Quando o cenário se acomodar com eventual controle da pandemia, o que prevalecerá na relação entre empregado e empregador? Direitos adquiridos do trabalhador correm o risco de serem flexibilizados? E as mudanças aderidas durante a crise, podem se efetivar em uma nova configuração de contrato de trabalho? São perguntas que talvez não ganhem a devida atenção em um momento de franco enfrentamento da pandemia e seus estragos, como o atual, mas que certamente renderão reflexão aos agentes envolvidos na dinâmica das relações de trabalho.
Semana passada, o Senado aprovou a medida provisória 936 (MP 936), em vigência desde abril, no início da pandemia. A medida permite às empresas reduzir a jornada de trabalho com a diminuição proporcional de salários e suspensão de contrato de trabalho, entre outras excepcionalidades para o período de calamidade pública.
As medidas são defendidas pelo governo federal como a alternativa encontrada para preservar empregos. Ainda assim, suscitam o questionamento: não correm o risco de se tornar precedente para um novo debate acerca dos direitos trabalhistas, com mais restrições a direitos dos trabalhadores? E como ajustar esses direitos, ou flexibilizá-los, que é a palavra mais sensível, para adaptar-se a uma realidade mais moderna, mas preservando relações justas de trabalho?
Questões como essas são respondidas pelos primeiros entrevistados da série Futuro da Economia, que abordam o tema relações de trabalho: a pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, Paula Freitas de Almeida, e o coordenador do Conselho de Relações do Trabalho da Fiergs, Thomaz Nunnenkamp.
O único consenso entre eles é de que as relações de trabalho devem, sim, ser impactadas pelos efeitos econômicos da pandemia. Se, para Paula, mecanismos de favorecimento aos empresários previstos na reforma trabalhista aprovada em novembro de 2017 tendem a precarizar a situação dos trabalhadores, para Thomaz, o uso mais efetivo da legislação deve dar fôlego aos empregadores.
PAULA FREITAS DE ALMEIDA
Pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit/IE/Unicamp)
FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO
“Teremos encolhimento da economia, e tende a pressionar por uma flexibilização cada vez maior dos direitos trabalhistas. A covid apenas aprofunda. Não é uma coisa que está sendo inaugurada pela covid. A gente enxerga como um processo de desregularização. A proposta de reforma trabalhista de 2017, a despeito dos argumentos de gerar emprego, que não se concretizaram, essa situação agora só vai agravar. E isso vai ter impacto, mais uma vez, para a desnivelação social. O que está acontecendo é a pressão para que parte dessas transformações da MP 936 sejam incorporadas em caráter mais definitivo. Os acordos de redução de jornada e remuneração só vêm aprofundando. As medidas provisórias são sempre no sentido de subtração de direitos. Ainda que alegue fazer rearranjo social para tentar manter emprego, não é o que observamos, e sim o crescimento do desemprego, e isso deve afetar nas relações de trabalho, tornando mais comuns arranjos como redução de jornada, de remuneração, desligamentos massivos, rearranjo de contratos. Está sendo feita grande feira dos direitos trabalhistas durante essa pandemia.”
POSTOS EM SERVIÇOS E SUBOCUPAÇÃO
“A desindustrialização como a que o Brasil está passando tem efeitos concretos com perda de postos formais e uma pressão (para empurrar trabalhadores) para áreas onde as relações de trabalho são menos estruturadas. Na área de serviços, por exemplo, onde se tem relações de trabalho mais precárias, com menos proteção de direitos, por ser algo mais fragmentado, que tem rotatividade grande. É um processo de deterioração que expressa perda de direitos no trato ombro a ombro da contratação, isso quando não parte de relações informais, sem carteira assinada, sem observar o conjunto de direitos, como folgas, intervalos, o não recolhimento do FGTS, não pagamento do INSS, fazendo o trabalhador perder a rede de proteção social. Estamos partindo para a deterioração de um sistema social de proteção do trabalhador. Já tivemos esse movimento com as reformas trabalhista e da Previdência, e não existe perspectiva de resgate. Historicamente, o resgate das condições de trabalho é feito com investimento público com política de transferência de renda, mas o que vemos no Brasil é que essa transferência de renda vem acompanhada de muita corrupção.”
RISCOS DA NEGOCIAÇÃO INDIVIDUAL
“É uma desregulação deixar que as partes individualmente negociem (termos trabalhistas). A gente sabe muito bem que não se negocia quando se está com fome, você aceita o que é dado, não é um processo de negociação. É isso o que estamos assistindo acontecer, trabalhadores que não encontram posição no mercado formal de trabalho e que sucumbem às pressões de empregadores para extinguir esse vínculo e migram para uma área que é de trabalho informal. São estratégias de sobrevivência, não propriamente trabalho. Hoje, com governança neoliberal, tende a levar ao limite transferir para o indivíduo a responsabilidade de dar conta de si mesmo dentro de todas as demandas, saúde e educação é privatização (proposta como solução), e assim sucessivamente. E isso repercute porque, se o salário está sendo pressionado para baixo, eu preciso mais dos serviços públicos, óbvio que não tenho condições de arcar integralmente com isso. Porém, estamos num movimento contraditório, ao mesmo tempo que pressiona para baixo, pressiona para a privatização dos serviços públicos.”
