Em um trailer estacionado no posto da Garibaldi esquina com a Tronca, a jovem Lourena, então com 18 anos, vendia lanches preparados por ela e pelo marido Amélio Fiorio. O pequeno negócio do casal levava nome de Texakão, em alusão ao posto Texaco da esquina. Mas o sotaque carregado de Lourena, típico de quem nasceu na colônia, acabou rebatizando o estabelecimento, hoje um dos mais tradicionais de Caxias do Sul: o Xis da Gringa
— Chamavam o Amélio de "gringo". Daí, começaram a me chamar de "gringa" também. E pegou — conta.
Vinda de Nova Milano, interior de Farroupilha, Lourena Pola Fiorio pouco entendia de xis. A vida na roça era capinar, plantar e colher. E cuidar dos animais que a família criava. Mas ela gostava de cozinhar — e precisava aprender a fazer os lanches, afinal, aquele passaria a ser o sustento dela e do esposo.
Em outubro de 1975, oito meses após a abertura do "food truck", Amélio e Lourena casaram e ela passou a integrar oficialmente a “equipe de dois”. De lá pra cá, o Lanches da Gringa passou por três endereços até se estabelecer no atual, na Rua Carlos Bianchini, 694, no limite entre os bairros Marechal Floriano e Santa Catarina. E matou a fome de xis de muita gente.
— Os clientes que viraram o mundo e voltaram para Caxias, o que me dizem? Nada de luxo, mas a qualidade continua a mesma. Já estou satisfeita com essa palavra — diz Lourena.
Qualidade dos produtos, aliás, é indispensável para a Gringa. A matéria-prima precisa ser de primeira e a elaboração do lanche, também, caso contrário, ela prefere nem servir para os fregueses.
— Já vi a Lourena jogar lanche praticamente pronto fora porque não estava bom — conta o genro Micael Moura.
— A maior virtude dela é ser honesta, ser certa. Ela não vai moer uma carne ruim para ter lucro — acrescenta o cunhado e sócio Gilmar Peters.
— Sou muito exigente — reconhece Lourena.
Filho mais velho
Lourena é tão exigente quanto dedicada. Quem convive com ela é unânime em dizer: vive para o trabalho. Todo os dias, ela está a postos às 10h – ou até antes. Passa o dia na função para que tudo esteja pronto no final do dia, quando o estabelecimento abre as portas (o xis abre ao meio-dia somente aos sábados).
— No último sábado, cheguei atrasada meia hora — conta Lourena.
— Depois de tantos anos, mãe, pode chegar meia hora atrasada — brinca a filha Patricia.
— Não. O exemplo vem de mim — responde, séria.
Lourena é tão apegada ao negócio da família que o genro brinca que o xis é seu filho mais velho. Ela concorda.
— Sou muito dedicada a isso aqui. Se eu tivesse um colchão, um banheiro para tomar banho, eu viveria 24 horas aqui dentro — revela Lourena, que mora no andar de baixo da empresa e só vai para casa dormir.
"Ela é uma mulher muito forte"
Amélio, assim como Lourena, era do interior de Farroupilha. Os dois se conheceram em um baile na localidade de Caravagginho. Amélio se encantou com Lourena e foi procurá-la na missa em Nova Milano. Namoraram por três anos. O início do casamento foi focado no trabalho. Eles combinaram em não ter filhos logo até o negócio estabilizar – Patricia, a princesa do casal, chegou somente em 1991.
Mas com 10 anos de casados, Amélio caiu em um hospital. Estava com trombose e o quadro era delicado. Lourena teve que se virar em duas: cuidar do marido e do Xis (a casa de lanches). Em meio a um turbilhão, deu um peitaço: comprou o terreno onde hoje está o Lanches da Gringa, no Marechal Floriano:
— Ele estava na UTI em 1985, em coma, para morrer. E eu vi uma placa de "vende-se" aqui. Custava 60 milhões, mas eu só tinha 40. "Mas vai ter a Festa da Uva", pensei. Na semana seguinte liberaram ele da UTI e eu contei que ia comprar. "Lourena, não faça isso, não vamos conseguir pagar", ele disse. "Vamos, sim", respondi. Pedi para o médico segurar o que eu devia e vendi a casa na Cohab (Santa Lúcia). Veio a Festa da Uva e eu consegui pagar. Eu tive coragem que eu não sei se teria hoje.
