Há um ditado popular na comunidade circense que diz: "Quem bebe a água da lona, não sai nunca mais do circo". Para a bailarina Giovana Robatini, sair do universo dos picadeiros nunca foi uma opção. Ela pertence à quinta geração de uma família circense e já rodou a Europa fazendo números de força capilar, laço e chicote ao lado do marido, trapezista. Aos 43 anos, ela ainda incorporou outras funções: prepara as maçãs do amor, vende ingressos e se apresenta nos bailados do Mirage Circus — atração comandada pelo cunhado e que estreou na Capital em junho.
Fora dos holofotes, Giovana dorme e acorda em um trailer de dois quartos, vai à academia todos os dias, cuida dos filhos de seis e 21 anos e matricula o menino em uma nova escola a cada cidade, o que ocorre com todas as crianças do circo. Se para quem enxerga de fora esse dia a dia pode parecer impraticável, para Giovana, impossível é se imaginar levando uma vida que não seja itinerante:
— O mais legal de tudo é que você não tem rotina, conhece vários lugares e pessoas, é um mundo diferente. Não sei nem como é morar na cidade, a gente sempre viveu no trailer e se acostumou com ter só um espaçozinho para guardar as roupas, uma máquina de lavar embutida. Com a minha família, sou apegada, mas não me apego a bens materiais.
Giovana e outras três profissionais que atuam no Mirage Circus receberam a reportagem de Donna para contar como é, para uma mulher, viver em um circo. Elas também fazem uma avaliação desta primeira temporada em Porto Alegre, que deve se encerrar dentro de poucas semanas.
O consenso é que a maior dificuldade em solo gaúcho tem sido o tempo severo dos últimos meses — de frente para o Guaíba, elas estão encarando uma sucessão de temporais e ciclones. Em algumas ocasiões, os mais de 20 trailers de moradia sacudiram e as lonas brancas com detalhes em vermelho tremeram, mas não cederam.
— O que o artista do circo tem mais medo é do temporal, porque se essa lona cai, você vai viver do quê? — questiona Giovana.
Quis o destino que Porto Alegre também proporcionasse outra emoção ao povo do circo, a da chegada de uma nova integrante. No final de maio, quando os caminhões da mudança recém haviam estacionado na Capital, a administradora Maria Cristine Lima, 27 anos, teve de ser levada às pressas ao hospital para dar à luz a primeira filha, Maria Liz, hoje com três meses e meio.
— Eu morria de medo de ter ela na estrada, mas graças a Deus deu tudo certo, nasceu no dia da mudança e agora temos a história da Maria Liz para contar. Ela quis nascer gaúcha — relata a mãe.
A paraense chegou ao circo no início do ano, após começar um relacionamento com um dos operadores de luz do espetáculo, Igor Corrêa, e se surpreendeu com a acolhida que encontrou. Ela fez amizade com todos e hoje pode contar com uma família gigante que zela pela menina — são cerca de 200 pessoas envolvidas nas atividades do circo. Maria Cristine, que antes era operadora de loja, diz que se adaptou bem à vida sobre rodas e comemora o fato de poder trabalhar ao mesmo tempo em que dá atenção à bebê.
— Estou gostando, não vou mentir. Poder trabalhar na bilheteria e ela estar junto comigo é maravilhoso, ela tem uma segunda casa lá. Às vezes, fico com um pouco de dó porque ela chega cansada em casa, mas ao mesmo tempo, eu trabalho por ela, porque criança dá um gasto enorme. Graças a Deus ela é muito parceira comigo — comenta enquanto embala a menina no colo.
Desafios femininos
Da plateia, chamam atenção as unhas longas de acrílico, os cabelos alongados por megahair, os músculos fortes de todas as artistas e a maquiagem bem marcada — a regra para todas é usar cílios postiços, batom vermelho e sombra escura. Por gosto e pela exigência da profissão, as mulheres do circo confessam que são vaidosas. Só que a rotina itinerante faz com que estejam sempre em busca de novos profissionais de beleza e saúde.
— Quando a gente já sabe a nossa próxima cidade, começamos a pesquisar no Instagram, por exemplo, "unhas em Porto Alegre". Aí cada uma manda mensagem no grupo: "Ó, gostei dessa aqui", "essa aqui achei legal também, vamos ver qual é mais perto". A gente se organiza e vai atrás de academia, estética, manicure etc – afirma a acrobata aérea Nicole Ester Conceição.
