É com ânimo renovado e com expectativa de resgate cultural que as escolas de samba de Caxias do Sul estão vivendo os dias que antecedem ao Carnaval 2024. O evento marcado para a próxima sexta-feira (9), a partir das 19h, na Rua Plácido de Castro, com a adesão de quatro agremiações, é tido como o primeiro passo para devolver às escolas, após um hiato de sete anos, o tradicional desfile e a oportunidade de competirem entre si pelo título de campeã.
Para aqueles que se criaram nos barracões das escolas de samba, membros da terceira ou quarta geração de uma família carnavalesca, Carnaval é sua Copa do Mundo particular. E bambas como Cassiano Fontana, de 45 anos, um dos fundadores da Unidos do É o Tchan, no bairro Bom Pastor, podem finalmente passar adiante o amor que sentem pela festa mais popular do Brasil. Este ano Cassiano irá apresentar a magia do samba ao filho Cássio, de 9 anos.
- Ele (Cássio) já está aprendendo a gostar de tocar alguns instrumentos, participou da oficina de percussão do Mestre Batata, no último final de semana, e está pegando gosto. Eu espero que daqui alguns anos ele também passe a se interessar pelo fomento cultural que faz o Carnaval acontecer aqui na cidade, onde toda mobilização é necessária - comenta Cassiano.
Ver o menino se interessar pelo samba e pela folia carnavalesca remete Cassiano, que trabalha com brinquedos infláveis para eventos, à sua própria infância no bairro Cruzeiro, nos anos 1980:
- Eu tinha 10 anos e lembro de estar em casa com minha família e de assistir, na velha TV de tubo de 14 polegadas, os desfiles do Carnaval carioca, Especialmente o da Vila Isabel, que se sagrou campeã, me marcou pra sempre. A partir do ano seguinte minha mãe passou a me levar no Carnaval infantil que era feito no Recreio Rodoviário. Com 15 anos eu desfilei na XV de Novembro, e com 17 já era presidente do bloco É o Tchan, que deu origem à escola.
Com o ganzá na mão, instrumento percussivo semelhante a um chocalho, bastante comum nas escolas de samba, Cássio diz estar ansioso para viver o seu primeiro Carnaval:
- Nunca tive essa experiência de desfilar, nem de ir com o meu pai no carnaval. Vai ser a primeira vez.
Já no clima da festa, pai e filho preparam para este domingo, quando será realizado o pré-Carnaval da Unidos do É o Tchan, na Praça das Feiras, a partir das 13h, as bandeiras com o logo do bloco. As 220 camisetas feitas para os foliões do bloco já estão reservadas, sendo que pelo menos outros 30 irão participar com fantasias, de tema livre.
Pelo legado do líder "Dão"
Quando se fala em ligação umbilical com o Carnaval, no caso do caxiense Luan Matheus, de 23 anos, a expressão pode ser considerada quase literal. Isso porque sua mãe, Cassiane, estava no oitavo mês da gestação do primogênito quando desfilou pela Escola de Samba XV de Novembro, sediada no bairro Euzébio Beltrão de Queiroz.
Mais de duas décadas depois, não apenas Luan e a mãe vivem a expectativa de voltar a curtir o Carnaval em família junto com Any, 11, e Peterson, 9, também filhos de Cassiane, como Luan também quer contagiar com o amor pelo Carnaval o seu filho Arthur Gael, de 3 anos:
- Quando eu era criança, passava o ano todo esperando pelo Carnaval. Hoje meu filho tem três anos e já passa o dia todo assistindo desenho no YouTube. Acho que, com o Carnaval voltando, e ele vendo o envolvimento da família, vai querer se envolver também. Não só ele, mas todas as crianças da comunidade. Por isso é tão importante que ocorra esse projeto de retomada das escolas de samba, que a gente espera que ocorra com continuidade - comenta o jovem.
No último domingo, a família participou da confraternização realizada no Instituto Samba, no centro da cidade, que contou com integrantes da XV de Novembro e também de outras escolas da cidade, além de representantes da Secretaria Municipal de Cultura. Para Cassiane, que representou a escola na ausência do líder comunitário Paulo Teixeira, o cara Preta, que se recuperava de um problema de saúde, o retorno do Carnaval é uma conquista a ser celebrada por toda a comunidade que sofreu primeiro com os cortes de verbas durante a gestão do prefeito Daniel Guerra, e depois com a pandemia:
- Eu participo do Carnaval desde os meus seis anos. Ia junto com a minha mãe, depois passei a levar meus filhos, e logo vou estar levando meu neto. No Beltrão a gente tem esse legado muito importante deixado pelo Dão (o já falecido líder comunitário Adão Borges da Rosa), e foi muito triste ver essa cultura que nos foi tirada ir morrendo ano após ano. Por isso esse momento que vivemos agora é tão valioso e nos dá tanta esperança.