Amélio se recuperou, mas, anos depois, voltou a ficar doente. Desta vez, pancreatite. O marido sugeriu, então, que ela buscasse ajuda. Foi aí que propôs sociedade à irmã Carmen e ao cunhado Gilmar.
— A doença do Amélio foi um dos motivos que fez ela buscar a gente na colônia. Foi uma batalha muito grande — relembra Carmen Pola Peters, 53.
No início dos anos 2000, Amélio entrou na rotina da hemodiálise –— ele tinha uma doença autoimune que o deixava vulnerável. Em 2006, faleceu.
— Nunca pensei em parar. O que conseguiu me manter foi isso aqui. Me agarrei no trabalho — diz Lourena.
— Ela é uma mulher muito forte. Eu não sei se seria tão forte — admira-se Carmen.
Profissional
Há 30 anos, quando Lourena foi procurar a irmã e o cunhado para serem sócios do Lanches da Gringa, Gilmar Peters não fazia ideia de como se fazia xis.
— Eu só sabia plantar, capinar, podar uma parreira, cortar o mato — diz.
Com o tempo, aprendeu a preparar e a montar os lanches e hoje se orgulha de como sabe cortar direitinho um pão de hambúrguer. Se orgulha também das conquistas e agradece diariamente pela oportunidade:
— Ela me tirou da roça e me aconchegou. Foi mais que cunhada. Foi irmã, foi amiga.
Apesar disso, Lourena não deixa de cobrar quando precisa. Peters define a cunhada como uma pessoa muito profissional.
— Se tu fizer algo errado, ela não vai te passar a mão na cabeça.
Proprietário da Panificadora CRB, Luiz Fernando Bolsonelo, também enxerga em Lourena o profissionalismo como uma das principais qualidades — e ele conhece bem a Gringa, pois são 32 anos fornecendo os pães de xis e cachorro-quente para o estabelecimento.
— Ela é bem profissional, muito correta. Acho que esse é o segredo do sucesso dela — avalia Bolsonelo.
O xis da Lourena
Nenhum xis entra no cardápio sem Lourena provar antes. Controle de qualidade, ela dá o aval ou não. O xis de batata-frita, lançado em fevereiro para marcar o aniversário da casa, teve o ok da Gringa, porém, ela deixou claro que não podia faltar o sal na batata.
O preferido dela, entre as diversas opções, é um bem simples, o "Xis Lourena" — que não está no menu da casa.
— Gosto do meu pãozinho, do meu bifezinho com queijo. O dia que não boto queijo, boto ovo. É o meu xis. Boto às vezes cebola, banana com queijo e ovo.
Caseira
E quando a Lourena não está trabalhando, o que gosta de fazer?
— Dormir — responde, às gargalhadas.
— Gosto de dormir, visitar minha gente ou ir para a chácara. No terceiro domingo do mês, a gente não abre, então vou para a chácara e fico na segunda-feira também. Mas ultimamente tenho gostado de ficar na minha casa — completa.
— Acho que ela está numa fase que está preferindo o sossego — acrescenta a filha Patricia.
Carmen entrega que a irmã sempre foi caseira. A muito custo, a família a convenceu a passar a Páscoa deste ano, no dia 12 de abril, na praia.
— Ela não gosta de barulho. Ela sempre diz que é feliz sozinha na casa dela — conta a irmã.
Vinte anos de casa
Oderlei André Orlandin tinha 18 anos quando foi contratado pelo Lanches da Gringa — a mesma idade que Lourena tinha quando começou o negócio com o esposo. Ele iniciou servindo bebidas para os clientes e, por necessidade, virou chapeiro.
— A Lourena ficava na chapa, mas um dia precisou ir ao hospital para ver o marido e eu disse: "vai tranquila que eu assumo". E, desde, então não saí mais da chapa — conta.
Em julho, Orlandin completa duas décadas de casa. Entre os 17 funcionários, é um dos mais antigos, e considera Lourena não apenas uma chefe, mas uma segunda mãe.
