Distante da verticalização das cidades e intocadas pela gourmetização, as bodegas, ou bolichos, são um patrimônio do interior gaúcho. Na Serra, um destes lugares em que o tempo parece correr sem pressa, no ritmo ditado pela conversa amena do bodegueiro com sua freguesia, é o Bolicho do Bigode, localizado no distrito de Juá, a 60 quilômetros da sede de São Francisco de Paula, e a 50 quilômetros de Caxias do Sul.
Nas paredes decoradas por dezenas de pôsteres que recordam títulos do Grêmio, clube do coração do Bigode, apelido de Paulo Ricardo dos Santos, 63, ainda estão pendurados os boletins de urna das últimas eleições. Isso porque a bodega fica em frente à escola do distrito, local onde 111 dos 147 eleitores aptos a escolher seus candidatos compareceram no último pleito. Tão logo foi encerrada a votação, os boletins foram pregados na parede do bolicho para conferência dos moradores. É só um, entre outros exemplos que veremos, de que não há, em qualquer comunidade interiorana, ponto de referência melhor do que a sua bodega.
Bigode mantém o bolicho junto com a esposa, Elisabete Marli, 52. Caso precise se ausentar para participar de um torneio de laço ou para atender ao chamado de algum vizinho para carnear um porco, é a mulher quem atende a clientela.
– A maior parte da freguesia são os trabalhadores da serraria, que chegam no final da tarde pra comprar cigarro, beber, conversar ou jogar sinuca. Antes de ir embora levam alguma coisinha que esteja faltando em casa, como um pacote de massa ou de biscoito – conta o dono da bodega.
Antes de ter o próprio negócio, Bigode trabalhou como motorista de transporte escolar no interior de São Chico. Por não ter conseguido se aposentar, a bodega é sua fonte de renda, o que explica a razão de não vender fiado nem mesmo as fichas de sinuca, de onde tira boa parte do lucro:
– A sinuca me dá lucro líquido, porque ganhei a mesa de presente de um ex-vereador de São Chico. Veio lá do Campestre do Tigre, em cima de um caminhão, e tivemos de desmontar para poder passar pela porta. Mas não tem dia que não venda pelo menos umas 30 fichas.
O maior ativo, porém, é a venda de bebidas alcoólicas. Em especial o pé sujo, um tipo de drink raiz feito da mistura de vinho branco com refrigerante, e as muitas variedades de cachaça que o próprio Bigode prepara. Tem ameixa, abacaxi, guaco, butiá. Qualquer uma por R$ 2,50 o martelinho que, segundo o bodegueiro, tem propriedades medicinais.
– Gosto de brincar que uma cachacinha destas é melhor que vacina contra covid. Não tem vírus que resista – diverte-se.
ONDE O COMÉRCIO RAIZ SOBREVIVE
Invariavelmente caracterizadas por prateleiras nas paredes, um extenso balcão de madeira, saborosas peças de queijo e salame expostas, e algumas poucas mesas e cadeiras dispostas, as bodegas estão no meio termo entre o boteco e a mercearia, ou armazém. Servissem elas apenas para vender bebida e oferecer diversão, seriam meros botecos. Caso fossem apenas pontos de vendas de mercadorias, se assemelhariam a um comércio. Justamente nessa mistura reside o encanto do Bar e Armazém Cislaghi, parada quase obrigatória para quem passa pelo interior de Carlos Barbosa.
Prestes a completar 40 anos atrás do balcão, a proprietária Neiva Gobatto Cislaghi, 73, conta que não apenas moradores locais ou viajantes a trabalho formam a sua clientela, mas também muitos turistas que já conhecem a região costumam reservar um tempo para confraternizar na bodega:
– Tem muita gente que, pelo menos uma vez por ano, vem passear na Serra e para aqui, porque gosta dessa coisa mais à moda antiga. Quando vão embora, dizem que querem encontrar tudo igual no ano que vem. Tem até um grupo de amigas de São Paulo que todo ano vem passar férias em Gramado, e que sempre vem aqui pra passar uma tarde.
Ex-funcionária da Tramontina, Neiva mudou-se para a Linha 12 em meados dos anos 1980, quando surgiram, combinadas, a oportunidade de abrir o próprio negócio e a de trabalhar na central telefônica da localidade. Ela exerceu o serviço por 18 anos, até o encerramento.
– Era um trabalho que me exigia estar 24 horas por dia disponível. Às vezes já estava deitada na cama e escutava a campainha, daí tinha que sair porque alguém precisava ligar pra um médico, ou para um veterinário. Mas o salário era bom – recorda.