Vocação de campeões
Aos 71 anos, Salésio Macedo, o Cafú, perdeu a conta de quantas escolas de samba, blocos de Carnaval e clubes de futebol amador ajudou a criar em diferentes bairros de Caxias do Sul. Mas foi em 2007, quando finalmente ajudou a entregar à comunidade do bairro Mariani a Escola de Samba Acadêmicos Pérola Negra, que se deu por satisfeito. E logo nos três primeiros carnavais da escola, entre 2008 e 2010, foram três títulos consecutivos do Carnaval caxiense, tendo em todos eles a contribuição do filho mais velho, Vagner Macedo, 43, como compositor dos sambas-enredo.
Na quadra da escola, que no último sábado voltou a vibrar como nos velhos tempos, com a festa de pré-Carnaval que se estendeu madrugada adentro, Salésio e Vagner aprontam os últimos detalhes para que a Pérola Negra volte a brilhar e a alegrar o público, que neste ano terá a Plácido de Castro como a sua Sapucaí, ou a sua Sinimbu.
- É um trabalho difícil, de recomeçar praticamente do zero. Parte do pessoal de mais idade não quis mais se envolver depois da pandemia, mas, por outro lado, temos uma garotada que está nos procurando, que quer saber como vai funcionar. O objetivo é voltar no ano que vem com a bateria e com todas as alas, mas para isso é preciso trabalhar o ano todo, e essa continuidade é mais complicada, porque a matéria-prima da escola de samba são as pessoas - comenta Vagner.
Para o veterano Cafú, que sempre gostou de se envolver com a parte braçal de construção das alegorias, enquanto a esposa, Joana, se dedicava à costura das fantasias, este ano será de atuação mais nos bastidores, como um bom mestre - e também presidente da escola que ajudou a fundar.
- A gente sentia falta dessa maratona. Quando parou tudo, todo mundo ficou pra baixo. Porque ninguém é capaz de dizer que pode fazer o desfile sozinho, sem ajuda do poder público. Ainda sinto que as pessoas não estão com a mesma energia, porque ainda veem tudo o que está acontecendo como algo incerto. Mas é nosso trabalho puxar esse resgate.
Avó, filha e netas unidas pelo samba
Quando se mudou de Sananduva para Caxias do Sul, há cerca de 30 anos, Terezinha Clarinda Pinheiro nunca tinha visto uma escola de samba de perto. Mesmo assim, já era apaixonada pelo Carnaval. Mas foi ao migrar para a Serra e atender ao convite de um cunhado para desfilar na escola São Vicente, do bairro Jardelino Ramos, que o interesse pela festa se tornou também compromisso. Desde então, nunca perdeu um desfile sequer.
- Desde a primeira vez que vi uma escola ao vivo, fiquei deslumbrada. E o encanto só foi aumentando ano após ano, sempre desfilando pela São Vicente. Onde tem Carnaval, eu estou. Nem que seja debaixo de chuva, como já desfilamos um ano em que a fantasia pesava, mas a gente não perdia o ritmo - conta.
Na avenida, Terezinha pode ser vista sempre na ala das baianas. A explicação para o interesse por esta ala específica é simples e direta:
- Nunca aprendi a sambar, só sei arrodear. Agora, então, que fiquei mais velha e perdi um pouco do molejo, só mesmo saindo de baiana.
O gosto pelo Carnaval passou também para as gerações seguintes. Fernanda, filha de Terezinha, 32, herdou a paixão da mãe, que por sua vez passou para a filha, Emanuelly, de 10 anos. O filho mais novo de Fernanda, Pietro, de 4 anos, também irá participar neste ano, razão pela qual Fernanda estará apenas na equipe de apoio da escola:
- Eu já aproveitei bastante, agora chegou a vez deles. A mais velha vai sair como destaque, e o mais novo na ala infantil. Vou estar de olho e torcendo para estar sendo bem representada - diverte-se Fernanda.
A família carnavalesca ainda conta com Mayara, 19, sobrinha de Terezinha, e Kauany, 11, neta. Cinco mulheres e um menino unidos não só pelos laços sanguíneos, mas pela Acadêmicos do São Vicente.
- Foi muito difícil ficar esse tempo todo sem nosso Carnaval. A gente colocava os CDs com os sambas-enredo de carnavais passados para dançar e se divertir em casa, e não perder o pique. O que a gente mais quer agora é que o Carnaval volte pra ficar - destaca a matriarca.