Não fosse pelo clima, a Serra Gaúcha dos imigrantes italianos e alemães em quase nada lembraria a região dos “pelo duro” dos Campos de Cima da Serra. Pejorativo à primeira vista, o termo que designa os frutos da miscigenação entre índios, espanhóis e portugueses distingue moradores de Bom Jesus, Jaquirana e São Francisco de Paula com o mesmo orgulho com que se dizem crias de alguma de suas localidades de nomes peculiares e por vezes misteriosos, mas que revelam histórias tão ricas e fascinantes quanto as paisagens que se observa ao viajar por suas estradas.
Na divisa entre São Francisco de Paula e Jaquirana, Faxinal dos Pelúcios é um desses territórios de poucas e antigas moradias erguidas à beira da estrada, uma igreja acanhada, mas bem cuidada, e o salão de festas da paróquia. Orgulho para a comunidade é uma porteira de madeira que, segundo os moradores, estampa a capa de um famoso disco dos Irmãos Bertussi, Velha Porteira (1973).
Numa pequena elevação de terra conhecida por Lomba do Vento, vive um dos mais conhecidos habitantes do Faxinal, o Zé Gaúcho. Típico personagem que poderia ter sido criado pelos traços de Iotti para a turma do Radicci, Zé Gaúcho, alcunha de José Pedro de Souza Lopes, 67 anos, é dono de algumas cabeças de gado. À vontade em seu calção de futebol, tênis sem cadarços, camisa regata e chapéu, conta que muito pouca coisa muda no Faxinal. Não que esteja reclamando. Considera que o progresso simbolizado pelo asfalto trouxe benefícios logísticos, mas também a dor de cabeça da insegurança. Sem redutores, muitos carros que passam em alta velocidade pela ERS-110 oferecem risco e provocam acidentes como o que, dois anos atrás, matou uma de suas vacas, que escapou do cercado. Além de perder o animal, Zé Gaúcho teve de arcar com R$ 8 mil de prejuízo do veículo, o que fez adiar o sonho de ter seu próprio carro.
– Tem a placa que diz o limite de 50 quilômetros por hora, mas passam a quase 200 – reclama.
Apesar de conversador, para contar a história de Faxinal dos Pelúcios Zé Gaúcho delega a tarefa ao seu morador mais antigo, Juvenil da Silva, o “Titio”. Aos 96 anos, Juvenil caminha com auxílio de muletas, mas se mantém à frente da bodega que diariamente reúne amigos para o momento de descontração, que por ali se resume a beber, fumar e jogar sinuca. Com dificuldade para ouvir, mas com lucidez e uma memória intacta, Juvenil pertence à sétima ou oitava geração do homem de apelido Pelúcio, cujos primeiros descendentes povoaram aquela terra de campos rasteiros (o chamado faxinal) ainda no século 18.
– Era um homem de Santo Antônio da Patrulha que requereu essa sesmaria (terrenos pertencentes a Portugal, entregues para ocupação de colonizadores), mais ou menos 300 anos atrás. Ele nunca veio para cá, mas vieram alguns dos seus filhos, que foram povoando e pegou esse nome. O por quê desse apelido eu não sei. Mas me chamam de “Titio’ e eu também não sei por que – brinca.
Beirando o centenário, Titio revisa o passado com tranquilidade. Aconselha que o segredo para manter uma rotina feliz é manter a mente ocupada:
– Na minha vida eu só não matei, nem roubei. Fora isso, não teve o que não fiz. Fui taxista, trabalhei na agricultura, no mato, já fui até parteiro. Mas tudo passou. Hoje tenho a bodega, às vezes vem um “gambá”, bebe, incomoda, vai embora. Vêm os conhecidos pra conversar. Na idade que eu estou, tem que ter uma distração. Se ficar parado, vou ficar pensando no quê? Fazer uma vida nova?
O caso do porco morto
A maioria dos moradores de Lajeado Grande, em São Francisco de Paula, não sabe explicar por que o riacho que corta o distrito não segue o exemplo de outros das proximidades, cujos nomes homenageiam moradores célebres, normalmente conhecidos por apelidos ou sobrenomes, como Zé Biriva, Moreira ou Disimero (sic). Tampouco sabem a origem do nome que instiga a curiosidade de quem passa pela localidade e depara com a placa: Ponte sobre o Arroio Porco Morto.
No boteco mais próximo à ponte, o aposentado Ivo Barbaresco, 64, conta que mora no distrito há mais de 20 anos, desde que se aposentou do serviço público. Além do chapéu e do bigode ruivo, é reconhecido por sua habilidade ao violão, que rende frequentes convites para tocar em missas, casamentos e até em velórios nas localidades vizinhas. Curioso pelo nome dado a vilas dos arredores como a Pedra Lisa ou o Lava-Pés, nunca encontrou uma explicação para o Porco Morto.
