.” William Silva, proprietário
Bar da Patroa
Conveniência na Coronel Flores que angaria público antes de festas das casas noturnas. Funciona há dois anos.
:: Situação: funcionamento suspenso.
:: Funcionários: 2 (antes da pandemia). Um foi demitido.
:: Futuro: intenção é manter estabelecimento em funcionamento após a pandemia.
“Não pretendo fechar, pois é um trabalho que gosto muito, mas tudo depende da situação. Com faturamento 80% menor, não tem como jogar para frente as despesas. Se não for abonado o aluguel, vai ficar complicado. Não tenho como pagar aluguel integral de uma coisa que ficou fechada e não é culpa minha”. Marinêz Avrela, proprietária