Tal qual um livro que só realiza sua existência ao ser lido, a estação de trem que deixa de registrar chegadas e saídas deixa de existir, ainda que suas paredes permaneçam de pé. Destino semelhante encontram vagões, trilhos, túneis ou pontes que já não servem para o transporte de cargas ou passageiros, mas que resistem nos cenários rurais e urbanos, desvalidos.
Na Serra, para além da charmosa Maria Fumaça, que passeia entre Garibaldi e Bento Gonçalves – mas que atualmente está fechada devido à pandemia de coronavírus –, e de antigas estações tombadas como patrimônios históricos e que abrigam órgãos públicos, como a de Caxias do Sul, existe um lado B da história férrea. Resquícios de maquinário e construções em ruínas, cuja depredação marca uma época que envelheceu desassistida.
Nas primeiras décadas do século passado, o trem foi para o Rio Grande do Sul um impulso ao desenvolvimento. Na Serra, além de encurtar distâncias aos viajantes, seria o caminho para o escoamento da produção agrícola, comercial e industrial. Também modificaria para sempre a paisagem da região, uma vez que no entorno das estações surgiam casas de comércio, bares e pousadas.
A seguir, conheça pessoas que tiveram suas vidas tocadas por trens que já não apitam, mas que guardam na memória fragmentos de uma época romântica, mas que foi jogada fora pelo questionável progresso que corre pelo asfalto.
Memórias de um maquinista
A precisão do relato faz parecer que foi ontem, e não há mais de 50 anos, que Nelson Bassani iniciava a trajetória como ferroviário. As memórias brotam em profusão conforme o homem de 74 anos passeia pelo que restou da antiga estação da Linha KM 2, localidade próxima ao distrito de Tuiuty, que até 1970 abrigou uma companhia do 1º Batalhão Ferroviário de Bento Gonçalves. Durante os anos em que o regimento atuou na construção do Tronco Principal Sul (TPS), no trecho entre Lages e Roca Sales, a vila hoje decadente era uma cidade onde viviam civis, militares e suas famílias. Tinha cinema, posto de gasolina, salão de festas e comércio. A vila foi desmobilizada em 1970, com a transferência do batalhão para Lages. Seu abandono reflete o destino de grande parte da história férrea do Estado.
– Bate uma tristeza comparar o que era com o que restou. Tudo abandonado – desabafa o idoso, hoje dono de uma oficina mecânica em Bento Gonçalves.
Quando serviu ao exército, em 1966, Nelson trabalhou como telefonista na estação da Linha KM 2. No antigo prédio, que hoje é moradia para uma família humilde, Bassani reconhece a sala onde fazia e recebia ligações para liberar as chegadas e as partidas dos trens. Fazer bem o serviço era fundamental para evitar acidentes.
– O telefone era a manivela. Duas “maniveladas” chamava para Linha Verissimo. Três, para São Luiz das Antas. Um giro, Jaboticaba – recorda, citando antigas estações que visitaria com a reportagem, na semana que antecedeu a pandemia do coronavírus no Brasil.
O trabalho como telefonista foi só o começo do elo que une Nelson à ferrovia. Já como civil, foi convidado a assumir a função de maquinista do modal que transportava o material para a construção do TPS. O trabalho que exerceu por cinco anos deixou lembranças tristes como a de acidentes, que eram inevitáveis, mas também muitas recordações boas.
– Era divertido quando trazia os trabalhadores de carona em cima do vagão para passar a folga em casa, vínhamos de madrugada de Lages a Santa Tereza. Eu era guri novo e gostava de andar rápido, o que para um trem significa fazer 70 ou 80 km por hora. O problema era se descarrilhava. Aí podia demorar dois dias pra botar de volta no trilho e todo mundo tinha que pegar junto – diverte-se.
Correndo em linha paralela a do TPS, os trilhos do modal que Bassani ajudou a construir estão abandonados. Parte do material foi roubado, e a outra parte que sobrou resta encoberta por vegetação. Na localidade de Jaboticaba, onde uma ponte férrea que passa sobre o Rio das Antas resiste como uma das grandes obras realizadas pelo exército, uma grande quantidade de vagões também está entregue às ações do tempo, somando quase um quilômetro de estruturas retorcidas e enferrujadas, nas quais ainda se pode ler as marcas as quais pertenciam. Virou cenário para fotos de aventureiros, daquelas que mostram que o interior não é feito só de glamour.
