Em temporada desde o início de novembro em Caxias do Sul, o Mirage Circus faz parecer que nada é impossível. Assistir às performances de artistas que parecem desconhecer os limites do corpo não é apenas sobre diversão, a ultrapassa a mera experiência estética: é uma inspiração para se desafiar e a buscar seus sonhos. É essa a mensagem que, noite após noite, Fernando Rodrigues, 29, o palhaço Potato do circo, faz questão de transmitir.
Formada por cerca de 120 pessoas, sendo que cerca de 40 são artistas, a comunidade instalada no estacionamento do Parque da Festa da Uva compartilha não apenas o dia a dia, mas também histórias de vida muito parecidas. Na última quarta-feira, a reportagem conheceu alguns destes que arrancam aplausos, gargalhadas e suspiros do público. Em comum, chama atenção o fato de todos eles pertencerem à quarta, quinta ou sexta geração de artistas de suas famílias. É por isso que, para muitos deles, o local de nascimento registrado na carteira de identidade muitas vezes é uma cidade que nunca conheceram. Apenas nasceram lá porque era onde o circo estava.
É no circo que muitos destes artistas irão se apaixonar e constituir família, como o próprio Fernando - o palhaço Potato - e a bailarina Jeniffer Rakmer, que são casados e pais de dois filhos, um menino de seis anos e uma menina de um ano e meio. Sem vínculos geográficos com uma cidade ou com as regiões do país por onde passam, é a arte que dá a eles a noção de pertencimento. Se não a um lugar, a um universo.
- Seria muito difícil pra mim levar outra vida que não fosse a do circo. Porque, todas as noites, quando passo pela cortina, é como se todos os problemas ficassem para trás. Estar no picadeiro é a minha hora de lazer. Cada vez mais faço questão de ter um contato ainda maior com o público, de ter tempo para conversar, de tirar fotos com as famílias e suas crianças. Recebo pelo Instagram muitas mensagens de pessoas que, após o espetáculo, comentam como aquelas duas horas no circo fizeram a diferença na vida delas. Não há sensação melhor que a de provocar o sorriso em uma pessoa - comenta o palhaço, cuja origem circense vem da Espanha, pelo lado materno da família.
Tendo suas intervenções marcadas por bastante improviso e interação, chamando ao picadeiro crianças e adultos, Fernando comenta que é preciso desenvolver o que chama de "feeling', ou um olhar apurado, para escolher na plateia a pessoa certa para brincar:
- É uma sensibilidade de conseguir olhar para a pessoa e entendê-la em questão de segundos. Mas o principal é saber que é o meu personagem que tem de se adaptar a ela, e não o contrário.
PROTAGONISMO FEMININO
Outra característica comum aos artistas do picadeiro é a versatilidade. Por conviver desde a primeira infância entre malabaristas, trapezistas, mágicos, palhaços e equilibristas, muito cedo se manifesta o interesse por praticar um pouco de cada número. É por volta dos seis ou sete anos que uma criança circense normalmente vai desenvolver a inclinação por explorar alguma habilidade artística. Foi como aconteceu com a jovem Nicole Ester, 23, que no Mirage pode ser vista no trapézio, no tecido ou dançando.
- Primeiro a gente começa a treinar o corpo, preparar uma base para depois aprender algum número. O meu foco é em poder treinar e me desenvolver para estar cada vez mais dentro do espetáculo, participando em tudo o que eu puder - conta a jovem.
Filha de mãe argentina e de pai de Brasília-DF, Nicole nasceu em Quaraí-RS, quando o circo passava por lá. A mesma coisa com um irmão, pelotense, e com a irmã caçula, que é baiana.
- Nenhum de nós, até hoje, voltou para conhecer a cidade onde nasceu - conta.
Apesar de levar uma vida que a leva a cada três ou quatro meses a uma cidade diferente, Nicole conta que é possível fazer algumas amizades fora do ambiente circense, que de tempos em tempos é possível reencontrar. Assim como também é possível, em cada cidade, criar vínculos afetivos com o próprio lugar:
- A gente consegue sair para conhecer alguns restaurantes, algumas cidades vizinhas, como Gramado. É muito legal ser reconhecida. Vem alguém e pergunta: "você que é a menina dos panos?!" Sou eu, sim! - diverte-se.
Feitas para o circo
Talvez uma exceção entre os colegas do Mirage Circus, Ludmila Robatini, 35, participa de um único número durante o espetáculo, mas nem por isso se arrisca menos a cada noite ou matinê. Pelo contrário. É a única mulher entre os artistas que tiram o fôlego do público no eletrizante globo da morte. Nascida em Nova Iguaçu-RJ, Ludmila herdou a paixão pelas motos e pela adrenalina do pai, também globista e que a ensinou a pilotar quando ela tinha sete anos. É a mesma idade que hoje tem o filho de Ludmila, já dono da sua própria moto e arriscando as primeiras aceleradas. A artista admite, contudo, que a maternidade a tornou um pouco mais cautelosa:
- Antes de ser mãe eu competia em provas de motocross e fazia também o freestyle (modalidade em que as motos passam por sobre o globo, saltando por uma rampa). Mas depois da maternidade eu criei juízo (risos).
