Na região que concentra a maior parte do plantio de maçãs do Rio Grande do Sul, a deriva do herbicida 2,4-D começa a deixar rastros nos pomares. Desde o ano passado, produtores dos Campos de Cima da Serra notam os efeitos causados pela má aplicação do agrotóxico nas lavouras de soja. Os casos conhecidos ainda se restringem a um número pequeno de propriedades, mas já preocupam os fruticultores. Ao final desta safra, a Associação Gaúcha dos Produtores de Maçã (Agapomi) pretende fazer o balanço das perdas relacionadas ao problema e não descarta pleitear alguma ação junto ao poder público e até buscar ressarcimento pelo prejuízo.
— Começamos a ver níveis bem visíveis de deriva, que neste ano se alastraram ainda mais. A situação é grave e espero que o governo (federal) assuma o problema. Por que para o produtor de soja ser viável eu tenho que ser inviável? — menciona José Sozo, presidente da Agapomi e um dos produtores afetados pela deriva do 2,4-D.
Dono de propriedade em Vacaria com 35 hectares de macieiras, 10 hectares de videiras e outros 17 hectares de nogueira, Sozo está rodeado por lavouras de soja. Quando desconfiou que os problemas nas áreas de maçã e uva poderiam ser oriundos da deriva do 2,4-D, ele contratou uma consultoria privada para analisar o que estava ocorrendo. O laudo entregue em outubro do ano passado confirmou a suspeita, detectando o princípio ativo do herbicida no local. Somente a área com nogueiras não foi afetada, já que o ciclo de desenvolvimento da noz é mais tardio do que o das frutas.
O momento de aplicação do 2,4-D na soja coincide com o período de floração da maçã e da uva. Por isso, há cerca de dois meses, os mesmos sintomas da safra anterior voltaram a aparecer, mas de maneira mais agressiva. Na propriedade de Sozo, em alguns pomares as folhas começaram a se enrolar e a maioria dos frutos sequer nasceu. Em macieiras que deveriam gerar de 150 a 200 frutos, brotaram entre 10 e 15 unidades apenas.
Ao se percorrer municípios serranos, é comum deparar-se com vastas áreas de soja ao lado de pomares e vinhedos. Como a região se caracteriza pelo vento constante, os fruticultores apontam que a corrente de ar acaba trazendo a substância para o seu lado da porteira. A maioria dos produtores que dizem ser atingidos pela deriva não possui laudos técnicos que comprovem a situação. Ainda assim, a doutora em fitossanidade e professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS) no campus de Vacaria Taísa Dal Magro confirma a existência do problema.
— É um produto fácil de visualizar os sintomas. Todas as vezes em que fui chamada para verificação, os sinais estavam bem evoluídos — constata.
A partir dos relatos, pesquisadores da universidade começaram a se debruçar sobre o tema nesta safra. No entanto, segundo Taísa, ainda é cedo para dimensionar danos e estabelecer conclusões. A especialista lembra que a resistência da buva (erva daninha) ao glifosato estimulou produtores da oleaginosa a recorrerem ao 2,4-D com mais frequência para fazer o controle das ervas daninhas. Neste sentido, o problema ocasionado nas outras culturas não seria decorrente pelo mero uso do produto, que é legalizado no Brasil há décadas, mas sim em função da maneira como ele é aplicado.
O plantio de soja está em expansão na Serra, sobretudo na zona dos Campos de Cima. Entre 2013 e 2018, o cultivo saltou de 186,7 mil hectares para 219,5 mil hectares, de acordo com dados da Emater-RS. Na safra passada, foram colhidas 782,3 mil toneladas do grão. A quantidade já supera a colheita da uva, conhecida como a principal cultura serrana, que totalizou 720 mil toneladas no período.
Secretaria colheu primeiras amostras na região
O escritório regional da Secretaria Estadual da Agricultura em Lagoa Vermelha, que atende aos municípios situados nos Campos de Cima da Serra, analisou três casos de suspeita de deriva do 2,4-D. Em outubro, foram coletadas duas amostras em propriedades de videiras em Monte Alegre dos Campos e uma em Cacique Doble, com uva e guabiju. A partir da análise, detectou-se vestígio do herbicida nas áreas de dois destes produtores.