A estação que virou casa do ex-ferroviário
Em Caxias do Sul, onde o trem marca capítulos importantes da história, estações em ruínas, como a do bairro Desvio Rizzo, entristecem quem dedicou parte da vida à ferrovia. Um saudosismo que não se prende ao passado, mas que pondera o custo do dito progresso que ignora as estradas de ferro. É por isso, que, de tempos em tempos, notícias sobre uma eventual retomada do transporte ferroviário fazem brilhar os olhos de Romeu Grapilha, aposentado que fez do antigo posto de trabalho a sua casa, literalmente.
Grapilha mora na estação de Forqueta, prédio construído em 1907 e que receberia o primeiro trem a chegar em Caxias, três anos depois. Possui um contrato de locação com o Estado, mas não teve mais de pagar o aluguel quando o imóvel foi cedido ao município. Não fosse pelo seu zelo, talvez a estrutura tivesse entregue à depredação e ao abandono. Ex-funcionário da VFRGS de 1984 até a desativação do trem em Caxias, em 1991, ocupava o cargo de artífice de linha permanente:
– O nome era bonito, mas o trabalho era pesado – brinca.
Além de ajudar a recolocar os vagões nos trilhos quando descarrilhavam, Romeu tinha de manter os trilhos livres de obstáculos. Como os moradores das proximidades sabiam que ele passaria recolhendo tralhas, conta, alguns acabavam fazendo da linha um verdadeiro lixão:
– Era comum jogarem sofá velho, carro velho, até banheiro, com a casinha e tudo, deixaram em cima dos trilhos uma vez. Meu trabalho era passar o dia entre Forqueta e Caxias, garantindo que os trilhos estivessem em condições.
Numa dessas idas e vindas, viveu um episódio tão curioso quanto marcante. Certo dia, em 1986, um pé de eucalipto caiu sobre a linha telefônica que corria paralela aos trilhos. Para ajudar no conserto, chamaram um eletricista de Bento Gonçalves, Alcides Grapilha. Ao que um terceiro trabalhador reparou a coincidência dos sobrenomes de Romeu e do eletricista, este perguntou se eram da mesma família. Descobriram ser irmãos.
– Meu pai teve uma família em Antônio Prado, a minha, e outra em Bento. Os irmãos até então não se conheciam. Fomos apresentados graças ao trem e mantemos contato até hoje – conta o ex-ferroviário.
.Com aperto no coração, Romeu se prepara para deixar a estação junto com a esposa, para morar numa chácara adquirida há alguns anos.
– Dá dó de sair. É onde meus três filhos se criaram, sentindo o chão tremer quando o trem se aproximava.
Cabe torcer para que o destino da antiga estação não seja o mesmo de tantas outras.
Caçadores de trilhos
Poucos meios de transporte carregam um imaginário tão rico quanto o trem. Talvez apenas a motocicleta e seus ideais de liberdade imortalizados no filme Easy Rider (1969). Celebrado no cinema e na música, especialmente no blues e no folk norte-americano, mas também por Raul Seixas e Adoniran Barbosa, o trem é capaz de despertar paixões em quem o conhece mais pela imaginação do que pela experiência de vida. É o caso dos rapazes do Forastrilho, grupo de amigos de Vacaria que se reúne para caminhar e acampar próximo às ferrovias.
– Não somos filhos, nem parentes de ferroviário. Mas a gente gosta de trem, cresceu ouvindo o trem de cargas cortar a cidade, e de alguma forma isso ajudou a moldar nossa personalidade. Acho que somos unidos por três paixões: trem, aventura e natureza – comenta Anderson Ferreira, um dos idealizadores do grupo, há cerca de 10 anos.
Além de desbravar túneis, pontes e novas paisagens dos Campos de Cima da Serra, a turma do Forastrilho reconhece que o ápice é ver passar o trem que ainda faz o trajeto desde Lages, pelo Tronco Principal Sul. Uma espera que pode ser tão traiçoeira quanto a do turista que aguarda pela neve, já que o transporte sequer passa todos os dias (atende a demanda de carga), porém menos frustrante, uma vez que os bons momentos se garantem pelas risadas, pelo churrasco, pelo mate ou pelo vinho.
– Existe uma magia em ficar esperando o trem e, quando ouvir o barulho, preparar o celular para tirar uma foto ou fazer um vídeo. É preciso capturar o momento, porque logo ele escapa dos nossos olhos – diz Gleidson Dondoni.
Além de experienciar o presente, parte do barato está em viajar ao passado, como a sensação que se experimenta ao visitar a antiga estação Capitão Ritter, no interior vacariano, local escolhido pelos integrantes para receber a reportagem. Hoje entregue aos porcos, literalmente transformada num chiqueiro de uma fazenda próxima, sua fachada ainda preserva traços do tempo em que serviu para o transporte de passageiros
– Estamos pisando onde muita gente já pisou. A imaginação vai longe para buscar como era naquele tempo. Também gostamos de estar sempre pesquisando sobre as estações, por isso, quando surge uma foto antiga de um lugar que já passamos, por exemplo, é como dar uma forma àquilo que só se passava na nossa cabeça – divaga Anderson.