Em quase três décadas sobre a moto, os acidentes foram poucos. Até hoje só se recorda de ter tido uma costela e um dedo fraturados. Mas qual o segredo para não colidir com as outras motos que passam uma pela outra em alta velocidade ao redor do globo?
-Somos cinco no globo e tem de estar sempre olhando para os outros. Não basta olhar para a frente. Se precisar, grita ou faz algum sinal. Mas se for pra um cair, pode saber que vão cair todos - explica.
Ludmila retornou ao Mirage Circus há cerca de seis meses, após um período trabalhando em um circo na Suécia. Diferentemente da maioria dos colegas, a globista chegou a experimentar a vida na cidade, quando morou em João Pessoa-PB. O chamado do circo, no entanto, foi mais forte:
- A gente não consegue viver sem essa adrenalina, sem o reconhecimento do público. Fora isso, a vida no circo é muito boa. Permite conhecer vários lugares. Ficar parada não é comigo.
Para a bailarina Jeniffer Rakmer, 31, esposa de Fernando, o palhaço, e que é da sétima geração circense da família pelo lado materno, a tentativa de viver na cidade também não deu certo. A artista conta que começou a dançar no circo do pai aos 14 anos e, quando tinha 16, foi morar em Franca-SP, a fim de cursar uma faculdade e tentar uma vida "de cidade". Não deu.
- Quando chegava a noite eu sentia muita falta dos espetáculos. Em casa precisava dormir cedo e acordar cedo, ter outra rotina. Não me adaptei - conta.
Jeniffer, que no Mirage pode ser vista em diversos números, sendo talvez o mais impressionante o que dança equilibrando diversos bambolês, conta que a rotina circense tem alguns pontos em comum com a de quem vive na cidade, especialmente para quem é mãe:
- A gente faz comida, arruma o filho pra ir pra escola. Quando não tem espetáculo, está ajudando a costurar alguma roupa, fazer algum ajuste. Não é que seja uma rotina menos trabalhosa, é apenas diferente.
O Mirage Circus continua em Caxias do Sul até o dia 10 de dezembro, quando a cidade sobre rodas então seguirá para uma temporada em Balneário Camboriú-SC. No ano que vem já há dois destinos confirmados no interior de São Paulo e em Goiânia. Horários e valores de ingresso dos último espetáculos em Caxias podem ser conferidos no site.
Circo é fruto da relação de dois ex-trapezistas
Fundado há 10 anos, o Mirage Circus é a realização do sonho de um casal que vem de longa tradição circense. Jefferson Souza e Sabrina Robatini, ambos ex-trapezistas, se conheceram e começaram a namorar quando os circos de suas famílias estavam em cidades próximas. Do relacionamento nasceram não apenas filhos que já vivem a vida no picadeiro, como também o próprio circo, que desde o início tem o ator Marcos Frota como parceiro comercial.
- Sempre foi um sonho ter o nosso circo, mas parecia algo distante. Até aparecer a oportunidade de comprar uma lona que estava à venda e ver no que dava. Não tínhamos ideia de onde iria dar - conta Sabrina, que recebeu a reportagem para conduzir a visita aos bastidores do Mirage.
A administradora conta que sua família soma mais de 100 anos dedicados ao circo. Ela é da sétima geração. Nascida em Uberlândia-MG, filha de pai trapezista e de mãe mágica, só foi conhecer a cidade natal quando tinha 25 anos e o circo da família passou novamente por lá. Sabrina comenta que nem toda a comunidade circense opta por seguir a vida itinerante para sempre, mas fato é que poucos conseguem se adaptar à rotina longe da lona:
- É claro que tem o artista que faz o seu pé de meia e deixa uma casinha comprada pra quando quiser sair do circo, mas a maioria acaba voltando, nem que seja apenas para acompanhar os filhos. É o caso dos meus pais, que seguem conosco até hoje, mesmo aposentados. Se falar para ficar em casa, eles vão se ofender. Vai acontecer o mesmo se um dia meus filhos me derem essa mesma ideia.
Responsável por gerenciar não apenas uma empresa, mas também a rotina de dezenas de famílias que seguem o circo para onde ele vai, Sabrina diz que o trabalho fica mais fácil por conta do profissionalismo e da responsabilidade que todos compartilham:
- Para um negócio dar certo de verdade, não existe uma parte fácil. Mas, trabalhando com as pessoas certas, fica mais leve. A gente que está nos bastidores tem de estar pensando sempre à frente. Não espera começar a ir mal numa cidade para então pensar qual será a próxima.