A década era 1980. Sem celular e aplicativos de conversa, a comunicação exigia certo malabarismo, mas este cenário não foi impeditivo para que Ana Maria, a mãe da jovem modelo Deise Nunes, ligasse para um familiar, em Canela, para que solicitasse uma audiência com o prefeito. É que Ana Maria queria pedir ao chefe do executivo que aceitasse a filha como representante de Canela, no Miss Rio Grande do Sul, após o desinteresse de Porto Alegre, cidade onde moravam. A determinação e coragem da mãe de Deise deram certo. Ela foi aceita pelo município da Serra, venceu a etapa estadual e, depois, foi coroada Miss Brasil 1986, tornando-se a primeira mulher negra a conquistar a faixa do concurso.
O empenho da mãe, que criou a modelo sozinha, é lembrado até hoje e, para Deise, exemplifica como as mulheres devem lutar com determinação para serem protagonistas da própria história.
— A minha mãe é minha grande referência. Uma mulher que não conseguiu terminar o Ensino Médio, mas que tinha o grande sonho de ser jornalista. Quando eu nasci, ela tinha 21 anos. Nunca, nunca baixou a cabeça para nada. Sempre sonhou, trabalhou e sempre esteve comigo em todos os momentos. Ela não teve a chance de chegar aonde quis chegar, mas é uma baita de uma mulher pela luta que ela teve — enfatiza Deise.
A Miss Brasil de 1986 esteve em Caxias do Sul nesta semana, como convidada do Terça Cult, evento promovido mensalmente pelo Recreio da Juventude e que, nesta edição, teve temáticas voltadas às mulheres. Para uma plateia atenta, que ocupou todos os espaços do salão, Deise relembrou histórias dos concursos, falou sobre as relações por meio das redes sociais e como tomou coragem para empreender. O bate-papo foi acompanhado pela princesa da Festa da Uva Eduarda Ruzzarin Menezes, que também contou sobre as intensas experiências no concurso e como integrante do trio de soberanas. Antes de falar ao público, contudo, Deise conversou com o Pioneiro. Confira abaixo a entrevista com a eterna miss Brasil:
Deise, você fez história ao ser a primeira mulher negra a receber o título de Miss Brasil. Você percebeu, na época, a importância disso para a sociedade e, também, para as meninas negras que viriam depois de você, não só em concursos de beleza, mas em qualquer espaço que desejassem ocupar?
Eu não tive a dimensão logo no início. Eu não sabia, naquele primeiro momento, da importância daquele título. Eu era uma menina de 18 anos, que estava representando meu Estado em um concurso nacional e grandioso. Era um concurso popular, na Era Silvio Santos, o que acho que deixou o Miss Brasil muito mais popular, porque era transmitido pela televisão. As pessoas assistiam muito naquela época. E aí englobou muita coisa, a euforia, a distância de casa, os compromissos todos os dias. Quando terminou, eu fiquei muito feliz, mas pensei "agora, finalmente, vou dormir". Que engano meu! Então, eu só fui me dar conta deste feito, da importância de tudo, uns quatro dias depois, quando consegui sentar e ler os jornais. E aí eu me assustei. Eu pensei na minha responsabilidade. E pensei: "e agora?". Agora só posso ir em frente. E eu sempre digo que eu não fui eleita a mulher mais bonita do Brasil. Eu estava ali como uma representante da beleza da mulher brasileira. Acho que todas devem se sentir assim, seja loira, seja negra, ruiva, morena.
Mas depois de você demorou bastante tempo para termos outra Miss Brasil negra, em um país tão plural quanto o nosso...
Bastante mesmo, foram 30 anos (Raissa Santana, do Paraná, eleita em 2016). E depois, em 2017, teve a Monalysa Alcântara, que representou o Piauí. Te confesso que depois do meu concurso, que foi aquele boom, eu achei que no ano seguinte iria ter muitas meninas negras, mas não teve, nem 1987, nem 1989... Elas foram aparecendo lá por 1994, 1995. Mas era uma que outra.