Pelo túnel mais charmoso
Nem os trilhos que passavam pelo interior de Salvador do Sul restaram para contar a história do trajeto entre Montenegro, no Vale do Caí, e Caxias do Sul. A estrutura foi arrancada nos anos 1970, quando a linha que cortava o município, hoje com 6,5 mil habitantes, foi desativada. Num dos seus trechos, em meio a uma rica paisagem de árvores e riachos, está o mais antigo túnel curvilíneo esculpido em rocha da América Latina.
Com seis metros de altura e quase 100 de comprimento, o túnel da Linha Bonita Alta foi construído em 1906. Aos turistas, impressiona pela perfeição da construção e estado de conservação. Para os moradores da comunidade, em maioria descendentes de imigrantes alemães, o túnel é uma ligação com o passado. Percorrê-lo é ativar memórias de uma infância tão pacata quanto os seus passos cuidadosos.
– O túnel dividia a comunidade, por isso a gente passava muito de um lado para o outro para visitar os parentes. E nos domingos o programa era ver o trem. Era o dia que ele parava para abastecer, então tinha gente que vendia rapadura ou penca de bergamota pros passageiros. Era um evento – lembra Terezinha Gauer, 81.
Irmão e vizinho de Terezinha, Gabriel Schmidt, 79, conta das brincadeiras que seus amigos e ele faziam utilizando o trole, carrinho que desliza pelos trilhos, usado para operações de manutenção.
– A gente gostava quando tinha greve dos ferroviários. Pegava o trole e ficava pra cima e pra baixo o dia todo – conta.
Contudo, mais do que a atração que o trem representava, o que mais deixa saudade são as viagens. Era o meio de transporte que Terezinha usava para ir e voltar de Farroupilha, onde estudava. Para Gabriel, o trem era o meio de ir até São Leopoldo, onde servia ao exército.
– A viagem podia demorar um pouco mais, mas tu sabia que ia chegar. Não exista essa loucura no trânsito que vemos hoje – pondera o idoso.
Ascensão, auge e declínio: o trem no Estado e na região
1874 – É inaugurada a primeira ferrovia do Sul do Brasil, linha Porto Alegre-Caxias do Sul. Além da Capital, as primeiras estações foram construídas em Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo. Apenas três décadas e meia depois, em 1909, a linha teve continuação rumo a Carlos Barbosa, para depois chegar até Caxias do Sul.
1909 – Começa a ser construída a linha que liga Carlos Barbosa, Garibaldi e Bento Gonçalves, concluída em 1919, que ficaria conhecida como a Ferrovia do Vinho. A Maria Fumaça transportou passageiros até a década de 1970 e cargas até 1990. Passou a ser explorada para o turismo em 1992, revitalizada pela empresa Giordani, que segue com o serviço até os dias de hoje.
1910 – No mesmo ano em que é emancipada de São Sebastião do Caí, Caxias do Sul recebe o primeiro trem. A viagem inaugural, desde Porto Alegre, foi feita no dia 1º de junho. A linha original passava por São Leopoldo, Montenegro e Carlos Barbosa, antes de chegar a Caxias.
1920 – É criada a Viação Férrea do Rio Grande do Sul, estatal responsável pela expansão da malha ferroviária no Estado, levando o trem a todas as regiões. Foi encampada em 1959 pela Rede Ferroviária Federal (RFFSA), da União. Esta, por sua vez, foi privatizada na virada dos anos 1990 para os anos 2000, conforme seus trechos foram sendo entregues a concessionárias pelo país. Foi oficialmente extinta em 2007.
1943 – Instala-se em Bento Gonçalves o 1º Batalhão Ferroviário, responsável pela construção do Tronco Principal Sul, ligação férrea entre Porto Alegre e São Paulo. Pelas características geográficas, o trecho de Bento Gonçalves foi um dos mais desafiadores para os trabalhadores, que deixaram 1,5 quilômetros de estradas férreas construídas no Estado até a transferência para Lages, em 1971.
1976 – A Estação Férrea de Caxias do Sul deixa de receber passageiros e vira terminal de cargas. Seguiria operando até o início da década de 1990. Revitalizado, atualmente o complexo abriga a Secretaria Municipal de Cultura, a Biblioteca Parque da Estação e espaços de lazer. As outras estações da cidade também foram desativadas.
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