A jovem de 23 anos é a responsável por dois dos números mais aplaudidos do espetáculo — o tecido e o trapézio — e está acostumada com um dia a dia marcado pela adrenalina. Para não se machucar, ela é rigorosa com o condicionamento físico, principalmente dos ombros, e se matricula na academia assim que chega à cidade. Uma das regalias de um circo de grande porte, explica ela, é que os atletas contam com um personal trainer, que viaja junto com a trupe.
Não tenho medo, entro no picadeiro e curto bastante. E os aplausos ganham a gente
NICOLE CONCEIÇÃO
Acrobata aérea
Nicole também compartilha o detalhe de que a menstruação às vezes é um desafio para uma mulher acrobata, que chega a usar absorvente interno e externo juntos para evitar contratempos enquanto se desenrola do tecido a cerca de 10 metros de altura.
— Sofro mais na questão de cólicas mesmo, mas trabalho do mesmo jeito. O tecido em gota é o que eu mais curto fazer, o que eu mais manjo. Tenho muito respeito e me preparo muito para chegar e estar segura do que estou fazendo, então não tenho medo, entro no picadeiro e curto bastante. E os aplausos ganham a gente — relata.
Nascida em uma família circense que começou com os bisavós, Nicole trabalha diariamente com os pais e o irmão, que é um dos trapezistas. Foi justamente durante uma passagem pelo Rio Grande do Sul que ela nasceu, gaúcha de Quaraí. Vivendo sempre na estrada, ela começou a treinar aos cinco anos e aprendeu tudo o que sabe com a mãe, que hoje atua nos bastidores do picadeiro, fazendo parte da equipe de segurança dos filhos. Esse envolvimento familiar característico do universo circense é algo que a acrobata curte muito:
— Se você reparar no espetáculo, meu irmão usa uma corda de segurança que é minha mãe que segura, garantindo que não fique muito frouxa e atrapalhe ele. Já aconteceu de ele escapar e ela segurar, inclusive machucando um pouco o ombro, porque ele é pesado. Já meu número de tecido tem um guincho e é minha mãe que comanda quando ele sobe e desce, com meu pai de olho, ao lado dela. É tudo muito família aqui, fico até emocionada às vezes.
Vida social
Os treinamentos e ensaios dos números são escalonados e ocorrem quase todos os dias, antes ou logo após o último espetáculo da noite. O tempo livre para dar uma escapada costuma ser à tarde ou no dia de folga, às segundas-feiras. Nada impede que as garotas saiam para a balada, desde que seja depois do espetáculo.
— A gente sai e no dia seguinte, faz espetáculo, normal. É bom para dar uma relaxada. Ou então fazemos a nossa festa aqui, chamada de Carreta Furacão, nos domingos — comenta a bailarina Tereza Haianne Araújo.
A história da artista, dançarina e influencer de 27 anos se assemelha ao clássico "ir embora com o circo". Quatro anos atrás, o Mirage passou pela cidade dela, Belém do Pará, e a contratou para a temporada. Quando seguiu viagem, o circo propôs que ela continuasse com a trupe. De lá para cá, Tereza aprendeu a coreografia de todos os bailados, acostumou-se com os looks cheios de plumas e pedrarias, aprendeu a cozinhar e se apaixonou — pela profissão e pelo trapezista Nícolas Mathias.
Agora a paraense se prepara emocionalmente para ficar longe do namorado pela primeira vez, já que ele está de partida para o circo Arlette Gruss, na França. Na carreira dos artistas circenses, é uma prática comum fazer algumas temporadas em outros picadeiros. Também é habitual se relacionar entre colegas, que é como se configura a maior parte dos casais. Romance com quem é de fora também acontece, mas é menos frequente e geralmente implica em trazer o amado para o circo ou deixar para trás o picadeiro em favor do relacionamento.
— Tem muita gente que vai para fora porque, para artista que nasceu no circo, é uma experiência importante ir para outros circos. Não sei como vou lidar com a partida, começamos a namorar logo que entrei no circo. Estou vivendo um dia após o outro — conclui Tereza.