— Ela sempre me ajudou. Tive momentos difíceis, principalmente quando me separei, e ela sempre me deu conselhos. É um ombro amigo. Ela tem aquele jeito de gringa, fala alto, as pessoas que não conhecem até podem fazer um julgamento errado, mas é amiga de todo mundo — elogia.
Coração de mãe
Filha de Delmina e Genuíno, Lourena nasceu em 13 de abril de 1957. É a do meio entre nove irmãos. Cinco anos mais nova, Carmen lembra de dividir a cama com ela até Lourena sair de casa. Também recorda das brincadeiras que aprontava com a irmã:
— Quando ela namorava o Amélio, tinha aquela história de chá de pera (expressão usada para designar a pessoa que acompanhava o casal de namorados). Daí, a gente recolhia as folhas do pé de pera e fazia chá para ela, para brincar. O Amélio também trazia balas pra gente e ela ficava braba porque a gente ia receber ele antes dela.
Já adultas e trabalhando juntas, uma deu apoio à outra. Quando Carmen falou da possibilidade e receio em adotar uma criança, há 14 anos, Lourena não teve dúvida. Aconselhou que a irmã adotasse que ela ajudaria na criação se fosse preciso.
— Ela tem aquele coração de mãe. Tem posição firme, é empreendedora. Eu brinco que ela enxerga até de costas. Tem visão de como fazer a coisa andar. É uma mulher forte, guerreira. É muito parecida com a nossa mãe. Até fisicamente elas são parecidas. Ela pode te xingar, mas depois de cinco minutos está te abraçando — acrescenta.
Presente na medida do possível
Com o marido doente e tendo de dar conta do negócio da família, Lourena quase não conseguiu acompanhar o crescimento da filha Patricia, hoje com 28 anos. Trabalhou até a véspera do nascimento e, 15 dias depois, estava de volta ao batente. Foram muitas as vezes que a menina fugia da babá para ver a mãe no Xis. Quando Patê estava um pouco maior e Lourena passava os dias no hospital cuidando de Amélio, as duas sempre davam um jeito de, ao menos, almoçarem juntas.
— Ela sempre trabalhou muito. Tinha de estar na empresa, cuidar do pai. Foi presente na medida do possível. Mas sempre me deixou rodeada de pessoas que cuidavam bem de mim — diz Patricia.
Talvez por não ter visto a filha crescer como gostaria, Lourena está um pouco ansiosa pela chegada da terceira geração. Já faz planos de cuidar dos netos no Xis e imagina a filha tendo gêmeos.
— Na nossa família tem casos. Se viessem gêmeos seria bonito — deseja.
Enquanto eles não chegam, Lourena curte a fase como sogra, sem perder o jeito de gringa, claro.
— Quando eles saem daqui de casa, eu digo para o Mica: fa polito (faz direito) e cuida da minha joia — brinca.
Enquanto tiver forças
Aos 62 anos, com o negócio consolidado e a filha responsável pelo administrativo da empresa, Lourena poderia pensar em aposentadoria. Mas não, isso nem passa pela cabeça dela.
— Até que tenho força, não vou parar — diz.
Lourena está em plena atividade, tanto que até planeja novidades para o estabelecimento. Só não adianta do que se trata.
— Eu sempre fui uma pessoa que andei com as minhas próprias pernas. E, agora, estamos querendo fazer uma loucura. Vamos ver. É surpresa.
A HISTÓRIA
Fotos acima: 1 - Primeira Eucaristia de Lourena, em 1968. 2 - Lourena e Amélio, o jovem casal de namorados, em 1973. 3 e 4 - O Texakão, trailer que deu origem ao Xis da Gringa, iniciou as atividades em 8 de fevereiro de 1975, no Posto Texaco da Garibaldi com a Tronca. Foram cinco anos no Texaco. Depois, Lourena e Amélio se mudaram para a Feijó Júnior, onde hoje é a Nutrifrango, onde permaneceram por seis anos. O último endereço antes do atual foi em frente à Casa de Pedra. Na Rua Carlos Bianchini, o Lanches da Gringa está há 30 anos. 5 - Casamento de Lourena e Amélio, em outubro de 1975. Na foto, os irmãos de Lourena. 6 - Lourena na chapa, preparando os bifes, em 2005. 7 - Lourena e Amélio em 2005. Ele morreu no ano seguinte, em novembro.