O que você acha que faltou ou falta para termos mais representantes negras?
Falta uma série de coisas. Hoje, existe, principalmente, o investimento. Existe uma dificuldade monetária para poder se preparar. As candidatas sabem que têm outras meninas que vão muito preparadas. Mas é muito difícil conseguir quem te apoie, patrocine ou faça uma permuta. Acho que isso é um empecilho, um distanciador. E também a falta de oportunidade. Acredito que muitas meninas não têm a oportunidade de participar do concurso na sua cidade.
O que o título de Miss Brasil te trouxe? De bom e de ruim...
Posso dizer que não teve nada tão ruim assim. Eu sabia que seria um ano intenso. Eu tinha que trabalhar e viajar bastante. Eu não teria muito tempo para o meu lazer, para ficar em casa de pantufa (risos). E foi assim, um ano esgotante. Me mudei para São Paulo e a minha segunda casa era o aeroporto. O cansaço foi um ponto complicado, mas, ao mesmo tempo, bacana, porque tive a oportunidade de conhecer diversos lugares, uns que nunca imaginei, como o Acre. Um lugar lindo, onde conheci o açaí. E conheci muitos lugares do interior. Então, conheci o brasileiro raiz, aquele que batalha, que luta para ter as coisas. Pessoas educadas, que sempre me receberam de braços abertos, que não me conheciam e me colocavam dentro de suas casas. O título, então, me trouxe todo esse conhecimento e essa bagagem. Tive uma experiência que até hoje eu colho frutos.
Como vê o concurso hoje em dia, diante de um sociedade influenciada por padrões de beleza e com procedimentos estéticos cada vez mais banalizados?
Não existia nada disso, essas coisas de harmonização, aplique, unha postiça. O que tinha era cirurgia plástica. E imagina que uma menina de 18 anos, como eu era, iria fazer uma cirurgia naquela época?! Não tinha o porquê. O único artifício que usávamos era uma base ou um pó para cobrir alguma cicatriz. Eu era aquilo e não tinha o que fazer (risos). Hoje, como você mesma falou, a coisa está banalizada. Estão fazendo procedimentos cada vez mais cedo, o que, na minha opinião, não tem a mínima necessidade. Não sou contra nada dessas coisas, mas acho fazem muito cedo.
Como conscientizar as mulheres a respeito do protagonismo feminino?
Tem que ter determinação. Quantas vezes vamos encontrar pedras no caminho? Muitas. Eu sempre digo que o "não" nós já temos. Eu tenho que correr sempre atrás do sim. E se eu quiser ser essa protagonista eu tenho que correr muito, muito atrás do "sim". Eu tenho que ter determinação e força de vontade. Eu tenho que querer chegar, eu tenho que querer ser, né? Tudo isso faz parte do protagonismo da mulher. E a mulher, por si só, é protagonista. Porque nós geramos uma vida. Quer maior protagonismo que esse? Se não é a mulher, não há vida.
Atualmente, você é empresária, dona de uma escola de modelos. Qual a dica você daria para quem sonha em ser modelo?
As pessoas às vezes imaginam que a carreira de modelo é uma facilidade absurda. Não é assim. Primeiro, é uma carreira, não é um bico. Certifique-se de que é isso mesmo que tu quer. Aprendemos todos os dias, a cada trabalho. Por isso, eu digo que tem que aproveitar todos os momentos para aprender e crescer. Segundo, a palavra não, infelizmente, é muito pronunciada. Dá uma desanimada? É claro que dá, mas não pode desanimar. E também oriento que façam cursos, aprendam pelo menos a base da coisa para que tu não chegues nu e cru num lugar que tu não conheces. É preciso perseverança e saber que tem que se preparar para isso. O mundo da moda exige preparo. É muito bacana, muito legal, te ensina muito, mas ele também puxa o teu tapete.