Apesar da calmaria do dia a dia na Linha 12, Neiva já sofreu dois assaltos, sendo que em um deles um cliente foi morto a tiro ao tentar reagir. Quase 15 anos depois, o buraco da bala pode ser visto na lateral da mesa de sinuca. Fora episódios como este ou alguma situação em que precisa separar valentões que se excedem na bebida, a rotina é agradável. Sem ser saudosista, porém, a proprietária diz que hoje em dia é mais difícil manter o negócio:
– Antigamente era bom porque não tinha que se preocupar com data de validade nas mercadorias. E hoje a gente lucra menos, porque tem mais concorrência. Ficou mais fácil para as pessoas irem até a cidade, daí voltam dizendo que lá no mercado é mais barato. Ou pechincham, ou acabam nem comprando. Na idade que eu estou, só não me desfiz (do negócio) ainda por causa das amizades.
"É UM QUEBRA-GALHO"
Primeiro distrito de Farroupilha, a pacata localidade de São Marcos passou a conviver com um grande número de visitantes desde que foi inaugurado, em maio do ano passado, o pomposo complexo turístico Stone Hall. A menos de 100 metros dali, um negócio menos propenso à badalação exibe na porta um cartaz que deixa claro: ninguém entra após as 22h. O proprietário da Bodega do Toni, Antônio Dacas, 68, explica que a medida foi tomada para inibir os inconvenientes:
– Se deixar, tem gente que bate na porta às duas ou três da manhã querendo comprar bebida. Isso quando não querem comprar fiado.
Toninho, como é conhecido, define seu negócio como um “quebra-galho” para a comunidade, que fica a 10 quilômetros do centro de Farroupilha. Ao passar os olhos pela miscelânea aparentemente infinita de produtos à mostra nas prateleiras, nada chama mais a atenção do que os cartazes escritos à mão direcionados aos inadimplentes, como o que ameaça revelar, com data anunciada, a lista dos devedores dos últimos três anos. Mas o afável bodegueiro garante que não passa de um chiste.
– A gente não vai expor o nome das pessoas, né? Deve dar até processo. É mais pra ver se alguém que já está devendo há um tempo lembra de pagar sem que eu precise cobrar – garante o proprietário.
Além das doses de cachaça servidas no copo de plástico, medidas conforme o pedido que pode partir de R$ 0,50, Toninho também vende ração para cães e gatos, vinho em garrafa plástica ou em garrafão, além de todo tipo de biscoitos coloniais. Assim tem sido há mais ou menos 40 anos, desde que herdou o negócio do pai. Não sabe precisar, mas acredita que a bodega já beire os oitenta anos, sendo uma das mais antigas de Farroupilha a manter suas portas abertas.
– Já sou uma relíquia – brinca.
NA MULADA, MÃE E FILHA ATENDEM JUNTAS
Além de vender um pouco de tudo e de ser o lugar procurado para descontrair, as bodegas também costumam ser o meio pelo qual as comunidades se comunicam. Em São Jorge da Mulada, no distrito caxiense de Criúva, é no Bazar Estrela-Guia que os moradores e visitantes podem comprar as rifas das festas anuais como a de São Jorge, em abril, ou de São João, em junho. Também é onde se divulga o balanço financeiro de cada festa para conferência dos contribuintes. Eventualmente, alguma rifa que vise contribuir para custear o tratamento de saúde de um morador também pode ser encontrada no balcão gerenciado por Maria Mazoti, 68, e pela sua filha Juliana, 40.
Juliana é irmã de Viviana Mazoti Vacchi, agente comunitária de saúde na UBS de Criúva, que no ano passado alcançou a maior nota no país em uma capacitação do Ministério da Saúde e teve sua história contada em reportagem no Pioneiro. Assim como a irmã, Juliana chegou a morar em Caxias, mas retornou ao interior para ajudar a mãe após a morte do pai, 20 anos atrás.
– Eu gostaria de ter ficado na cidade e poder ter estudado mais, mas depois da morte do pai os planos mudaram. Não podia deixar a mãe aqui sozinha – diz.
Embora a localidade esteja distante 50 quilômetros de Caxias do Sul, o movimento tem aumentado nos últimos anos. Principalmente aos finais de semana, segundo explica Juliana:
– É quando vem o pessoal das chácaras. Muita gente adquiriu chácara aqui na região, depois que algumas grandes propriedades passaram a ser desmembradas e vendidas como sítios menores pelas imobiliárias. É um público que vem mais aos finais de semana.
Para dar conta da freguesia maior e mais diversificada, as prateleiras passaram a oferecer desde brinquedos até canos e peças para encanamento e cosméticos. Isso além de frutas, verduras, ovos, biscoitos e, claro, bebidas. Pode ser antes do almoço ou no final da tarde, sempre aparece alguém para tomar o seu trago. De portas abertas de segunda a segunda, das 8h às 19h, Juliana comenta que ela e a mãe raramente se permitem ter um dia de folga:
– Todo dia tem algum vendedor ou entregador pra gente receber. E, mesmo depois que já fechamos, sempre tem alguém que bate na janela pedindo para abrir, porque precisa comprar alguma coisa que faltou em casa. É que todo mundo nos conhece e sabe que a gente mora aqui.