– Acredito que tenha a ver com alguma enchente que atingiu um chiqueiro e trouxe algum porco que se afogou na beira do arroio.
Convida então a reportagem para seguir até a casa de um casal de moradores mais antigos, destes que se confundem com a história do lugar. Trata-se de Ivo Scheifler, 83, primeiro taxista de Lajeado Grande, e da esposa Jandir Therezinha, 82, que na juventude cantou em programas de calouros e foi atriz de radionovelas em Caxias do Sul. Aposentados, vivem a rotina pacata do interior acompanhando a vida do filho, músico em bandas de música típica alemã. Convidado a elucidar a origem do Porco Morto, Ivo contribui sem qualquer pretensão taxativa.
– Essa história é mais antiga do que eu. No tempo que tropeavam os bichos, não era só mula que levavam. Tinha porcos e até perus. Mas o porque do nome do arroio eu não tenho certeza. Pode ser que numa dessas tropeadas algum porco tenha morrido afogado, ou já estivesse doente e tenham deixado lá – supõe.
Sem conter o riso, a esposa completa:
– O problema dessas histórias é que quem viveu pra contá-las certamente já morreu.
Velhas contendas
O povo de São Francisco de Paula recorda com carinho de uma reportagem exibida pela RBS TV anos atrás, sobre o curioso fato de praticamente todo morador ser conhecido por um apelido. Fato é que a criatividade se estende para nomear algumas das suas localidades, sendo uma tradição tão antiga que em alguns casos não sobrou ninguém para explicar a piada. Às margens da Rota do Sol, pouco se sabe sobre a razão da Várzea das Contendas ter recebido esse nome que remete a discórdias, disputas, entreveros. O fazendeiro Aldoci Reolon, 76, garante que as famílias são cordiais e que nas festas no salão ao lado da capela, recém-reformado com a união de esforços da vizinhança, não há lembrança de briga:
– Como aqui não ficou muita gente, a maioria foi embora, a gente faz as festinhas pro pessoal vir matar a saudade. Reúne as famílias, assa uma carne, às vezes traz algum conjunto musical pra animar.
Escritor e pesquisador da História e das histórias dos Campos de Cima da Serra, José Carlos da Fonseca aponta que o remoto povoado – não tão desconhecida para os anais da aviação aérea, por conta de dois aviões militares que caíram em suas fazendas nos anos 1960 – ganhou o apelido devido a disputas ferrenhas por posse de terras, envolvendo membros da mesma família.
– Tenho um edital antigo em que uma batelada de gente reclama sua parte na divisa das fazendas. Uma verdadeira contenda – afirma o pesquisador.
Frio de arrepiar
A casa de dona Cota é humilde, mas repleta de cores. À tinta azul já bastante gasta que colore as paredes de madeira, somam-se o amarelo, o vermelho, o rosa e tantas outras do seu jardim florido, referência que os vizinhos oferecem para indicar a casa da moradora mais antiga do povoado cujo nome ela é incumbida de explicar: Arrepio.
Vilarejo rural onde vivem cerca de 20 famílias próximo ao limite entre Bom Jesus e São José dos Ausentes, a vista privilegiada para os campos de Ausentes rendeu o nome de Rincão Bela Vista. Dona Cota, nascida há 73 anos e batizada Maria Pacheco (o apelido veio de um tio que a chamava de Maricota), explica que o apelido da comunidade foi dado por um senhor já falecido, conhecido por fazer piadas que arrancavam gargalhadas.
– Era um senhor muito gozador, botador de apelido. Um dia o vigário veio rezar uma missa e perguntou qual era o nome do lugar. Esse senhor disse que era “Arrepio” e todo mundo que estava em volta deu risada. Acabou pegando – conta a idosa.
Sobre a razão do apelido, os vizinhos gostam de brincar que seria por causa das brigas que davam nos bailes, devido à rivalidade entre os moradores das diferentes localidades. No entanto, a causa mais aceita é que seria por causa do frio intenso.
– Não quero lhe mentir. É cada noite fria por aqui, que arrepia o pelo mesmo – atesta.
Aposentada da lida braçal nos pomares da região, dona Cota vive com o salário mínimo que recebe da previdência e a ajuda eventual de algum dos sobrinhos que moram em Farroupilha e Caxias do Sul. Mora sozinha, mas garante que os amigos e vizinhos não a deixam se sentir solitária:
– Eu me dou com toda a vizinhança. Se eu preciso de alguma coisa, sempre tenho alguém por perto. Recebo visitas, faço visitas. Nunca fiz inimizade, nem tive sujeira com o meu nome. Costumo dizer que sou pobre de dinheiro, mas rica de amizades.