RESGATE DA FORÇA SINDICAL
“A gente tem assistido o resgate do diálogo e de uma participação sindical mais organizada. Houve, durante a reforma (trabalhista), uma certa dificuldade de entender o que estava acontecendo e a própria reforma enfraqueceu muito os sindicatos. Quando a precarização chega, por mais que trabalhadores estejam em condição de fragilização, é quando surge maior necessidade de se criar rede de apoio. Se falta apoio institucional, se falta proteção social, é aí que atores de representação coletiva podem se apropriar desse vazio institucional e tentar reconstruir as bases para a atividade sindical. É claro que cada profissão tem suas particularidades e cada categoria tem maior ou menor força de mobilização, mas se percebe que esse movimento está mais forte do que antes. A longo prazo, é difícil dizer, porque depende qual será a orientação de governança. A saída é coletiva. Individualmente, não tem como enfrentar o arranjo institucional-governamental. Não tem como enfrentar um empregador que vai gerenciar a sua relação de trabalho de acordo com os interesses dele. A ação individual de resistência é a escolha pela associação coletiva. A pressão social é que faz surgir a construção do direito.”
THOMAZ NUNNENKAMP
Coordenador do Conselho de Relações do Trabalho da Fiergs
REFORMA SINDICAL
“Os sindicatos dos trabalhadores, no mundo inteiro, vêm perdendo força. Essa questão de reforma sindical não foi enfrentada, mas vai ter de vir, não é possível a gente conviver com quase 20 mil sindicatos laborais e patronais. Vai haver uma fusão, incorporação ou extinção. A maioria vivia em cima de uma contribuição obrigatória que não existe mais. O que não pode é que toda nossa estrutura sindical vem da década de 1930, com clara inspiração fascista, da Itália, onde o governo tinha total controle, dava carta sindical ou não. Ainda é assim hoje, só permite um sindicato num lugar, dá o cartório para aquele grupo. Temos de encarar e mudar isso. Acho que toda a área da representatividade já estava mudando e essas questões pela covid vão só acelerar (as mudanças). A nossa representação vai ter de se reinventar, dos dois lados (laboral e patronal).”
ACORDOS TRABALHISTAS
“Eu acho que a estrutura como estava não atende mais os desafios do mercado de trabalho moderno. Teletrabalho está vindo forte, o trabalho parcial, tem muita gente que talvez não queira trabalhar em turno integral. Tem outros formatos de contratos que podem atender. Muitas vezes existem ilusões, até países que têm legislações bem protetivas têm série de contratos bem diferentes. O que tínhamos antes não funciona mais. Vamos ter que achar um meio termo. As relações de trabalho vão ficar cada vez mais abertas. Tem gente que vai querer trabalhar meio turno, outros em casa, outros por projeto. Temos que criar arcabouço legal para isso. A visão que temos da CLT, que tem mais de 75 anos, não é o quadro que temos hoje. O que não vai contra direitos constitucionais têm de valer, e que tenha um acordo estabelecido. Não é nem questão de ser prejudicial, é algo que serve para os dois lados. Temos legislação ainda muito pesada e com muitos detalhes que tornam ela custosa e difícil de atender. A negociação entre o próprio empregado e o empregador veio para ficar. Hoje o trabalhador está qualificado e muitas vezes não é fácil manter ele, então tu tem que negociar. “
AUTONOMIA PARA TRABALHADORES
“Acho que vamos ter de avançar, não necessariamente tirar direitos, mas empoderar o trabalhador. Hoje a população tem nível de esclarecimento, de informação, muito maior. Claro, existem alguns trabalhadores que precisam de ajuda, mas é uma minoria e a lei já coloca analfabetos, menores de idade (entre os necessitados de assistência), o resto tem condição de saber. Quando o mercado está sofrendo como agora, claro, o poder de barganha do trabalhador diminui, mas a empresa também está com dificuldade. Eu brinco que quem escolheu a CLT, isso é fato, foram intelectuais da época que nunca pisaram dentro de uma indústria, dentro de um negócio. Eu acho que eles assistiram aquele filme “Tempos Modernos”, do Carlitos (Charles Chaplin) umas quatro ou cinco vezes, porque a visão é aquela: o trabalhador é bonzinho, é sempre bem-intencionado, e o malvado é a empresa. Isso não existe mais. A saúde é dever do Estado e direito do povo, poxa, Estado não tem como te dar saúde, tem como te dar assistência. Se você não atuar com hábitos de higiene, distanciamento social, você vai acabar contaminado e contamina os outros. Temos de empoderar de novo o indivíduo, ele tem de estar ciente de que é parte do problema e da legislação. E na legislação ele ainda é tratado como infantil e incapaz e não é.“
EMPREENDEDORES TRAUMATIZADOS
“As empresas não conseguem fazer ajuste, quebram e não têm como contratar. Existem alguns direitos, a multa de 40% no FGTS, por exemplo, o FGTS foi criado justamente para todo o mês a empresa depositar o fundo, que já é uma multa – “tô te pagando para que, se um dia tu sair, você vai ter esse dinheiro”. Aí criaram a multa da multa, que são os 40%. Isso fica muito caro, as empresas pensam 10 vezes antes de contratar um cara, tu contrata alguém e já está devendo. Quem teve um negócio pequeno ficou desesperado para achar uma solução e poder pagar os encargos, tem gente desonesta, mas a maioria dos empregadores são honestos. Mas muitos se descapitalizaram tremendamente e não vão conseguir voltar e outros vão ficar receosos, pois fizeram tudo que tinham que fazer e às vezes tem reclamatória pedindo algo que ele não consegue provar que não devia. Esse fica ressabiado e não quer voltar a empreender nunca mais.”