O drone ainda não era um recurso tão popular para fazer registros fotográficos aéreos quanto hoje quando, em 2014, o experiente fotógrafo caxiense Severino Schiavo teve a ideia que resultou na exposição Caxias do Sul em Dois Tempos, que pode ser conferida no Shopping Villagio Caxias. Além de permitir ao visitante viajar com os olhos pela Caxias da primeira metade do século passado, a coletânea presta um tributo a alguns dos fotógrafos que eternizaram a cidade, que na última quinta-feira comemorou 134 anos, em seu período de urbanização e modernização.
No projeto que contou com recursos do Financiarte, Schiavo sobrevoou Caxias do Sul a bordo de um avião, tendo em mãos as fotografias que queria reproduzir do mesmo ângulo, a fim de mostrar o surgimento de novos bairros, novos empreendimentos e de uma cidade cada vez mais vertical.
- Foi um trabalho difícil, porque tinha que combinar com o piloto para poder ter o ângulo mais exato para a foto. Às vezes tinha de voltar algumas vezes ao mesmo local, isso quando a própria asa do avião não interferia - recorda o fotógrafo, que é um dos fundadores do Clube do Fotógrafo de Caxias do Sul, do qual ostenta a carteirinha de sócio de número 3.
A seleção feita junto ao Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami contemplou registros de Domingos Mancuso e de Ulysses Geremia, entre outras de autoria não identificada. Os ângulos escolhidos têm como pontos de referência locais como a Praça Dante Alighieri, os colégios São José e La Salle Carmo, sede do 3º GAAAe, complexo da Maesa, Centro Administrativo e a Igreja de Nossa Senhora de Lourdes. Se nos registros originais é fácil identificar cada edificação, nas fotografias de 2014 até mesmo os prédios de maiores proporções parecem sumir em meio ao mar de concreto.
- Sem dúvidas o que mais chama a atenção é a expansão da área urbana, que não parou mais. Talvez já esteja até na hora de fazer uma Caxias em Três Tempos - brinca Schiavo.
Com 20 quadros emoldurados, Caxias do Sul em Dois Tempos pode ser visitada no Shopping Villagio Caxias ao longo da próxima semana, de segunda a sábado, das 10h às 22h, e aos domingos, das 11h às 22h.
Reconhecimento aos primeiros fotógrafos de Caxias
Assim como Severino Schiavo conciliou seu estúdio de fotografia e o trabalho em eventos sociais com o afã de registrar a cidade em transformação, o mesmo fizeram muitos dos que vieram antes dele neste ofício em Caxias do Sul. E alguns dos principais fotógrafos caxienses foram perfilados na obra O Instante e o Tempo: a fotografia em Caxias do Sul 1885-1960, lançada em 2016 pela Secretaria Municipal de Cultura, e recentemente disponibilizada em versão digital, através da plataforma do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
A pesquisa teve início ainda nos anos 1980, quando o Arquivo Histórico era dirigido por Juventino Dal Bó e o município foi contemplado em um edital da Fundação Nacional de Arte (Funarte) voltado para a preservação da memória fotográfica de municípios do Brasil todo. A extinção do órgão em 1990 pelo governo Collor, no entanto, fez o projeto parar e a publicação teve de esperar até 2016, quando saiu com recursos do município.
O trabalho foi desenvolvido sob a coordenação de Liliana Alberti Henrichs, reunindo servidores dedicados ao acervo fotográfico e ao banco de memória oral. Os textos são de autoria da professora de História e servidora Sônia Storchi Fries, sendo que as pesquisadoras se debruçaram sobre milhares de negativos e centenas de horas de gravações de áudio. A equipe contou ainda com a sua irmã, Susana Storchi, que faleceu em janeiro deste ano, e com a servidora Elenira Prux, que assina o texto de apresentação do livro.
A obra traz perfis e parte da produção de 26 fotógrafos, reunindo nomes como Mauro de Blanco, Primo Postali, Amadeu Zinani, Ary Antônio Pastori, Clemente Tomazoni, Francesco Mosconi, entre outros que contribuíram para que Caxias pudesse ser uma cidade capaz de enxergar melhor a si mesma. Através das imagens que registraram, identificam-se não apenas transformações no cenário rural e urbano, mas também no comportamento da sociedade.
- De alguma forma acho que conseguimos mostrar um pouco do universo de cada um destes fotógrafos que deram uma grande contribuição para Caxias do Sul. Muitos trabalhavam como retratistas ou registro de eventos, que iam desde batismo até velório, mas todos tinham um interesse por registrar a cidade em movimento, alguns com cunho jornalístico - comenta Sônia Storchi, cuja dedicação ao Arquivo Histórico Municipal soma quatro décadas.
"O Instante e o Tempo" pode ser acessado neste link, onde é possível fazer o download gratuito.
O olhar dos Mancuso sobre a Caxias moderna
A modernização de Caxias do Sul registrada através das lentes de dois de seus fotógrafos mais célebres foi o tema da dissertação de mestrado do historiador André Betinardi, que posteriormente foi publicada em livro pela editora Dialética. É possível adquirir a obra em formato e-book por lojas virtuais como a Amazon.
Intitulada Caxias do Sul em Foco: A modernização da cidade representada pelos Mancuso (1907-1961), a pesquisa joga luz sobre o trabalho do italiano Domingos Mancuso (1887-1972) e do seu filho, Reno Mancuso (1919-1974), como personagens fundamentais para a construção da memória coletiva de Caxias do Sul através da fotografia, num processo que se confunde com a própria consolidação de uma identidade local.
Ampliando o foco para analisar algumas dezenas de registros que ambos fizeram ao longo das seis primeiras décadas do século passado, entre outros pontos, o autor esmiúça como o filho buscou "atualizar" alguns dos registros feitos pelo pai (um exemplo é a Estação Ferroviária clicada por Domingos em 1910,e fotografada em ângulo semelhante por Reno em 1947).
Quando comparamos as fotografias tiradas em ângulos semelhantes, primeiramente por Domingos Mancuso, e, décadas depois, por Reno (...) os fotógrafos buscavam deixar registros para a posteridade no sentido de que produziam, por livre iniciativa, fotografias que representavam a modernização da cidade de Caxias do Sul ao longo das décadas. O fato de Reno procurar ângulos próximos àqueles escolhidos por Domingos nos dá evidências de que o primeiro buscou estabelecer uma linearidade, uma continuidade não apenas ao trabalho do pai, mas do desenvolvimento da cidade representado em suporte fotográfico, escreve.
Entre os insights do autor ao inserir o trabalho dos Mancuso no contexto da Caxias da primeira metade do século 20, está a análise de como os imigrantes ou seus descendentes tinham o costume de adquirir e enviar fotografias que mostrassem a cidade pujante em evolução para seus familiares na Itália. Um cartão comercial da Festa Nacional da Uva de 1954, elaborado com uma série de imagens produzidas por Reno Mancuso, mostram que o fotógrafo entendia o orgulho do caxiense em ver a cidade cada vez mais moderna, ao mesmo tempo em que tinha, ele mesmo, orgulho da Caxias em expansão.
- O cartão pode ser compreendido como uma das produções de maior circulação feitas pelos Mancuso e é um perfeito exemplo de como o centro urbano da cidade de Caxias do Sul foi alvo da busca pela representação da modernização por parte do fotógrafo (Reno Mancuso), quando verificamos as cenas selecionadas de diferentes locais da região central da cidade, pontua Betinardi.