Foi o primeiro ano que técnicos da secretaria foram a campo na região. Apesar de só três produtores terem procurado o órgão para pedir o laudo, a fiscal agropecuária da Secretaria da Agricultura Liese Pereira acredita que o 2,4-D pode estar causando estragos em número maior de propriedades. No entanto, ela constata que, em muitos casos, o agricultor demora para perceber o problema ou quando nota algo de errado nas frutas tenta encontrar uma solução por conta própria.
— Há casos isolados em que o próprio produtor atingido conversou com o vizinho, que parou de utilizar o produto e o problema foi suprimido. Mas como o 2,4-D tem sido cada vez mais utilizado para o controle das ervas daninhas na soja, a tendência é de que se intensifique (a deriva nas outras culturas) — acredita.
Um dos afetados, conforme aponta o laudo da secretaria, é o produtor Josimar Gonçalves da Silva. Com área de um hectare de uva em Monte Alegre dos Campos, ele começou a notar alterações no estado das videiras da variedade bordô a partir da safra passada.
— No início achei que pudesse ser alguma deficiência de nutriente ou tratamento errado — recorda Silva.
Instalado a menos de 500 metros da área de soja, acabou levando alguns meses até perceber que o enrolamento das folhas e o nascimento desuniforme dos grãos não eram decorrentes do manejo. Conversando com outros produtores e técnicos na localidade, descobriu que haviam relatos de deriva do herbicida no município. Por isso, neste ano, decidiu fazer a perícia assim que notou os primeiros sinais do efeito do 2,4-D.
O produtor calcula que perdeu aproximadamente 20% da safra a ser colhida neste verão. Em função do problema, Silva cogita a hipótese de arrendar a área e passar a se dedicar apenas à maçã, já que ele também tem pomares em local afastado da soja.
Alho sob suspeita
Ainda que os primeiros registros de deriva do 2,4-D na região sejam vinculados à maçã e à uva, existem relatos do problema que não se restringem à fruticultura. É o caso da propriedade de alho da família Marcon, situada em Muitos Capões. O produtor Ivanir Marcon alega que o uso do herbicida em lavoura de soja vizinha tem causado prejuízos na colheita do vegetal desde 2017.
Segundo ele, em sua área de 15 hectares de alho, houve a perda de 6 mil toneladas na safra passada. Neste ano, o produtor realizou tratamento com aminoácido e açúcar para minimizar o impacto. Ainda assim, a tendência é de que cerca de 3 mil toneladas do condimento deixem de ser colhidas.
— É esse demônio de 2,4-D (a causa da perda). Vai ser um desastre se não pararem de usar isso — define Ivanir Marcon.
Os Marcon chegaram a encomendar laudo técnico para comprovar a deriva. No entanto, o resultado ainda não foi entregue. O receio é de que a coleta de material tenha ocorrido tardiamente, em momento no qual o princípio ativo poderia ter deixado de pairar na propriedade. No alho, os sintomas se manifestam, principalmente, em manchas amarelas espalhadas em parte da plantação, bulbos menores do que o normal e raízes mortas.
SAIBA MAIS
* O 2,4-D é um herbicida utilizado no controle de ervas daninhas nas lavouras de soja. Geralmente, é aplicado no início da safra do grão, período que coincide com a floração da maçã e da uva.
* O uso do produto é permitido no Brasil. No entanto, a empresa que o fabrica faz uma série de recomendações para sua aplicação, como, por exemplo, evitar a aplicação em momentos de ventos fortes.
* Em caso de aplicação nas condições não recomendadas, o produto pode se espalhar por um raio de até 15 quilômetros, segundo especialistas em fitossanidade. Desta maneira, o princípio ativo do herbicida pode chegar em outras propriedades e causar danos, como no caso de alguns fruticultores dos Campos de Cima da Serra.
* No Rio Grande do Sul, o problema de deriva é mais grave em regiões como a Campanha e a Fronteira Oeste.