O padre que calculava
Quem se guia pelas placas que nas estradas de Bom Jesus indicam o Matemático espera em algum momento deparar com algum amontoado de casas, um boteco ou armazém, algo que faça identificar uma vila ou povoado de interior. Ao contrário da maioria dos povoados, contudo, os moradores do Matemático vivem espalhados em sítios e pequenas fazendas, sendo vizinhos separados por alguns quilômetros. Para reforçar o sentido de comunidade, em 2011 algumas das cerca de 50 famílias das redondezas uniram esforços para construir a igreja. Em 2015, foi a vez do salão de festas.
– Foi uma forma da comunidade se unir. Temos os cultos às terças, com o padre que vem de Bom Jesus, em maio temos a festa para Nossa Senhora de Fátima, e fora isso celebramos um ou outro casamento – conta a moradora Clênis Policastro.
Ao responder sobre quem seria o matemático que teria inspirado o nome da região, os moradores convergem em algumas questões, divergem em outras: alguns dizem que era um professor de matemática, outros dizem que seria um padre entendido em matemática que viveu por ali. Mas, ao contrário de outras paragens dos Campos de Cima da Serra, não se trata de um mistério.
Por volta de 1730, o Rei João V, de Portugal, enviou ao Brasil os padres matemáticos Domingos Capassi e Diogo Soares, que atravessaram o Atlântico com a missão de contribuir para a elaboração de mapas da costa brasileira. Nesta aventura, que teria durado uma década, Capassi, que também era cartógrafo e astrônomo, acampou por um período nos campos de Cima da Serra, numa terra situada entre São Francisco de Paula e Bom Jesus, cortada pelo Rio das Antas. Conta-se que o padre era procurado pelos tropeiros que atravessavam a divisa com Santa Catarina para ajudar a calcular os impostos a serem pagos sobre a carga. Capassi também teria dado aulas de matemática aos moradores das localidades próximas, o que provavelmente contribuiu para se tornar uma figura conhecida e querida.
Em má companhia
Na gênese do povoamento dos Campos de Cima da Serra estão os tropeiros, viajantes do centro do país, mercadores de animais e alimentos, que na região foram responsáveis por abrir estradas, povoar terras e legar traços culturais que permanecem até hoje. Antes que fossem construídas as primeiras pontes, nos caminhos das tropas as travessias de riachos eram feitas pelo que se convencionou chamar de “passos”, trajetos que passavam por dentro d’agua. Alguns desses passos ficaram conhecidos por nomes que fazem referência ao seu percurso, como o Passo do “S” e o Passo da Ilha, ambos pontos de visitação entre São Francisco de Paula e Jaquirana. No mesmo município, próximo à divisa com Canela, distrito de Eletra, outra travessia recebeu um apelido intrigante, que dá nome à comunidade erguida ao seu redor: Passo do Inferno.
A meio quilômetro da ponte de ferro construída em 1935, símbolo turístico do Passo do Inferno (célebre por ter servido de cenário para uma cena da novela Chocolate com Pimenta, da Rede Globo), mora Vicente Machado, 76. Vicente nasceu durante a ascensão e presenciou a queda da comunidade, hoje limitada a poucas casas e escanteada pelo poder público. O morador explica que a fase de desenvolvimento se deu durante a construção da usina hidrelétrica Passo do Inferno, inaugurada em 1936. Além dos trabalhadores da obra, os tropeiros também ajudaram a movimentar a economia local.
– Essa brecha era uma rota de fuga de boiadas, descoberta por tropeiros que não queriam pagar impostos nos postos de fiscalização. A pasagem era feita a pé, a cavalo ou de carreta, mas era um rio muito violento (o Rio Santa Cruz). Quando dava as cheias, a correnteza arrastava até uma cachoeira muito alta, que fazia cair e morrer muita gente. Por isso era o passo do inferno. Às vezes levava dias ou semanas para o volume de água baixar, por isso construiu-se uma vila de apoio aos viajantes, que cresceu com a construção da usina – conta o morador.
Vicente recorda que a vila onde nasceu tinha escola, salões de baile, posto de gasolina, igreja e mais de 500 casas. Com o passar dos anos e a dissolução da vila operária, o lugar caiu no esquecimento e quase nada restou, nem mesmo a igreja. Fora as poucas casa, há um parque que atrai visitantes interessados em conhecer as belezas naturais e praticar esportes de aventura.
– Essa região sempre foi muito pobre, ninguém juntava dinheiro. É um lugar diferente das colônias italianas, alemãs, que vieram e alavancaram o Estado. Aqui, até hoje, é um lugar abandonado, sem sustentabilidade. Muitos proprietários, que têm outras rendas e não dependem disso aqui, não querem que asfalte, porque acham que vai trazer bandido, que vai aumentar o imposto... não querem ceder um metro de terra pra fazer o traçado. Pra quem vive aqui, continua sendo um passo do inferno – lamenta.